Aung San Suu Kyi, conselheira de Estado de Mianmar, país que sofreu um golpe militar no dia 1º deste mês (YE AUNG THU/Getty Images)
Carla Aranha
Publicado em 2 de fevereiro de 2021 às 15h21.
Última atualização em 2 de fevereiro de 2021 às 16h57.
Em 2010, o cineasta francês Luc Bresson embarcou em uma das viagens mais audazes de sua vida. Fascinado pela história de Aung San Suu Kyi, filha do herói da independência de Mianmar que fora presa por clamar por democracia, Bresson pegou um avião e entrou no país asiático como turista, com uma pequena câmara, para filmar discretamente o longa Além da Liberdade, visto por milhões de pessoas no mundo todo.
Suu Kyi foi solta da prisão domiciliar, onde passou 15 anos de sua vida, durante a rodagem do filme, que conta sua trajetória. Na época, os militares preparavam-se para deixar o poder e convocar eleições parlamentares, mas o clima ainda era de tensão nas ruas. Não à toa, estrangeiros pensavam duas vezes antes de decidir visitar o país.
Nos anos seguintes, a bandeira de defensora da liberdade de "mamãe Suu", como é conhecida em Mianmar, a transformaria em um ícone pop internacional e uma referência na luta pela democracia. Em 2012, o ex-presidente Barack Obama fez questão de posar para fotos a seu lado durante uma viagem inédita a Mianmar, a primeira de um mandatário americano ao país. Na ocasião, Obama disse que a líder birmanesa era uma "inspiração para pessoas de todo o mundo”.
Aos poucos, os Estados Unidos começaram a retirar as sanções econômicas impostas durante a ditadura e as tensões internas amainavam. Ao mesmo tempo, Suu Kyi, hoje com 75 anos, firmava-se como uma figura central no partido Liga Nacional para a Democracia (LDN), que ganharia com folga as eleições de 2015. Era o fim do regime militar e o início da ascensão política de Suu Kyi.
Vencedora do Prêmio Nobel da Paz em 1991, Suu Kyi mergulhou no processo político no país em um momento no qual as alianças com militares e outros líderes da velha guarda já pareciam inevitáveis.
Aos olhos de seus conterrâneos, a heroína da luta pela liberdade passava para o lado do “inimigo”. A própria Suu Kyi deixou o jogo às claras. “Eu me engajei na política, e não como defensora ou ativista dos direitos humanos”, declarou.
Com a vitória do LND, Suu Kyi só não se tornou presidente por causa de uma cláusula da Constituição que impedia políticos casados com estrangeiros de assumir o cargo máximo do país. Desde 1972, ela é casada com o britânico Michael Aris, especialista na civilização do Tibet que conheceu durante seus anos de estudo na Universidade de Oxford.
Nomeada conselheira de Estado, Suu Kyi tentou manter sua imagem de defensora da democracia ao mesmo tempo que dependia cada vez mais do apoio dos militares para se manter no poder. Esse delicado jogo de forças veio à tona em 2016, quando o Exército passou a reprimir violentamente a minoria islâmica rohingya, acusada de atacar solados birmaneses no estado de Rakhine, no leste do país, e a musa da liberdade se manteve calada.
O derramamento de sangue só aumentou, com Suu Kyi ausente dos debates sobre o uso desproporcional de força e os direitos da minoria muçulmana. Quieta em sua casa à beira do lago, Suu Kyi se pronunciou só tardiamente e, mesmo de assim, de forma pouco contundente.
A Universidade de Oxford resolveu retirar seus retratos das paredes e, entre os grupos de direitos humanos, cogitou-se um movimento para cancelar títulos honorários que a líder birmanesa recebeu ao longo da vida.
Com o golpe militar desta segunda-feira, dia 1º, o futuro político de Suu Kyi é incerto. Segundo oficiais birmaneses, Suu Kyi encontra-se em prisão domiciliar. Seu paradeiro, no entanto, é desconhecido, assim como as condições de saúde em que se encontra.
“Fomos informados que não devemos nos preocupar com Suu Kyi, mas estamos preocupados. Será um alívio se pudermos ver uma foto dela”, disse um integrante do partido LDN que pediu anonimato, por medo de represálias.
Nesta terça, dia 2, o Conselho de Segurança da ONU deve se reunir para discutir o golpe de Estado em Mianmar e a prisão de Suu Kyi. Nesta terça, moradores de Yagon, principal cidade comercial e de negócios do país, bateram panela e cantaram “longa vida à mamãe Suu”.