Os presidentes Xi Jinping e Lula, durante visita do líder brasileiro a Pequim, em abril (Ken Ishii/Getty Images)
Repórter de macroeconomia
Publicado em 27 de setembro de 2023 às 06h02.
O avanço da China na América Latina é uma das principais questões para o futuro do continente, avalia a pesquisadora Maria Hermínia Tavares. O país asiático já é o maior parceiro comercial de Brasil, Argentina e Peru, entre outros, e a região virou um cenário da disputa global entre chineses e americanos.
“Você tem duas grandes potências enraizadas economicamente na região. Como que os países podem aproveitar isso para ter benefícios? Depende da capacidade de entender o que está acontecendo e, ao mesmo tempo, de desenvolver uma estratégia diplomática. Tenho impressão de que no Brasil não está entendendo”, avalia Hermínia.
Pesquisadora-sênior do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), professora de ciência política na USP e colunista do jornal Folha de S.Paulo, Tavares conversou com a EXAME e comentou também sobre eleições na Argentina, a situação na Venezuela e as alternâncias de poder na América Latina.
Com a mudança de governo, o Brasil tem conseguido recuperar protagonismo no cenário internacional?
Está voltando sim, nem sempre com o discurso adequado. O Brasil é um país grande com dotação de recurso importante, com trunfos na área ambiental. O governo está reconstituindo o protagonismo que foi perdido por absoluta desorientação da política externa durante o governo Bolsonaro.
Agora, o Brasil ainda não definiu com clareza qual é a sua posição na disputa entre Estados Unidos e China. A diplomacia brasileira tem uma longa experiência de construir certa autonomia com relação a potências. Essa capacidade que desenvolveu com relação aos Estados Unidos terá de ser feita com relação à China. O Brasil não pode ficar como aliado incondicional da China porque não faz sentido para o país.
O avanço da presença da China é um dos grandes desafios da região no futuro. A China se transformou no principal parceiro comercial de muitos países, da Argentina, do Brasil, do Peru e outros tantos. Na segunda metade do século 20, os conflitos estratégicos mundiais se traduziam de maneira diferente aqui. Você tinha a presença americana na economia e a presença da União Soviética nos partidos comunistas dos países, em uma parte da esquerda.
Agora não: você tem duas grandes potências enraizadas economicamente na região. Como é que os países podem aproveitar isso? Depende da capacidade de entender o que está acontecendo e, ao mesmo tempo, de desenvolver uma estratégia diplomática. Tenho impressão de que no Brasil não está entendendo.
O governo está agindo como se a única coisa que importasse é manter a sua autonomia com relação aos Estados Unidos. É um objetivo importante da política externa brasileira, e sempre foi, mas o governo brasileiro vem entendendo mal esse novo jogo. Como é que ele pode definir uma atitude de autonomia com relação às duas potências e de flexibilidade para aproveitar a disputa entre elas para ter algum benefício? Eu acho que esse é um desafio das políticas externas dos países latino-americanos, sobretudo os mais fortes? E que não está claro que sejam capazes de responder.
Como vê a relação do Brasil com os vizinhos da América Latina? O país tem conseguido se aproximar mais deles?
Do ponto de vista histórico, a América Latina é um continente de grandes conflitos internos, mas paz externa: todos os países têm crises, golpes, mas uma situação de paz internacional. Em torno da Índia ou da China não é assim. E isso se deve muito ao Brasil. Se o país fosse beligerante, quisesse discutir fronteiras, seria uma situação muito ruim para o continente. Essa tradição de relações pacíficas na região tem muito a ver com a tradição da diplomacia brasileira, de busca da negociação, da solução das controvérsias usando o direito internacional.
No entanto, o Brasil tem recursos de poder limitados. Imaginar que o Brasil possa ser hegemônico na região não faz nenhum sentido, nem a população quer. O Brasil tem um papel importante para construir coordenação entre os países, como o que fez em agosto: tem problema da Amazônia, então vamos reativar o Pacto da Amazônia. Foi uma iniciativa brasileira que só o Brasil podia fazer. Esse tipo de coisa permite ao Brasil reconstituir a respeitabilidade na região, que tinha perdido, e a sua capacidade de coordenar, de promover convergência, que é diferente de liderar.
A política externa está recolocando o país dentro daquilo que ele pode fazer. Para ser hegemônico e liderar, você precisa ter recurso, ser capaz de colocar dinheiro, financiar. O Brasil não tem isso, mas tem capacidade de tentar produzir consenso.
Nos últimos anos, houve vitória de candidatos de esquerda em vários países, como Chile, Colômbia e Brasil. Como avalia este movimento? Considera que há uma Onda Rosa na região?
A alternância no poder nas democracias latino-americanas é um fenômeno muito recorrente que tem a ver com o fato de que os governos não conseguem resolver os problemas. Então os eleitores vão trocando e, com isso, e nos países que tinham governos de direita a esquerda ganhou a última eleição. Acho que é um exagero falar em Onda Rosa.
A tendência é de alternância porque o descontentamento é grande. Tem muita pobreza, muita desigualdade muito problema. Vem outra eleição e elegem a oposição. Ultimamente, tem aparecido forças que não tinham importância no sistema político, que a gente chama de populismo de extrema direita, como José Antônio Kast no Chile, Milei na Argentina e Bolsonaro no Brasil.
No Chile, há claramente uma nova esquerda minoritária. A votação real do Boric é 28%, percentual com que ele foi para o segundo turno, concorrendo com candidatos bem de direita. No segundo turno, as forças de esquerda mais tradicionais se uniram a ele e deram a maioria.
O continente tem sistemas políticos diferentes, que estão fazendo um grande experimento que é construir sistemas democráticos em sociedades muito pobres e desiguais e que hoje são atravessadas pelo crime. Isso não é um desafio trivial, especialmente em países onde as capacidades estatais são menos desenvolvidas. A tendência é que haja crises sucessivas. Isso explica por que há alternância tão frequente de coligações diferentes no poder. Mas é um grande experimento, construir democracia num solo tão infértil. Um solo tão corroído por crise, pobreza, desigualdade e agora, pelo crime.
Como avalia o avanço de Javier Milei na Argentina?
É quase um desastre anunciado. A Argentina estava há muito tempo, desde a redemocratização [em 1983] em uma forma de competição política onde o peronismo é um polo e alguma coisa antiperonista, mais liberal e de centro direita, estava na oposição.
A Argentina passou por crises muito complicadas com a da hiperinflação no final do governo Alfonsín, do corralito no final do governo De la Rúa. Nesta última década, a Argentina sofreu muito com o fato de que as duas coalizões que estiveram no governo não conseguiram dar uma solução razoável para a questão econômica. Os Kirchner estiveram no governo em um momento muito favorável, do boom de commodities, mas isso acabou em meados dos anos 2010.
Assim, é explicável o crescimento de uma força antissistema que é o Milei. Mas é muito cedo para saber qual vai ser o desenlace disso. A vitória do Milei [nas primárias] mostra que essa competição entre dois polos foi rompida. O país tem uma nova divisão hoje, e quase um terço do eleitorado está com a ultradireita. O que vai acontecer neste campo antiperonista não está claro.
A Venezuela tem tido menos destaque nos debates entre os países da região nos últimos anos. A que isso se deve?
O que diminuiu ou não é o problema da Venezuela, mas a retórica política que tomava a questão da Venezuela como um tema de conflito interno no Brasil. Durante os governos do PT, a Venezuela virou um tema da oposição antipetista que dizia que o PT iria transformar o país numa Venezuela.
A Venezuela. é um problema. É um país grande, importante no continente e que hoje está sob um governo autoritário, que produziu um descalabro econômico e uma onda migratória que vem para o Brasil, Colômbia, Peru, chega até o Chile. E é um problema que precisa ser tratado de forma diplomática. O Brasil não pode romper as relações com a Venezuela e tem que ajudar. Agora a normalização virá, ou não, da dinâmica política interna do país.