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Como o rei Henrique VIII virou uma peça fundamental no Brexit

Monarca que rompeu com a poderosa Igreja Católica está no centro de um novo momento decisivo na história britânica: a separação da UE

Rei Henrique VIII: lei editada durante o seu reinado será usada na transição do Brexit (Carl Court / Staff/Getty Images)

Rei Henrique VIII: lei editada durante o seu reinado será usada na transição do Brexit (Carl Court / Staff/Getty Images)

Gabriela Ruic

Gabriela Ruic

Publicado em 15 de julho de 2017 às 06h00.

Última atualização em 5 de outubro de 2017 às 10h30.

São Paulo – O Reino Unido deu um enorme passo em direção à saída da União Europeia (UE) nesta semana, depois que o governo da conservadora Theresa May tornou público o aguardado projeto de lei que prevê que a legislação do bloco não se aplica mais ao país. O Brexit, agora, começa a tomar corpo com a chamada “Great Repeal Bill” (Lei da Revogação).

O projeto será votado nos próximos meses e é mais um teste de sobrevivência para May. Contudo, não bastassem as divisões no Parlamento que vão dificultar por si só esse processo, um detalhe no texto deve trazer dores de cabeça à premiê: o fantasma de Henrique VIII, o polêmico monarca que regeu a Inglaterra entre 1509 e 1547 e rompeu com a Igreja Católica.

Frustrado com a demora do Parlamento na aprovação de leis, Thomas Cromwell, braço-direito de Henrique VIII, editou em 1539 uma lei que dava ao rei os poderes de legislar por meio de proclamações, sem que fosse necessário consultar a casa. E são justamente os poderes previstos nesse antigo instrumento que o governo quer usar hoje no desligamento do bloco.

O chamado “Estatuto das Proclamações” (apelidado de “Poderes de Henrique VIII”) e sua aplicação não são novidade na história britânica. Contudo, sua invocação no Brexit é vista com assombro por especialistas e parlamentares, especialmente por conta da sua abrangência na ocasião da aprovação da Lei da Revogação.

“Essa lei propõe o uso dos poderes em uma escala e extensão jamais vistas”, explicou a EXAME.com Joelle Grogan, professora de Direito da Universidade de Middlesex e doutora em legislação europeia pela Universidade de Oxford. “Os limites para sua aplicação são estreitos e não há muitos mecanismos para freá-la”, considerou.

O documento apresentado pelo governo britânico nesta semana visa revogar o tratado de 1972 que levou o Reino Unido para dentro a UE e que determinou, ainda, que a legislação europeia se sobreporia às leis aprovadas pelo Parlamento britânico.

Com o objetivo de evitar vácuos legais, o sistema jurídico britânico irá integrar todo o arcabouço legal europeu hoje em vigor. Nem todas as regras, no entanto, se aplicam ao Reino Unido especificamente, tornando imprescindível o reexame de cada um dos atos legais.

E essa será uma tarefa de complexidade inédita: em 40 anos de relacionamento intenso, milhares de instrumentos legais editados pela UE passaram a valer no Reino Unido. Avaliar um a um levaria tempo e poderia gerar ainda mais insegurança jurídica num momento em que o Reino Unido precisa garantir a sua solidez institucional.

Para tornar o processo mais célere, a Lei da Revogação quer, por meio dos "Poderes de Henrique VIII", delegar aos ministros o poder de modificar a legislação relacionada à UE sem o exame parlamentar. Hoje, essas figuras podem emendar as leis secundárias, normas usadas para preencher os detalhes das leis primárias aprovadas pelo Parlamento.

“A Lei da Revogação foi desenhada para entregar a separação do bloco, mas também para trazer um certo nível de certeza para indivíduos e empresas nos dias seguintes ao Brexit”, esclarece Joelle, “porém, ela compromete todas as partes e não concretiza nenhum dos seus objetivos”, examina a pesquisadora.

Repercussão negativa

A nova lei tem o objetivo de facilitar a recomposição do sistema jurídico britânico, mas há quem veja nessa estratégia uma tentativa do governo de aplacar os poderes do Parlamento, onde May só tem a maioria graças a uma aliança controversa com o Partido Unionista da Irlanda (DUP) e por culpa do seu movimento atrapalhado de antecipar as eleições.

A vida de May, daqui em diante, continuará difícil, já que a oposição deixou evidente que a passagem da Lei da Revogação não acontecerá da forma como o governo deseja, ainda mais depois de o documento explicitar que não irá incorporar a Carta dos Direitos Fundamentais da UE sob justificativa de que o país já conta com garantias fundamentais suficientes.

Ainda assim, Trabalhistas e Liberais Democratas disseram que votarão contra a nova lei, se a Carta não for incorporada. E não é só essa resistência que a primeira-ministra terá de administrar: Escócia e País de Gales se irritaram ao notar que o documento proposto não menciona a devolução imediata de poderes às suas administrações no pós-Brexit.

Com todos os membros da oposição contra a Lei da Revogação e as reações negativas das nações que compõem o Reino Unido, bastariam cerca de 10 votos conservadores para derrotar essa proposta. Isso levaria May a uma nova crise que poderá custar o seu cargo e, dessa vez, ela não terá para onde correr.

 

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