Agência de notícias
Publicado em 9 de outubro de 2024 às 07h17.
A iminência de um ataque israelense contra o Irã, em resposta ao lançamento de quase 200 mísseis, na semana passada, trouxe à tona uma retórica que vem ganhando força e consistência em Teerã desde o início das guerras pós-7 de outubro: a opção nuclear como ferramenta de sobrevivência do regime. Observadores internacionais apontam para o aumento do volume de material enriquecido, necessário para uso militar, autoridades locais dizem estar a “uma decisão de distância” de obter uma bomba e países ocidentais veem uma suposta cooperação nuclear com a Rússia.
Nos últimos meses, o país tem ampliado o ritmo de enriquecimento de urânio — segundo relatório da Agência Internacional de Energia Atômica, em agosto o Irã tinha 142 kg de urânio enriquecido a 60%, próximo do necessário para uso militar (mais de 90%), e 814 kg de urânio enriquecido a 20%. Os valores são 16% mais altos do que em junho.
“A produção e acumulação contínuas de urânio altamente enriquecido pelo Irã, o único Estado não-nuclear a fazê-lo, aumenta as preocupações da agência”, afirmou o diretor-geral da Agência Internacional de Energia Atômica (Aiea), Rafael Mariano Grossi, em relatório que detalhou o material acumulado. Em junho, 20 países que integram a agência aprovaram uma resolução não-vinculante condenando o Irã e pedindo o fim das restrições.
O Irã, um dos primeiros signatários do Acordo de Não Proliferação Nuclear (NPT), em 1968, alega que seu programa nuclear tem fins pacíficos, e que as armas atômicas são vetadas pelo Islã, como o próprio Khamenei declarou em uma fatwa (decreto religioso) emitido em 2003. O governo ainda vê como desproporcional a pressão da Aiea, alegando que Israel, que não integra o NPT e que teria até 90 ogivas operacionais, não é alvo do mesmo escrutínio. Mas o acúmulo de material nuclear, somado à retórica elevada de lideranças locais, põem em xeque essa premissa.
Em maio, semanas depois de uma troca de ataques entre Israel e Irã que deixou a região à beira de uma guerra, outro ex-chanceler insistiu na carta nuclear, em tom ainda mais ameaçador e direcionado aos israelenses.
"Não tomamos a decisão de construir uma bomba nuclear, mas se a existência do Irã for ameaçada, não haverá escolha a não ser mudar nossa doutrina militar", disse Kamal Kharrazi, hoje conselheiro de Khamenei. — No caso de um ataque às nossas instalações nucleares pelo regime sionista, nossa dissuasão mudará.
Nesta terça-feira, o atual chanceler, Abas Araghchi, fez uma nova ameaça, agora diante de um iminente bombardeio israelense, em resposta aos mísseis lançados pelo Irã contra Israel, na semana passada, e que teria como alvos as instalações nucleares iranianas.
"Aconselhamos o regime sionista (Israel) a não testar a resolução da República Islâmica. Se qualquer ataque contra nosso país ocorrer, nossa resposta será mais poderosa", disse Araghchi.
A agressividade dos discursos, somada à menção recorrente à “carta nuclear”, pode ser explicada pelas mudanças regionais desde os ataques do Hamas. A guerra israelense em Gaza, os ataques contra os houthis no Iêmen e contra milícias pró-Teerã no Iraque e, mais recentemente, a ofensiva contra o Hezbollah no Líbano testaram o chamado “Eixo da Resistência”, elemento crucial de dissuasão do Irã contra Israel.
Ações de inteligência dentro do território iraniano, como o asssassinato do líder político do Hamas, Ismail Haniyeh, em Teerã, e a interceptação de boa parte dos mísseis lançados contra Israel (com o apoio dos EUA) abalaram outros dois pilares defensivos. E um Benjamin Netanyahu cada vez mais disposto a uma guerra por ele planejada há décadas acendeu novos sinais de alerta.
"O enfraquecimento de suas capacidades contra Israel forçará Teerã a desenvolver novas fontes de dissuasão, aumentando a pressão para expandir o programa nuclear", disse Gregory Brew, analista sênior sobre Irã e energia na consultoria Eurasia Group, ao Wall Street Journal. "O que provavelmente veremos é mais pressão para avançar o programa e avisos de que ele pode não permanecer ‘pacífico’".
Em relatório, publicado em setembro, o site Iran Watch, que monitora as atividades armamentistas do Irã, afirmou que caso Khamenei reverta sua fatwa de 2003 (o que é possível dentro da lei islâmica) e dê o sinal verde para uma bomba, seria necessária uma semana para obter o material necessário para cinco ogivas. O processo final poderia levar de algums meses até um ano.
Uma das linhas centrais de Netanyahu sobre o Irã é a de que ele “fará o necessário” para impedir que o país obtenha armas nucleares, e os israelenses não descartam atacar instalações conhecidas, como a central de Natanz. Especialistas questionam a decisão, e sugerem que isso poderia acelerar os planos nucleares iranianos: boa parte das centrífugas usadas no enriquecimento estão no subterrâneo ou dentro de montanhas, e o país já usou, no passado, instalações clandestinas ao redor de seu vasto território. Até o presidente dos EUA, Joe Biden, se disse contra a ideia.
"Um ataque [de Israel], acredito, simultaneamente fortaleceria a determinação iraniana de adquirir armas nucleares, sem destruir permanentemente sua capacidade de atingir esse objetivo", disse, em entrevista ao Boletim de Cientistas Atômicos, James Acton, do Fundo Carnegie pela Paz Internacional. "E eu acho que o Irã provavelmente expulsará os inspetores [da Agência Internacional de Energia Atômica] e tentará fabricar urânio altamente enriquecido para armas nas usinas de centrífugas".
Em setembro, surgiu mais um fator de risco: EUA e Reino Unido apontaram para uma cooperação crescente entre Rússia e Irã no setor nuclear, que poderia incluir uma suposta assistência militar. Moscou tem 5.580 ogivas operacionais e não-operacionais, e saiu de todos os acordos de controle de arsenais com os EUA. Russos e iranianos têm acordos no campo de energia atômica desde os anos 1990, e a central de Bushehr tem tecnologia russa.
"A Rússia está compartilhando tecnologia que o Irã busca, e esta é uma via de mão dupla, incluindo questões nucleares, bem como algumas informações espaciais", afirmou, no mês passado, o secretário de Estado americano, Antony Blinken, citando a crescente parceria entre Teerã e Moscou desde o início da guerra na Ucrânia, em 2022, que inclui o fornecimento de mísseis e drones.
Com o agravamento das tensões no Oriente Médio e com os EUA a menos de um mês da eleição presidencial, a porta para uma resolução diplomática está se fechando. Em setembro, o presidente iraniano, Masoud Pezeshkian, se disse disposto a discutir a retomada do acordo internacional sobre o programa nuclear do país, rasgado em 2018 por Donald Trump — que pode retornar à Casa Branca — e que não foi mais respeitado por Teerã.
O plano, firmado em 2015, previa limites ao enriquecimento e armazenamento de material atômico, ao desenvolvimento de centrífugas e estabelecia inspeções frequentes e intrusivas. Em troca, sanções ligadas a atividades atômicas seriam suspensas, efetivamente trazendo o país de volta aos mecanismos de comércio internacional. Mas a crescente desconfiança de lado a lado, os avanços das atividades iranianas e pressões políticas parecem deixar um novo acordo cada vez mais distante.
"Dado o quão avançado está o programa nuclear do Irã, Teerã tem muito pouco espaço para escalar sem tropeçar nas linhas vermelhas dos EUA e de Israel", afirma Kelsey Davenport, da Associação de Controle de Armas, em entrevista ao Financial Times. "Ainda há uma chance de soluções alternativas, mas o risco de erro de cálculo está crescendo e continuará a crescer na ausência de medidas para desescalada".