Crianças: mais de 2,5 mil esperam oportunidade para acampamentos (Rodi Said/Reuters)
EFE
Publicado em 7 de março de 2019 às 12h10.
Elas sobreviveram a algumas das circunstâncias mais trágicas que um ser humano pode passar: foram abandonadas, expostas ao medo, exploradas e testemunhas de atrocidades. Elas são as "crianças do califado" e, ao que parece, ninguém quer olhar para a situação delas.
Milhares de menores de idade que viveram no autoproclamado califado do Estado Islâmico (EI) enfrentam agora, quando se aproxima a derrota final do grupo jihadista, um futuro incerto, e o mundo ainda não dá indícios de estar disposto a enfrentar esse problema.
Atualmente, são mais de 2.500 crianças de pelo menos 30 nacionalidades que esperam uma oportunidade em três acampamentos na região noroeste da Síria. A reincorporação depende, em muitos casos, da ajuda dos seus países de origem.
"A comunidade internacional deve agir antes que seja tarde demais", alertou a diretora de Emergências na Síria da organização Save the Children, Sonia Khush.
A organização, que atende os menores nesses acampamentos, prevê que o número aumente, e muito, quando os extremistas perderem o controle definitivo do território que controlam.
Nos últimos dias, milhares de pessoas deixaram o último reduto do califado em Al Baguz, na sua maioria familiares de combatentes que se entregam às Forças da Síria Democrática (FSD), preparadas para fazer, em questão de dias, a ação final na cidade.
Entre eles estão centenas de crianças: familiares de jihadistas, menores sequestrados pelo EI e os que viviam no território do califado. Muitos chegam aos campos em condições desesperadas depois de meses de privação de atendimento médico e comida.
Para o diretor de Cooperação Internacional da Save the Children, David del Campo, os menores recebem a mesma punição dos radicais pelo fato de viverem no seu território.
"Não são crianças do EI, são simplesmente crianças", destacou Del Campo à Agência Efe.
Os três acampamentos abrigam menores de Afeganistão, Albânia, Arábia Saudita, Argélia, Austrália, Azerbaijão, Bangladesh, Bélgica, Canadá, China, Dinamarca, Egito, França, Geórgia, Iraque e Alemanha.
Também há alguns de Indonésia, Itália, Cazaquistão, Kosovo, Quirguistão, Líbano, Líbia, Macedônia, Malásia, Marrocos, Holanda, Paquistão, Portugal, Rússia, África do Sul, Sudão, Suécia, Síria, Tadjiquistão, Tunísia, Turquia, Ucrânia, Reino Unido, Estados Unidos, Uzbequistão e Iêmen.
Embora alguns destes países tenham começado a se interessar pelo tema, outros muitos, inclusive vários europeus, ainda não tomaram medidas, de acordo com a Save the Children. Em pleno debate sobre quem deve julgar os jihadistas detidos, apenas a Rússia repatriou um pequeno grupo de menores.
Enquanto os grupos curdos da Síria se queixam de sobrecarga, com mais de cinco mil detidos, os países de origem resistem a olhar para a situação diante do receio de não poder provar os crimes em questão. A responsabilidade legal em última instância das crianças, porém, é do país de origem.
"Eles precisam tomar a responsabilidade e proteger as crianças, independentemente de quem são os pais. Uma criança é uma criança em qualquer circunstância e deve receber o mesmo tratamento de qualquer outra criança do mundo", defendeu Del Campo.
A ONU também pede para que os países assumam o seu papel com as "crianças do califado", muitas delas sozinhas e sem a companhia de um adulto.
De acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), um menor de idade deve "ser repatriado ao seu país de origem o mais rápido possível, mediante procedimentos cuja primeira consideração seja o interesse superior da criança e através da cooperação entre Estados".
A entidade também defende o desenvolvimento e a implementação de estratégias e programas para o regresso das crianças a fim de conseguir sua "reintegração social, sem estigmatização ou discriminação".
Separadas dos demais nos campos controlados pelos curdos, as crianças das famílias envolvidas com os jihadistas têm menos acesso a ajuda e serviços, segundo a Save The Children, que atua nos três acampamentos. O de Al Hol é o maior deles, com mais de 40 mil pessoas; Ain Issa tem 12 mil refugiados e Roj tem 1.500.
A maioria vive com as mães, muitas recrutadas ainda jovens e hoje com bebês de dias ou semanas de vida. Os que estão sozinhos recebem atendimento de cuidadores temporários.
A superlotação dos campos e um dos invernos mais rigorosos dos últimos anos transformaram em desesperadora a situação de seus moradores: mais de 60 menores morreram, a maioria de frio, em janeiro e fevereiro, segundo a ONU.
"A situação em Al Hol é dilaceradora. As crianças estão morrendo de hipotermia quando as famílias fogem para áreas seguras", denunciou recentemente Elizabeth Hoff, representante da Organização Mundial da Saúde (OMS) na Síria.
A ajuda especializada, assim como os serviços de saúde e nutrição que essas crianças precisam, atualmente não é viável no noroeste da Síria, uma região delicada demais, segundo ela.
De acordo com Del Campo, adolescentes de 12 anos voltam a ter o equivalente a quatro e se urinam, não dormem à noite, têm pesadelos e ansiedade. Além disso, 85% de todas as crianças do Iraque, da Síria e do Iêmen sofrem com algum transtorno psicológico.
"Viram parentes, amigos e vizinhos morrendo ou foram testemunhas da destruição de suas casas e escolas, mas no norte da Síria só há 20 psiquiatras disponíveis para 4,5 milhões de crianças", disse Del Campo.
A situação é ainda mais dramática para os menores yazidis: meninos foram treinados para matar e as meninas se tornaram escravas sexuais.
"Viram a pior face da violência. Eles tiveram um ódio extremo injetado na veia, elas, um medo aterrorizador", afirmou o diretor.
Cerca de 600 crianças yazidis sequestradas pelo EI continuam desaparecidas, segundo o psicólogo alemão Jan Ilhan Kizilhan, professor universitário em Baden-Württemberg, na Alemanha, e em Duhok, no Iraque, que avaliou mais de 1.400 jovens escravas sexuais dos jihadistas.
Seus mais de 20 anos de trabalho com pessoas traumatizadas em zonas de guerra permitiu afirmar que as "crianças do califado" sofrem problemas psicológicos extraordinários. São fruto de traumas individuais, coletivos e da migração posterior, uma combinação que requer pensar além, pensar em conceitos novos de atendimento integrado.
Mesmo assim Kizilhan se mostou otimista. "Com um bom apoio, no longo prazo, elas poderão ter uma vida normal e enfrentar o trauma", ressaltou.
A Save the Children teve programas bem-sucedidos no Sudão do Sul, no Congo e em Mianmar e agora tenta implantar projetos parecidos na Jordânia e no Líbano.
"É um caminho lento e trabalhoso, mas extremamente gratificante", disse Del Campo.
Em pleno século XXI, a informação, as novas tecnologias e a globalização parecem ferramentas suficientes para responder à grande pergunta: o que fazer com as "crianças do califado"?
Para o Unicef essa resposta é clara: "São as crianças mais vulneráveis do mundo e deveriam receber toda a atenção e serviços disponíveis".