Manifestações contra o Brexit no Reino Unido (Yves Herman/Reuters)
Gabriela Ruic
Publicado em 23 de março de 2019 às 06h00.
Última atualização em 23 de março de 2019 às 10h07.
São Paulo – Ninguém disse que seria fácil encerrar um casamento conturbado de 46 anos, mas o fato é que a população do Reino Unido escolheu fazê-lo naquele 23 de junho de 2016. À parte da discussão sobre os efeitos que o Brexit trará, o processo fez surgir um debate ainda maior e que revela as mudanças geopolíticas que estão sacudindo o mundo.
“Em um mundo no qual a política do ódio está presente, é mais fácil votar para desmontar alguma coisa do que melhorá-la”, pontuou a EXAME Mohammed El-Erian, economista-chefe da Allianz e membro do Conselho de Desenvolvimento Global da gestão do ex-presidente dos Estados Unidos, Barack Obama. “E o Brexit mostra como é difícil é substituir algo com nada”, notou ele sobre as dificuldades que o governo da primeira-ministra, Theresa May, está enfrentando para aprovar o acordo.
Desde que a saída do Reino Unido do bloco europeu foi aprovada após o referendo de 2016, as incertezas tomaram conta do cenário não apenas do Reino Unido e da Europa. Esse processo caótico, no entanto, revela lições valiosas em um momento no qual observa-se o renascimento de sentimentos nacionalistas e discursos críticos ao multilateralismo. E isso vem acontecendo em vários países, dos Estados Unidos até a Itália, passando, ainda, pelo Brasil. Evidências de que algo de novo está acontecendo.
“É um grande ciclo liberal da sociedade que está chegando ao fim”, avaliou Marcos Azambuja, que foi embaixador do Brasil na França e falou a EXAME sobre o panorama que o mundo observa surgir além da cortina do Brexit. “A União Europeia era um símbolo da tentativa de encontrar cooperação onde havia desconfiança e conflito. Agora, o que volta à tona são é a ideia de soberania, o regresso do estado nacional”, notou.
Na visão do diplomata, que é conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI), a saída do Reino Unido do bloco europeu desacelerou o “processo de construção de uma sociedade internacional multilateral” e mostrou que a integração regional se torna ainda mais complexa no momento em que forças nacionais se tornam mais e mais vigorosas.
“Isso nos ensina a não ir depressa com a integração, ainda mais sem uma consulta mais ampla à população. E isso vale, por exemplo, para o Mercosul: precisamos de tempo para que os processos se consolidem, sem voluntarismo político, para superar dificuldades e desconfianças”.
Assim como a União Europeia, a iniciativa de integração sul-americana enfrenta críticas do governo brasileiro, um dos seus principais sócios. Desde que assumiu a presidência, Bolsonaro deixou claro não irá priorizar o bloco na agenda de política externa e comércio exterior. Além disso, vem adotando discursos duros contra os mecanismos multilaterais e a equipe econômica capitaneada por Paulo Guedes sinaliza a preferência por negociações bilaterais.
Nesse ponto, mais um ensinamento poderoso do Brexit: a lógica bilateral pode funcionar, sim, mas não para todo mundo. Desde o início das negociações sobre essa saída, a União Europeia se manteve firme em suas demandas. Logo viria o choque de realidade dos britânicos defensores desse divórcio e que mostrava que o Reino Unido não teria força sozinho.
Quando o acordo foi finalmente fechado em novembro do ano passado pelos europeus e a primeira-ministra, Theresa May, o bloco foi taxativo de que não haveria uma renegociação dos seus termos. Doa a quem doer, novas concessões não seriam feitas, algo que que deixou May em uma saia justa e a forçou a submeter o mesmo texto por duas vezes ao crivo do Parlamento. E ela foi derrotada em todas as duas tentativas.
“Um país que é potência global, militar e econômica tem força para barganhar no palco bilateral e temos alguns exemplos que são capazes de fazer isso, como China e Estados Unidos”, avaliou Vinícius Vieira, professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e doutor pela Universidade de Oxford. Esse, no entanto, não é o caso do Reino Unido, um país que o especialista vê como um “seguidor de regras”, não um “fazedor de regras”, e nem do Brasil.
Segundo Vieira, sob essa ótica, apostar no Brexit se mostrou um "tiro no pé" para o Reino Unido, que contava com maior força de articulação internacional dentro da União Europeia do que fora do bloco. "Se tornou uma potência média, como Brasil, Índia e África do Sul”, notou o especialista e isso significa que, isolado, esses países perdem o poder de barganha. "Há muito mais a perder quando não se enfatiza o multilateralismo, uma esfera mais útil para quem é mais fraco”, pontuou.
O especialista avalia, ainda, que o Brexit está mostrando aos países como é difícil abandonar acordos negociados e que trazem consigo grandes arcabouços jurídicos, regulatórios e políticos.
A questão da fronteira das Irlandas, que é um dos maiores entraves ao acordo de May, é um claro exemplo da complexidade dos arranjos aduaneiros atuais e da dificuldade que é substituí-los por um modelo que não ameace a paz entre os países, tampouco coloque em risco a integridade do Reino Unido como tal.
Usando o Mercosul de exemplo, Vieira notou que uma saída completa do bloco traria grandes impactos para setores da economia. Por um lado, um setor como o agronegócio ganharia mais fôlego. Por outro, poderia trazer o caos para a indústria. Na sua visão, a flexibilização das normas do bloco poderia facilitar negociações com outros países, não sendo necessário um movimento mais drástico.
“A realidade é mais complexa do que aquilo que os discursos contra o multilateralismo pregam”, lembrou Vieira, “e uma das maiores lições do Brexit é a de que o custo de ‘desglobalizar’ é muito alto. Como exportar? Como importar? Quem irá garantir os investimentos”, questionou o especialista. No fim do dia, a penalização que que vem à tona de uma situação de insegurança como essa recai sobre alguém e esse alguém é a a população.