Itália: o crime organizado movimenta mais de 50 bilhões de euros (61 bilhões de dólares) por ano, segundo Gratteri, que a considera a organização mais rica do mundo (iStock/Thinkstock)
AFP
Publicado em 13 de janeiro de 2021 às 12h56.
O maior julgamento da máfia italiana em mais de 30 anos começou nesta quarta-feira (13) na região sul da Calábria, com o objetivo de desferir um golpe severo à temida 'Ndrangheta, especializada no tráfico de cocaína.
No imponente tribunal de mais de 3.000 metros quadrados, especialmente preparado para este julgamento, 350 pessoas estarão sentadas no banco dos réus, incluindo supostas figuras-chave da organização criminosa.
"Hoje é um dia muito importante, porque vamos processar a 'Ndrangheta, uma máfia que deixou de ser um grupo de pastores que sequestravam pessoas para se tornar uma holding do crime", explicou o promotor do caso, Nicola Gratteri.
Na sala de audiências especialmente preparada para o julgamento, que acontece no centro de uma das regiões mais pobres da península, serão ouvidas 900 testemunhas e 400 advogados.
Cinquenta e oito testemunhas de acusação concordaram em quebrar 'a omerta', a lei do silêncio, para revelar os segredos do poderoso clã Mancuso e seus associados.
Uma lista ampla e variada de crimes que remontam à década de 1990 será processada, incluindo vários crimes sangrentos, bem como aqueles cometidos por empresários de colarinho branco e incluem assassinatos, tráfico de drogas, extorsão, lavagem de dinheiro e abuso de poder.
O julgamento "é a pedra angular na construção de um muro contra as máfias na Itália", disse Gratteri, que começou a investigação há quatro anos.
Gratteri, de 62 anos, se inspira nos dois lendários magistrados antimáfia, Giovanni Falcone e Paolo Borsellino, assassinados por ordem da máfia e famosos por presidir o primeiro grande julgamento contra a máfia siciliana na década de 1980, com o qual conseguiram desmembrar a temida organização.
Desta vez, no julgamento que deverá durar mais de dois anos, os principais intermediários do tráfico de cocaína entre a Europa e a América Latina vão se sentar no banco dos réus.
A 'Ndrangheta, que ficou rica e se expandiu graças ao tráfico de drogas e extorsão, conseguiu entrar no mundo corporativo, fundando empresas de fachada e usando laranjas para lavar seus lucros ilegais na economia legal.
Na Calábria, atinge toda a sociedade, obtém todas as licitações públicas, tanto das prefeituras como dos hospitais, passando pela gestão de cemitérios e até tribunais, destacam os especialistas.
De acordo com estimativas das autoridades antimáfia, a 'Ndrangheta na Calábria é composta por cerca de 150 famílias ou clãs, que por sua vez têm 6.000 membros e afiliados.
Sem contar com seus parceiros e aliados ao redor do mundo, os números são muito difíceis de determinar.
O crime organizado movimenta mais de 50 bilhões de euros (61 bilhões de dólares) por ano, segundo Gratteri, que a considera a organização mais rica do mundo.
"Parto da ideia de que é uma organização, do tipo empresarial, que funciona como uma multinacional poderosa, com um chefe no topo da pirâmide, e a seguir todos os outros membros", explicou Gratteri à AFP.
No julgamento, serão reveladas conexões com a política, a maçonaria e empresários, através de advogados, funcionários e agentes corruptos, e terá como foco a família Mancuso, o sanguinário clã da província de Vibo Valentia.
"O que mais impressiona é o poder do clã Mancuso, que consegue conviver com os aparatos do Estado, que estavam literalmente à sua disposição", comentou Gratteri após a onda de prisões ordenadas em dezembro de 2019 na Itália e na Europa e que levou ao julgamento.
Para o criminólogo Federico Varese, da Universidade de Oxford, a 'Ndrangheta faz parte da sociedade, não só está integrada, mas está envolvida em todas as atividades legais e ilícitas.
"O poder dessas famílias mafiosas é que controlam o território e dentro de seu próprio território fazem tudo", disse Varese.
"Se você quer abrir uma loja, se quer construir algo, tem que passar por eles. Porque eles são a autoridade", lamentou o promotor antimáfia, autor de vários livros sobre o assunto junto com o escritor Antonio Nicaso.
O ensaísta alertou que está preparando um livro sobre como as máfias, incluindo a 'Ndrangheta, se preparam para se infiltrar e lucrar com a reconstrução e os fundos para combater a pandemia do coronavírus.