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De Jorge a Papa Francisco? A decisão de ser padre e a jornada de simplicidade por Buenos Aires

Capital argentina carrega marcas da infância e da juventude de Francisco; na praça Herminia Brumana, onde jogou bola quando criança, há uma placa que o homenageia

Papa Francisco: fiéis argentinos prestam homenagem ao Papa  (JUAN MABROMATA/AFP)

Papa Francisco: fiéis argentinos prestam homenagem ao Papa (JUAN MABROMATA/AFP)

Agência o Globo
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Agência de notícias

Publicado em 21 de abril de 2025 às 14h51.

É apenas um triângulo. Uma fatia de pizza feita de paralelepípedos, que agora tem brinquedos e canteiros, mas na época era um campinho de terra e grama. Ali, o Papa Francisco, que morreu nesta segunda-feira, aos 88 anos, jogava sua pasta para o lado e corria depois da escola para bater uma bolinha com os amigos.

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A praça Herminia Brumana, em Flores, apesar de sua pequena área, tem um nome significativo entre os espaços verdes de Buenos Aires. Ali foi onde o Papa, que amava o futebol, aprendeu a amar o esporte. Há uma placa colocada pela prefeitura da cidade que diz: “Por aqui, Jorge corria atrás de uma bola”.

Meia quadra dali está a casa da infância de Jorge Bergoglio, onde resta apenas o terreno onde ele cresceu e brincou com os quatro irmãos. É só um dos cantinhos de Buenos Aires que conheceu Francisco antes de ser Papa, antes mesmo de descobrir sua vocação religiosa.

Casa de infância do Papa Francisco (Luis ROBAYO/AFP Photo)

Vocação

E justamente a algumas quadras dali, aos 17 anos, num dia de primavera, quando estava quase namorando e indo comemorar o dia com outros amigos, passou em frente à igreja de San José de Flores, viu uma luz acesa no confessionário e sentiu vontade de se confessar. Foi ali que descobriu o que queria fazer da vida.

Anos mais tarde, diria, numa refeição informal com outros bispos, dias antes de ser nomeado Papa: “Deixem as portas das igrejas abertas, assim as pessoas entram, e deixem uma luz acesa no confessionário para sinalizar sua presença — vocês verão a fila se formar”.

Mas naquela tarde de primavera, ele não disse nada. Manteve o segredo por um ano. Aos poucos, foi deixando de sair e de ir aos bailes — onde, dizem todos, ele se destacava.

Foi justamente num baile, numa antiga casa em Flores, que reuniu os amigos e anunciou que queria ser padre. Houve lágrimas amargas entre as garotas, segundo quem esteve lá.

Se Francisco conhecia algo bem e amava, era a cidade onde vivia. Mesmo quando já era arcebispo de Buenos Aires, era visto em ônibus e metrôs, sem seguranças nem acompanhantes. Conhecia o metrô como ninguém. Usava para ir da sede da Cúria, onde morava, ao lado da Catedral, para o resto da cidade. Se precisasse pegar um ônibus, não se importava em subir, pagar a passagem ou usar o cartão nos últimos anos em Buenos Aires. Costumava pegar o extinto ônibus 5, que o levava do Centro a Flores ou a Villa Lugano. Depois, seguia a pé. Ou o ônibus 70, que o levava até as favelas de Barracas.

Foto de Jorge Bergoglio em 1973, publicada no jornal argentino Clarín (Sergio Rubin / CLARIN /AFP Photo)

Um homem do povo

Desde a primeira vez que Darío Giménez, morador da vila 21-24, o viu no ônibus 70 chegando ao bairro, soube que Francisco era um deles. Um homem do povo. Foi por isso que não hesitou em se converter ao catolicismo e pedir que ele batizasse sua filha, María José. Um dia, o convidou para almoçar em casa, ali na vila. Francisco aceitou o convite. Os donos da casa tinham vergonha de servir apenas macarrão com molho — era o que tinham.

“De repente, ele me olhou nos olhos e disse: ‘Gosto de me sentar à mesa dos pobres, porque eles servem a comida e compartilham o coração. Às vezes, os que mais têm, só compartilham a comida’. Me fez sentir muito bem”, contou Darío.

Ele podia ter pedido carro com motorista, estava entre seus direitos como arcebispo, mas nunca usou. Nos primeiros dias de seu pontificado, o mundo se surpreendeu ao ver uma foto sua, como arcebispo, num vagão lotado da linha A do metrô. Eram os momentos que ele mais curtia. Não tinha celular — nunca teve. E aproveitava para conversar com quem sentava ao lado.

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“Sempre gostei de usar transporte público: é uma forma de estar entre as pessoas, de sentir seu calor e suas preocupações”, disse numa entrevista a um veículo italiano no ano passado. Ele contou que uma das coisas que mais sentia falta desde que se tornou Papa era andar de transporte público: “Hoje, é um dos hábitos de que mais sinto falta”.

“Não quero sair de Buenos Aires. Sou portenho. Fora de Buenos Aires não sirvo pra nada”, disse ao núncio apostólico em 1997, quando foi informado de que teria um novo destino. Acabou nomeado coadjutor do então arcebispo de Buenos Aires, dom Antonio Quarracino. Seu amor por Buenos Aires ficou claro em cada um dos dias que viveu nesta cidade, à qual sempre quis voltar. Não como Papa, mas como o que foi por tantos anos: mais um vizinho. Para pegar um ônibus, se perder entre as pessoas.

"A rua eu não largo"

Um tempo antes de ser eleito Papa, um grupo de sindicalistas portenhos ligou para a Pastoral Social da Arquidiocese de Buenos Aires. Estavam preocupados. “Digam ao padre Francisco que não ande sozinho pela rua. Está perigoso. Tem muita gente que não gosta dele”, disseram. Ele vinha denunciando oficinas clandestinas, onde várias crianças e adultos morreram em dois incêndios. O recado não era uma ameaça, mas um pedido. Eram pessoas com acesso a informações e preocupadas com a segurança dele.

“A rua eu não largo”, respondeu Francisco, sem se importar com o aviso que os colaboradores lhe repassaram. “Preciso estar em contato com o povo. Senão, fico neurótico, viro rato de sacristia”, disse.

Sua escolha tinha fundamento. Ele sabia que a chave do seu carisma — e da mudança que causava na vida de quem o conhecia — era ser visto como uma pessoa próxima. Como mais um. Como alguém que pegava o ônibus na esquina. “Jesus passou fazendo o bem. Ele passou. Caminhou entre seu povo. Se misturou com as pessoas. Sabem qual era o lugar físico onde Jesus mais passava tempo? A rua”, disse numa mensagem pública em 2012.

“O que você mais gosta de Buenos Aires?”, perguntaram numa entrevista da assessoria de imprensa do Arcebispado, em novembro de 2011. “Andar por aí. Qualquer cantinho de Buenos Aires tem algo a nos dizer. Buenos Aires tem lugares, bairros e vilas. Lugano é mais que um bairro: é uma vila com uma identidade que a diferencia de um bairro comum. Há lugares, como grandes avenidas, que são só lugares; alguns bairros mantêm seu charme”, respondeu.

Na Igreja da Misericórdia, em Mataderos, todos lembram dos tempos em que Francisco aparecia com sacolas de roupas e doações para as famílias mais humildes, que ele muitas vezes visitava em casa. Um dia, contou o padre Fernando Gianetti, chovia torrencialmente. Era o dia da festa do padroeiro. “O interfone da casa paroquial tocou. Fui atender e, ao abrir a porta, encontrei Francisco, de botas de borracha, debaixo da chuva. Ele havia prometido participar e veio mesmo com o temporal. Pegou metrô e o ônibus 103 — nem o dilúvio o impediu”, relatou Gianetti.

Circulava com a mesma naturalidade nas favelas quanto nos espaços acadêmicos, onde se destacava por suas reflexões afiadas. Mas entre os mais humildes, parecia se sentir mais em casa. Foi por isso que suas visitas aos bairros mais pobres deram origem ao movimento dos padres das favelas, que ele mesmo impulsionou como arcebispo de Buenos Aires.

Para os moradores da vila 21-24, em Barracas, ele era “o padre Jorge”, velho conhecido, da época em que decidiu levar a palavra de Deus a pé, por todos os lados. Na vila 1-11-14, no Bajo Flores, diziam que costumavam vê-lo passando pelos becos estreitos, sempre vestido de preto e com passo apressado. Ele não tinha medo. Conhecia as pessoas, e era conhecido. Era cuidado. Esse era seu maior tesouro. Ele mesmo dizia, e seus colaboradores repetiam: o Papa Francisco acreditava que, nas favelas, a religiosidade era forte e a fé, profunda — e todos deveriam aprender com isso.

Das ruas de Buenos Aires para o mundo

O 11 de setembro de 2001 foi o dia que mudou o mundo, com o atentado às Torres Gêmeas. Nesse dia, parte do destino do Papa também se escreveu. Após as terríveis notícias que vinham de fora, Francisco participou de uma oração inter-religiosa no Obelisco. Leu a oração de São Francisco de Assis: “Faz de mim um instrumento da tua paz”. Quando terminou, saiu andando pela Diagonal Norte em direção à Cúria, apressado. Tinha muitas preocupações.

Uns 20 dias depois, ele viajaria para Roma, para o Sínodo dos Bispos. Muitos situam ali o início da liderança de Francisco no Vaticano. Havia sido nomeado cardeal apenas sete meses antes e era praticamente um desconhecido. Mas, por causa dos atentados, o cardeal de Nova York, Edward Egan, relator do encontro, teve que permanecer nos EUA. Bergoglio, relator adjunto, assumiu a fala principal do sínodo. E para muitos, foi ali que sua liderança na Igreja se revelou.

Francisco viveu no terceiro andar da Cúria até o seu último dia na cidade de Buenos Aires. A poucos metros, ficava a banca onde comprava o jornal argentino La Nacion todos os dias. O dono da banca ficou famoso depois que Francisco foi eleito Papa, porque o próprio Francisco ligou para avisar que não poderia continuar com a assinatura.

De segunda a sábado, contou Luis Del Regno, eles levavam o jornal até a Cúria às 5h30 da manhã. Francisco juntava os elásticos usados para prender o jornal e devolvia tudo numa caixinha, uma vez por ano. Foi assim até março, quando viajou a Roma para participar do conclave que escolheria o sucessor de Bento XVI. E nunca mais voltou.

“De segunda a sábado, entregávamos o jornal. Aos domingos, às 5h30, ele passava na banca, comprava o La Nación, conversava uns 10 minutos. Depois, pegava o ônibus 28 para ir a Lugano dar mate a crianças e pessoas doentes”, conta Luis.

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