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Como o ataque à refinaria saudita muda o jogo geopolítico no Oriente Médio

Para Simon Mabon, especialista em Oriente Médio, escalada na tensão entre Arábia Saudita e Irã podem provocar mais estragos no mundo

Ataque contra duas instalações petrolíferas da Arábia Saudita: para especialista, tensão entre Irã e sauditas pode causar problemas ainda maiores no mundo (Stringer/Reuters)

Ataque contra duas instalações petrolíferas da Arábia Saudita: para especialista, tensão entre Irã e sauditas pode causar problemas ainda maiores no mundo (Stringer/Reuters)

Gabriela Ruic

Gabriela Ruic

Publicado em 29 de setembro de 2019 às 06h00.

Última atualização em 29 de setembro de 2019 às 06h00.

São Paulo - O britânico Simon Mabon, professor de relações internacionais da Universidade de Lancaster, no Reino Unido, perdeu a conta de quantas vezes foi ao Oriente Médio, seu foco de estudo. Nos últimos anos, ele embarcou com frequência para o Líbano e os países do Golfo a fim de ter um contato mais próximo com o tema ao qual se dedica.

Autor de um dos clássicos sobre a rivalidade entre as grandes lideranças da região, o Irã e a Arábia Saudita, o livro Saudi Arabia and Iran: Power and Rivalry in the Middle East (Arábia Saudita e Irã: Poder e Rivalidade no Oriente Médio), ele é um poucos especialistas internacionais que de fato conhece o objeto de seu estudo.

Na semana passada, quando um ataque sem precedentes a duas instalações petrolíferas da Arábia Saudita afetou as cotações do petróleo, Mabon não estava entre os mais surpresos. Ele preparou um chá na cozinha de seu apartamento em Beirute e relaxadamente acompanhou as notícias. Também conversou com fontes na região ter uma visão abrangente do problema.

O estudioso britânico Simon Mabon

O estudioso britânico Mabon: “Uma guerra prejudicaria os sauditas” (Foto/Divulgação)

Para Mabon, o disparo de 25 mísseis balísticos e drones contra as refinarias sauditas representou mais um capítulo no conflito entre as grandes forças da região – mas com uma diferença importante. Dessa vez, houve repercussões mundiais, com a suspensão de metade da produção das instalações petrolíferas atingidas, o que afetou 6% do abastecimento global.

Em entrevista à EXAME, ele analisa os efeitos do ataque, seus possíveis desdobramentos e as raízes das disputas regionais, que ultrapassaram as fronteiras do Oriente Médio e podem provocar mais estragos no mundo.

Quais podem ser as repercussões geopolíticas e econômicas dos ataques às instalações petrolíferas da Arábia Saudita?

Simon Mabon - Está sendo travado um jogo bastante complexo entre os principais oponentes na região, a Arábia Saudita e o Irã. O ataque à refinaria saudita representou uma grande escalada de tensões e mudou um pouco as peças do tabuleiro geopolítico. Se os drones e mísseis que atingiram a Arábia Saudita foram realmente disparados de bases no Irã ou no Sul do Iraque, onde há forte presença de milícias apoiadas pelo governo iraniano, trata-se de uma clara demonstração de força e audácia dos iranianos.

Mesmo ação tenha partido dos rebeldes houthis, do Iêmen, que reivindicam o atentado, não muda muito, porque eles são financiados pelo Irã. A diferença é que, dessa vez, atingiram a maior refinaria de petróleo do mundo, com risco de desiquilibrar o fornecimento mundial e influenciar os preços do combustível em vários países. Isso é grave.

Pode acontecer de novo?

Simon Mabon - Sim. O Irã já provou que tem mísseis balísticos e outras armas com tecnologia suficiente para atingir alvos com precisão. É um fato público que o Irã fornece apoio logístico e financeiro para os houthis. E também já ficou claro que o Irã está jogando um jogo pesado, com a intenção de desestabilizar a Arábia Saudita, aliada dos Estados Unidos e inimiga dos aiatolás há décadas. Existe uma rivalidade histórica entre os dois países. Nesse momento, as cartas desse baralho geopolítico parecem estar mais favoráveis ao Irã, por isso ele pode estar colocando mais as mangas de fora.

Por que o Irã está em uma posição melhor em relação aos sauditas?

Simon Mabon - Há uma questão econômica importantíssima em jogo. Até o final do ano, o governo saudita espera abrir o capital da gigante petrolífera Aramco, com expectativas de arrecadar bilhões de dólares. Depois do ataque às plantas de petróleo, que suspendeu metade da produção no país, os investidores estão mais cautelosos. A Arábia Saudita também tem um plano para diversificar sua economia, chamado Visão 2030, e pretende atrair capital. A intenção é construir cidades inteligentes e hubs de tecnologia. Tudo isso precisa de investimento.

Como esses planos interferem na geopolítica da região?

Simon Mabon - Uma guerra só prejudicaria ainda mais o planejamento estratégico do reino saudita. Conflitos armados não combinam com investimentos. Só afugentam o capital. Por isso vai ser muito difícil vermos uma reação mais incisiva do governo saudita ou de seus aliados americanos.

O Irã então está usando essa situação para jogar mais pesado?

Simon Mabon - Sem dúvida. Os iranianos são mestres nessa arte. Eles sabem que não interessa para a Arábia Saudita, e, portanto, a seus aliados americanos, deflagrar uma guerra na região, o que traria impactos para a economia saudita e o restante do mundo. As reações devem se restringir a sanções econômicas e ataques aos houthis, no Iêmen, como já vem acontecendo. Mas as tensões vêm escalando de forma preocupante.

Desde quando o grau de tensões vem aumentando e quais são as principais causas?

Simon Mabon - Depois da invasão do Iraque, conduzida pelos Estados Unidos em 2003, a Arábia Saudita começou a temer uma presença crescente de forças apoiadas pelo Irã na região. Até 2003, terroristas dificilmente entravam no Iraque, por uma política de estado do ditador Sadam Hussein. Com a guerra, isso mudou. Havia também uma rivalidade entre Irã e Iraque. Esse cenário mudou nos últimos anos. As fronteiras ficaram mais maleáveis, de forma simbólica. Os sauditas e seus aliados passaram a se preocupar mais com a influência do Irã. Hoje, grupos como o Hezzbolah, que mantém fortes laços com o regime iraniano, estão presentes no Iraque, na Síria e no Líbano.

Por que esses grupos têm chamado mais a atenção?

Simon Mabon - O grupo deixou de ser apenas uma milícia armada para se tornar um importante agente político na região, o que é visto com grande preocupação pela Arábia Saudita, Israel e os Estados Unidos. No Líbano, o Hezzbolah ocupa assentos no Parlamento e no governo.

Formaram-se novos blocos de interesses na região, com impactos crescentes no restante do mundo?

Simon Mabon - Mesmo que esses novos interesses e aproximações geopolíticas não sejam declaradas, isso pode estar acontecendo. Existe também uma grande turbulência na região, com guerras na Síria e no Iêmen há anos. São as chamadas guerras por ‘procuração’ em que atores importantes da região, como a Arábia Saudita e o Irã, não lutam diretamente, mas fornecem recursos e armas para um lado do conflito.

Quando começou a rivalidade entre a Arábia Saudita e o Irã?

Simon Mabon - Esse conflito em raízes antigas, anteriores à revolução de 1979 que depôs o Xá Mohammed Reza Pahlevi, aliado do Ocidente, e transformou o país em uma república islâmica. Há diferenças religiosas e geopolíticas entre o Irã e a Arábia Saudita. O Irã é xiita e a Arábia Saudita, sunita, uma outra vertente do islamismo. Os sauditas são aliados históricos do Ocidente. Mas essa rivalidade é mais complexa do que parece.

O senhor pode explicar melhor?

Simon Mabon - A partir de 1979, a Arábia Saudita começou a financiar clérigos ao redor do mundo para difundir mais o wahabismo, movimento religioso sunita considerado bastante conservador. O nome faz referência ao teólogo Mohammed ibn´ al-Wahhab (1703-1792), que pregava uma espécie de valorização dos preceitos islâmicos. Ao mesmo tempo, o líder supremo do Irã à época, Ruhollah Khomeini, começou a propagar a ideia de para expandir a influência iraniana para além de suas fronteiras. As identidades sectárias e a divisão geopolítica na região ganharam ainda mais força depois da Primavera Árabe, em 2011, e agora chamaram atenção internacional ao repercutir em um dos principais focos de interesse ocidentais, a indústria de petróleo.

Por que esses movimentos se tornaram mais preponderantes nos últimos anos?

Simon Mabon - A Primavera Árabe colocou em xeque vários regimes e foi o estopim para a guerra na Síria. Aconteceram revoluções no Egito e no Iêmen. Uma das consequências na região foi uma certa fragmentação do tecido social e do poder. A Arábia Saudita e o Irã viram essa situação como uma oportunidade para aumentar sua influência, apoiando facções que passaram a lutar entre si. Estamos falando de suporte financeiro e militar. As rivalidades locais atingiram um nível muito maior.

Quais são as raízes históricas dessas grandes disputas regionais?

Simon Mabon - Boa parte do Golfo Pérsico fez parte do sistema colonial britânico. Só em 1971 os britânicos retiraram-se da região, que permaneceu um protetorado inglês até essa época. O Irã percebeu que poderia aproveitar o fim da presença britânica para estender suas fronteiras e tentar incorporar o Barein, que faz fronteira com o país. A Arábia Saudita, outra vizinha do Barein, foi totalmente contrária à ideia. O assunto foi resolvido de uma forma inteligente. O Barein se tornou independente e pôs fim às disputas entre o Irã e a Arábia Saudita. Mas o clima de animosidade já estava instalado, e tinha tudo para crescer.

Qual é o papel da Europa, dos Estados Unidos e outras potências mundiais nesse cenário turbulento e como é exercido hoje?

Simon Mabon - Pelo menos desde a década de 20 foi crescendo a consciência do papel da interferência externa entre os iranianos, que hoje a repelem com mais veemência. Em 1921, o Reino Unido conspirou a favor de um golpe de Estado que trocou uma dinastia por outra, colocando os Pahlevi no poder. Ao longo das décadas, essa influência, seja dos Estados Unidos ou de países europeus, foi se repetindo. Vemos isso acontecendo claramente na Síria, em que a Rússia e o Irã apoiam as forças do presidente Bashar Al-Assad e os Estados Unidos, Reino Unido e França estão do lado dos rebeldes. O interesse dos Estados Unidos e outros países pelo Oriente Médio não é gratuito. Por trás disso, existem importantes forças econômicas. A região, afinal, é rica em petróleo.

Enquanto a economia mundial continuar dependente do petróleo, essa situação não deverá mudar?

Simon Mabon - Provavelmente. Os próprios laços comerciais e diplomáticos entre a Arábia Saudita e os Estados Unidos se tornaram mais fortes logo depois da Segunda Guerra Mundial, com a economia americana em crescimento. Os Estados Unidos estabeleceram a importância estratégia do petróleo no final dos anos 40. Outros países, como o Reino Unido, fizeram o mesmo. Sinto dizer que não vejo o que acontece no Oriente Médio com bons olhos. Estamos assistindo uma escalada de um conflito regional que ultrapassou as fronteiras locais, afetando a economia mundial. É difícil prever o que acontecerá, mas não há dúvidas de que o clima de tensão cresceu muito.

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