Apoiadores de Evo Morales correm de gás lacrimogêneo. Bolívia. 15 de novembro de 2019. (Danilo Balderrama/Reuters)
Reuters
Publicado em 16 de novembro de 2019 às 10h42.
Última atualização em 16 de novembro de 2019 às 13h18.
Confrontos entre forças de segurança e produtores de coca bolivianos leais ao ex-presidente Evo Morales deixaram oito mortos e mais de 100 feridos na noite de sexta-feira, disse o ouvidor regional à Reuters, levando Morales a denunciar um “massacre”.
Morales renunciou sob pressão da polícia e das Forças Armadas da Bolívia no domingo passado, depois que relatório da Organização dos Estados Americanos (OEA) apontou fraude eleitoral na vitória do então presidente na votação de 20 de outubro. Ele então se asilou no México.
O esquerdista e ex-produtor de coca chamou sua saída do poder de “golpe” e criticou as crescentes acusações de repressão dura pelas forças de segurança bolivianas.
“Os líderes do golpe massacram povos indígenas e humildes porque elas pedem por democracia”, disse Morales no Twitter na sexta-feira, após relatos de mortes.
A violência na Bolívia se soma a uma onda de agitação na região, incluindo no vizinho Chile, onde protestos contra as desigualdades sociais saíram de controle e deixaram pelo menos 20 mortos.
O ouvidor regional de Cochabamba, Nelson Cox, disse que os registros hospitalares na região de cultivo de coca mostram que a “grande maioria” das mortes e ferimentos de sexta-feira foi causada por disparos de arma de fogo. Ele chamou a reação das forças de segurança da região de “ato de repressão”.
“Estamos trabalhando com a ouvidoria nacional para realizar autópsias para determinar a causa da morte e buscar justiça para essas vítimas”, afirmou Cox à Reuters em entrevista na manhã de sábado.
Os apoiadores de Morales continuam agindo, bloqueando as principais vias, cortando oleodutos e lançando protestos em massa nas ruas de La Paz, El Alto e nas regiões de cultivo de coca há muito tempo leais a ele.
Embora a capital La Paz estivesse calma no sábado de manhã, os bloqueios nas rodovias provocaram pânico nas ruas, com muitos correndo para acumular mantimentos, já que os suprimentos estavam diminuindo e os preços subiram.
O ouvidor nacional da Bolívia disse na sexta-feira que o total de mortes atingiu 19 desde as eleições de 20 de outubro, número que se acelerou na última semana.
A crescente quantidade de corpos levou Morales a adotar um tom mais conciliatório com o governo da presidente interina, Jeanine Añez, nos últimos dias.
“Por uma questão de democracia, se eles não querem que eu participe, não tenho problema em não participar de novas eleições”, disse Morales à Reuters em entrevista na Cidade do México.
"No rio revolto está o lucro do pescador", praguejou o taxista Mario na manhã de ontem em La Paz. Ele acabara de receber uma chamada da central de táxi para a qual presta serviços informando que em um posto da Zona Sul a gasolina estava sendo vendida a B$ 10 o litro. O preço normal é B$ 3,74.
O desabastecimento de combustíveis é um dos sintomas mais visíveis para a população de La Paz da crise que se instalou no país andino desde que vieram à tona as suspeitas de fraude nas eleições de 20 de outubro. A maioria dos postos de combustível está fechada, cercada de tapumes de madeira e zinco para evitar depredações. Os poucos postos abertos têm filas quilométricas que demoram até duas horas. Isso fez florescer um mercado negro no qual a gasolina é vendida pelos olhos da cara. O esquema funciona em vielas estreitas nas quais homens desconfiados entregam os galões de combustível.
O motivo da falta de combustível em La Paz são os bloqueios em rodovias que dão acesso à capital boliviana feitos por apoiadores do ex-presidente na região do Altiplano.
Anteontem a YFPB, a estatal de combustíveis, comunicou oficialmente o risco de desabastecimento. Àquela altura mais da metade dos postos da cidade já estava fechada. Jeanine anunciou um plano conjunto entre os ministérios dos Hidrocarburetos, Defesa, Exército e Polícia Nacional para normalizar o abastecimento.
Além de gasolina, começam a se tornar escassos alguns itens básicos de alimentação como carne e verduras. Isso também provocou aumento de preços. Em alguns mercados, o litro de leite que normalmente custa B$ 6, está a B$ 8. A dúzia de ovos foi de B$ 9 para B$ 13, o quilo do peito de frango aumentou de B$ 29 para B$ 35 e o pé de alface que custava B$ 4 sai a B$ 8.
Questionada duas vezes sobre quando pretende deixar o governo, a autoproclamada presidente interina da Bolívia, Jeanine Áñez, não respondeu à pergunta. Segundo ela, a data de sua saída vai depender do andamento dos trabalhos para a realização de novas eleições gerais no país, sua prioridade. A Constituição estipula prazo de 90 dias que termina em 22 de janeiro de 2020.
Ontem, Jeanine concedeu sua primeira entrevista a correspondentes internacionais. Ladeada pela ministra da Comunicação, Roxana Lizárraga, e pelo ministro da Economia, José Luiz Parada, ela entrou no salão central do Palácio Quemado, sede do governo boliviano, aparentando estar à vontade na nova função.
Em meio a negociações com o Movimento ao Socialismo (MAS), partido do ex-presidente Evo Morales que detém dois terços do Parlamento, para pacificação do país, Jeanine contrariou a principal demanda dos socialistas, a garantia de que Evo poderá voltar ao país sem sofrer represálias. Segundo ela, se o ex-presidente voltar, terá de enfrentar na Justiça acusações de fraude eleitoral e denúncias de corrupção.
Em entrevista à agência Reuters, Evo afirmou que está disposto a não participar das eleições. "Pela democracia, se eles não querem que eu participe, não tenho nenhum problema. Só me pergunto por que tanto medo do Evo", afirmou na Cidade do México onde está asilado. O ex-presidente disse ainda que não sabe quem poderia ser o candidato da esquerda caso não participe das eleições.
Jeanine se posicionou de maneira enérgica no campo contrário ao de países governados pela esquerda como México, Cuba, Venezuela e Nicarágua.
O governo cubano determinou o retorno dos médicos e colaboradores que enviou à Bolívia como parte de um programa de cooperação com a gestão de Evo após classificar de "falsas" as acusações do governo de Jeanine de que cubanos teriam financiado protestos. Ontem, Havana denunciou a "prisão injusta" da chefe de sua equipe médica na Bolívia, Yoandra Muro. Outros cinco integrantes da missão estão presos.
Parada, ministro interino da Economia, chegou a prever ontem a derrocada econômica do presidente eleito da Argentina, Alberto Fernández. Pouco depois, a nova chanceler, Karen Longáric, anunciou o rompimento de relações com o governo Nicolás Maduro e a expulsão de centenas de funcionários da embaixada venezuelana em La Paz. Karen também anunciou que a Bolívia deixará a Alba (Aliança Bolivariana) e está avaliando sair da Unasul (União das Nações Sul-americanas).
Autoproclamada em uma sessão esvaziada do Congresso e alvo de contestações internas e externas por não ter o número mínimo de parlamentares previsto em lei, Jeanine disse que impugnará a sessão realizada na quinta-feira, 14, pelo Senado, que escolheu a nova mesa diretora da Casa, sob comando do MAS. O motivo, segundo Jeanine, é a falta de quórum na sessão.
A seguir, os principais trechos da entrevista concedida por Jeanine na sede do governo:
"Espero que tenhamos tempo e a madurez suficientes para levar a cabo o mais rápido possível primeiro a eleição de administradores do processo eleitoral que sejam transparentes, com personalidade reconhecida, capazes, com méritos e que demonstrem aos cidadãos bolivianos que vão fazer as coisas bem. Que não vai haver manipulação dos resultados de um processo eleitoral. O país agora demanda paz e eleições transparentes."
"Golpe de Estado é o que sofremos, nós bolivianos, em 20 de outubro, com eleições descaradamente fraudulentas."
"Evo Morales, em sua qualidade de asilado político, não poderia estar fazendo declarações públicas. Essa é uma explicação que o Estado mexicano tem que dar e é objeto de uma reclamação feita pela chancelaria. Ele está violando a legislação relativa a um exilado."
"Os presidentes dos tribunais eleitorais que eles indicaram estão privados de liberdade e isso tem como consequência o título de delito eleitoral. Neste momento, estamos tratando de formar um Tribunal Eleitoral probo e qualificado que tomará a decisão se um partido político envolvido em fraudes eleitorais deve sofrer as sanções pertinentes."
"Ele sabe que tem contas pendentes com a Justiça boliviana. Se o ex-presidente quer voltar, que volte, mas terá de responder à Justiça. Há um delito eleitoral e o tribunal que vamos eleger terá de emitir uma decisão sobre isso. Além do mais, há muitíssimas denúncias de corrupção contra o seu governo que estão impunes, pois o Judiciário estava às ordens do Executivo."
"A mesa dos negociadores continua porque as mobilizações incentivadas pelo MAS continuam. E devo dizer que continuam de maneira muito mal intencionada. Pois não se pode causar temor na população como eles estão fazendo. E um dos mecanismos de manipulação era as redes sociais."
"Insisto que este é um governo de transição e no menor tempo possível queremos levar adiante a convocatória de eleições que é nosso objetivo. Eu me comprometo a levar às eleições transparentes. Se conseguirmos isso até 22 de janeiro, tenho a certeza de que então vamos sair."
"Quanto ao ingresso da Bíblia quero dizer que sou uma mulher de fé, de Deus. Respeito todas as tradições, mas creio que se estou no Palácio, a Bíblia também vai estar, pois me sinto mais fortalecida quando apelo a uma oração para poder atuar bem."
O ministro da Economia do governo interino, José Luiz Parada, citou a política econômica do governo Jair Bolsonaro como exemplo a ser seguido. Segundo ele, a reforma da Previdência do Congresso brasileiro é um exemplo de como a responsabilidade fiscal pode ser uma ferramenta para que o Estado tenha condições econômicas de dar conta das demandas sociais.
Parada disse que pretende fazer uma transição na economia local. "Temos que fornecer a informação que não foi transparente durante 14 anos (do governo Evo Morales). E dar aos novos governantes toda a realidade da situação econômica do país que lhes permitam elaborar uma política de desenvolvimento clara. Pois os governos do socialismo do século 21 fizeram políticas partidárias", disse. Nos 14 anos do governo Evo, a Bolívia cresceu em média 5% ao ano e a miséria foi reduzida pela metade.
(Com Associated Press)