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Corte de financiamento do governo Trump coloca mídia independente em risco no mundo

Redações de dezenas países, que dependem de recursos de agências americanas, correm para sobreviver à crise repentina

O financiamento norte-americano tem sido fundamental para o jornalismo independente há décadas (Jim WATSON/AFP)

O financiamento norte-americano tem sido fundamental para o jornalismo independente há décadas (Jim WATSON/AFP)

Agência o Globo
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Publicado em 6 de março de 2025 às 08h45.

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Galina Timchenko, editora e diretora-executiva do site Meduza, achava que estava preparada para qualquer adversidade. O veículo de jornalismo investigativo, baseado na Letônia e conhecido por suas reportagens críticas ao regime de Vladimir Putin, já havia lidado com ciberataques, ameaças legais e até tentativas de envenenamento de seus repórteres. Mas uma nova crise a pegou de surpresa: a suspensão abrupta do financiamento do governo dos Estados Unidos.

A Meduza, que recebia cerca de 15% de seu orçamento anual de programas financiados pelos EUA, entrou em uma grave crise financeira depois que o governo do ex-presidente Donald Trump cortou toda a assistência da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) e de outras agências federais em janeiro.

— A USAID ou o Departamento de Estado normalmente cumprem suas obrigações. Eles seguem as regras — disse Timchenko. — Agora, é algum tipo de mundo corrompido.

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Suprema Corte mantém US$ 2 bilhões em ajuda externa

Nesta quarta-feira (6), a Suprema Corte dos EUA rejeitou, por 5 votos a 4, um pedido do governo Trump para congelar US$ 2 bilhões em ajuda externa, mantendo uma decisão anterior que exigia que a Casa Branca fizesse os pagamentos já contratados. No entanto, o tribunal determinou que um juiz federal esclareça "quais obrigações o governo deve cumprir", o que pode levar o caso de volta à Suprema Corte.

O financiamento norte-americano tem sido fundamental para o jornalismo independente há décadas. Só a USAID, o Departamento de Estado e a National Endowment for Democracy (NED), organização sem fins lucrativos financiada pelo governo, destinavam anualmente cerca de US$ 180 milhões para apoiar veículos de imprensa em dezenas de países. Com os cortes, diversas redações enfrentam demissões e incertezas sobre sua sustentabilidade a longo prazo.

— É realmente um banho de sangue — disse Anya Schiffrin, professora da Universidade de Columbia especializada em mídia internacional. — Esses são os únicos jornalistas que estão responsabilizando governos em muitos lugares do mundo, e sem esse apoio, simplesmente não há outro dinheiro disponível.

Impacto global e demissões em massa

Na Ucrânia, país devastado pela guerra, a crise financeira das redações foi intensa. Nove em cada dez veículos de mídia no país recebem subsídios externos, e um deles, o Slidstvo, perdeu 80% de seu orçamento e agora tenta sobreviver por meio de crowdfunding.

A suspensão da ajuda também atingiu veículos no Chipre, Moldávia e Ilhas Salomão, que perderam entre 75% e 100% de seu financiamento. Em Malta, o Projeto Daphne, iniciativa de jornalismo investigativo, teve um subsídio de US$ 144 mil cancelado.

— Estamos falando de mídia iraniana exilada, de organizações sírias e libanesas que cobrem conflitos críticos — disse Clayton Weimers, diretor da Repórteres Sem Fronteiras dos EUA.

Nos Estados Unidos, a administração Trump intensificou sua ofensiva contra a imprensa. O presidente da Comissão Federal de Comunicações (Federal Communications Commission, FCC), Brendan Carr, ordenou investigações sobre a PBS, NPR e Comcast. Além disso, Trump amplificou teorias conspiratórias sobre veículos como Politico e restringiu o acesso da Associated Press.

Teorias da conspiração e reação conservadora

Grupos ligados a Trump têm atacado organizações como a Organized Crime and Corruption Reporting Project (O.C.C.R.P.), que investigou esquemas de corrupção envolvendo bancos globais e políticos. Fundada em Amsterdã, a O.C.C.R.P. afirma que seu trabalho levou a mais de 730 prisões e US$ 10 bilhões em multas desde 2006.

— Isso é uma bênção para ditadores e autocratas ao redor do mundo — disse Drew Sullivan, cofundador da O.C.C.R.P., que perdeu 38% de seu orçamento, o equivalente a US$ 7 milhões. Com os cortes, a organização precisou demitir 43 funcionários e reduzir em 20% as horas de trabalho do restante da equipe.

O ex-funcionário do governo Trump Mike Benz tem sido uma das principais vozes contra o financiamento da mídia internacional. Ele alega que a ajuda externa é usada para promover a censura sob o pretexto de democracia e transparência. Suas declarações foram amplificadas em podcasts de figuras da direita, como Joe Rogan, Tucker Carlson e Donald Trump Jr.. O próprio Elon Musk compartilhou postagens de Benz no X, afirmando que "a USAID tem pagado organizações de mídia para publicar sua propaganda".

Futuro incerto para o jornalismo independente

A busca por novos financiadores tornou-se urgente. Enquanto países como Alemanha e Noruega tentam suprir parte da lacuna, os valores são insuficientes. Além disso, grandes fundações privadas reduziram suas contribuições.

A Open Society Foundations, rede filantrópica de George Soros, cortou parte de seu financiamento à mídia em 2023. Já a Knight Foundation e a Ford Foundation passaram a priorizar veículos de comunicação locais nos EUA.

Na semana passada, o Fórum Global para o Desenvolvimento da Mídia publicou um apelo, assinado por mais de 100 organizações, pedindo que doadores ajudem as redações em crise.

Para veículos como a Tracoda, especializada em análise de dados sobre corrupção na América Latina, a situação é crítica. Fundada em El Salvador e com atuação no Panamá, a organização perdeu todo o seu orçamento da USAID e da NED, totalizando US$ 500 mil.

O fundador Luis Villaherrera foi obrigado a demitir 15 de seus 16 funcionários e encerrar contratos de sete colaboradores.

— Paralisamos quase tudo. Estamos tentando arrecadar dinheiro com governos europeus e doadores privados, mas está ficando realmente difícil — disse Villaherrera.

Enquanto isso, a Suprema Corte ainda pode decidir o destino do financiamento nos próximos meses.

(Matéria do New York Times disponibilizada pela Agência O Globo)

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