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Coronavírus, áudios e quase impeachment: o que levou à nova crise no Peru

O Congresso decidiu não afastar o presidente Martín Vizcarra. Mas ter o pior cenário de coronavírus na América e a herança da corrupção são desafios no país

Vizcarra (em pé) em audiência de impeachment: Congresso decidiu não afastar o presidente  (Presidência Peruana/Handout/Reuters)

Vizcarra (em pé) em audiência de impeachment: Congresso decidiu não afastar o presidente (Presidência Peruana/Handout/Reuters)

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Carolina Riveira

Publicado em 19 de setembro de 2020 às 06h00.

Como se ser o país latino-americano com a maior taxa de mortes per capita por coronavírus não fosse o suficiente, o Peru viveu nesta semana uma tempestade política. O desfecho de parte dela veio nas primeiras horas deste sábado, 19, quando o Congresso votou para arquivar o processo de impeachment contra o presidente Martín Vizcarra.

Após dez horas de debate no plenário, que chegaram ao começo da madrugada, somente 32 dos 130 congressistas votaram a favor do impeachment.

O processo contra Vizcarra surgiu após o vazamento de áudios do presidente na semana passada. Seu Ministério da Cultura teria feito contratos supostamente irregulares com o cantor Richard Cisneros para consultorias, ao custo de cerca de 10.000 dólares. Nos áudios, o presidente aparece pedindo para que assessoras mintam sobre a proximidade do cantor com o governo, dizendo que Cisneros não entrou mais de duas vezes na sede da presidência.

Para um país que já teve contratos bilionários com a empreiteira brasileira Odebrecht levando todos os ex-presidentes a serem denunciados nos últimos dois anos, o caso de Vizcarra não está entre os maiores escândalos da história recente peruana.

Ainda assim, parte do Congresso correu para tentar fazer dos áudios -- vazados de dentro do gabinete do presidente -- uma chance de arranhar sua imagem ante a opinião pública. Pela velocidade com que o caso foi levado ao plenário, o impeachment passou a ser chamado de express e questionado por parte dos analistas peruanos.

"Até mesmo uma parcela dos opositores vinha afirmando que, embora haja motivo para uma investigação por parte do Ministério Público, e até para uma comissão do Congresso, o caso não sugere uma 'incapacidade moral permanente' da magnitude de um impeachment express, sem investigação e só com base nos áudios", diz a socióloga María Isabel Remy Simatovic, pesquisadora do Instituto de Estudos Peruanos (IEP), que falou à EXAME antes da conclusão da votação.

O impeachment é só a ponta do iceberg dos embates recentes entre Vizcarra e o Congresso. Em seus dois anos no cargo, que assumiu em 2018, o presidente vem tentando implementar reformas anticorrupção, o que lhe garantiu popularidade alta entre a população.

Nas pesquisas do IEP, sua aprovação ultrapassou incríveis 90% no começo da crise do coronavírus. Embora o número tenha caído para a casa dos 40% com o agravamento da pandemia no país, o presidente ainda goza de relativo apoio popular.

Vizcarra já está ele próprio na presidência devido a um afastamento: ele era vice-presidente na chapa do economista Pedro Pablo Kuczynski, o PPK, ex-banqueiro eleito em 2016. Vencedor na eleição com a promessa de reformas liberais e de uma gestão sem corrupção, PPK renunciou em 2018 após ser envolvido nos escândalos da Odebrecht e terminou sendo preso.

“Os problemas do áudio de Vizcarra dificilmente são comparáveis aos subornos multimilionários dos quais participaram os ex-presidentes”, diz Samuel Rotta, vice-diretor executivo da Proética, organização de combate à corrupção peruana e capítulo da Transparência Internacional no Peru.

Vizcarra chega para votação do impeachment: pedido de afastamento por "incapacidade moral" (AFP/AFP)

Rotta afirma que, embora o caso precise ser investigado e possa atrapalhar a imagem do presidente, parte dos políticos que encabeçaram o impeachment estão, eles próprios, envolvidos até o talo em investigações de corrupção. Um dos líderes do movimento para derrubar Vizcarra foi o presidente do Congresso, Manuel Merino, do partido de centro-direita Ação Popular.

Merino, que assumiria a presidência no caso de afastamento (já que Vizcarra não tem um vice), tentou nos últimos dias conseguir o apoio das Forças Armadas para o impeachment. O fato foi, segundo os analistas ouvidos, um dos motivos que levou parte da oposição a se manifestar contra o impeachment. A ânsia de Merino em fazer a votação andar também levantou suspeitas sobre como o áudio de Vizcarra foi vazado.

Se declararam contra o impeachment até grupos como o de Keiko Fujimori, filha do ex-ditador Alberto Fujimori e candidata nas últimas eleições presidenciais -- e também envolvida com escândalos da Odebrecht.

Ao mesmo tempo, uma parte da oposição, embora soubesse que o impeachment tinha poucas chances de prosperar, pode ter aproveitado os holofotes negativos em Vizcarra. "Há os que apenas detestam o presidente e queriam vê-lo de joelhos em uma sessão de impeachment", diz Remy, do Instituto de Estudos Peruanos.

A Lava-Jato peruana

As próximas eleições peruanas, marcadas para abril de 2021, também entram no cenário. O Peru não permite reeleição presidencial por dois mandatos seguidos. De qualquer forma, Vizcarra disse que não irá se candidatar no ano que vem. "Sou um homem de palavra", disse no ano passado sobre o caso, dizendo que estaria fora da eleição mesmo que os tribunais mudassem a regra.

O Peru, como o Brasil, vive uma profunda crise institucional diante dos casos de corrupção. Um marco trágico do momento peruano aconteceu em abril do ano passado, quando o ex-presidente Alan García se suicidou após receber ordem de prisão preventiva.

Depois do Brasil, o Peru foi provavelmente o país mais afetado pelos escândalos da Odebrecht, que admitiu ter pago propina em ao menos 12 países.

Presidente do Peru entre 1985 e 1990 e novamente de 2006 a 2011, García foi alvo de um pedido de prisão devido à investigação de propinas que teria recebido da Odebrecht para a construção de uma linha de metrô.

As investigações no Peru, incluindo em parceria com procuradores brasileiros, se intensificaram após um acordo de leniência fechado em fevereiro de 2019 entre a Odebrecht e a Justiça peruana.

García e PPK não são os únicos. Dos presidentes dos anos 2000 e 2010, todos foram denunciados. Completam a lista Alejandro Toledo (2001-06), que está em prisão domiciliar nos Estados Unidos por negociação de propinas com a Odebrecht em troca de concessão de obras.

Ollanta Humala (2011-16) foi em 2017, junto com a esposa, Nadine, e ainda responde na Justiça ter embolsado uma parte das doações milionárias feitas para sua campanha.

PPK: o presidente peruano eleito em 2016 renunciou após aparecer em vídeo negociando propina (Paco Chuquiure/Reuters)

Vizcarra assumiu no lugar de PPK prometendo reformas. O auge do embate com o Legislativo veio no ano passado, quando o presidente dissolveu o Congresso e convocou novas eleições.

"Há um embate entre o presidente e vários partidos desde essa decisão, que teve grande apoio da população. E a relação não melhorou com a eleição do novo Congresso", diz o cientista social e economista Marcelo Santos, professor especialista em relações na América Latina na Unesp de Araraquara. 

Neste ano, já sob o novo Congresso eleito, o Peru decretou também o fim da imunidade parlamentar.

Os parlamentares se viram praticamente forçados a aprovar a medida em meio à pressão da população e à popularidade de Vizcarra.

Agora, passado o impeachment, as reformas eleitorais voltam ao debate. O Peru tem até 28 de setembro para aprovar mudanças na legislação eleitoral a tempo de serem aplicadas já nas próximas eleições.

As mudanças exigiriam mais medidas de transparência nas contas eleitorais dos partidos e maiores punições aos que as descumprirem. “A resistência às novas regras parece ser outro dos fatores em jogo na conjuntura atual”, diz Rotta, da Proética.

Vizcarra carrega pacote de mantimentos em meio à crise da covid-19: apesar do caos peruano, sua popularidade segue alta (Ernesto BENAVIDES/AFP)

O pior país no combate ao coronavírus

A pandemia trouxe sua dose adicional de caos ao governo. Com seus 32 milhões de habitantes, o Peru tem mais de 30.000 mortes por covid-19.

O Peru é o segundo país do mundo com maior taxa de mortalidade: são 946 vítimas da covid-19 por milhão de habitantes, atrás de San Marino, segundo o site Worldometers. O Brasil é o sétimo, com 638 mortes por milhão.

O sistema de saúde peruano colapsou e faltaram leitos de UTI em meio à crise.

O país tem um modelo de saúde fragmentado, similar ao do Brasil antes do SUS, e com investimento em saúde considerado baixo para os padrões mundiais.

Os peruanos tinham na casa dos 1.000 leitos de UTI no começo da crise, um quinto do que tinha só a cidade de São Paulo antes da pandemia. O governo tentou implementar lockdowns rigorosos, mas a taxa de 80% da população na informalidade tornou a tarefa quase impossível.

Enfermeiras na periferia de Lima: Peru tem a maior taxa de mortalidade por covid-19 da América Latina (Ernesto BENAVIDES/AFP)

Além dos desafios de saúde, o governo terá ainda de lidar com a crise econômica gerada pelo vírus. No último cálculo, em junho, o Fundo Monetário Internacional projetava queda de 14% na economia peruana neste ano, pior do que os 9% previstos em abril. No Brasil, a projeção de junho do FMI era de 10,5% e a média global, de queda de 4,9%.

A soma entre os estragos da pandemia e a desconfiança na política enfraquecem ainda mais as instituições do país.

“A crise de representação no Peru, no entanto, não se inicia com as descobertas do caso Lava-Jato. É muito anterior”, diz Remy, do Instituto de Estudos Peruanos.

A pesquisadora critica o que considera uma “caça às bruxas” que se instalou no país em meio às investigações de corrupção, mas afirma que o sistema precisa de reformas. “O sistema de representação, não só política mas social, está em crise, e a classe política se destrói permanentemente.”

Em dois anos, o Peru teve renúncia, pedidos de impeachment, ex-presidentes presos, um vice virando presidente, um novo Congresso e uma profunda tragédia de saúde em meio à pandemia. As campanhas para o próximo ciclo eleitoral já estão começando a se movimentar, mas deixam escancarados os desafios que o país ainda tem pela frente para se recuperar -- do coronavírus e da corrupção.

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