Friedrich Merz (à direita), líder da União Democrata-Cristã (CDU) e principal candidato do partido ao cargo de chanceler (Ina Fassbender/AFP)
Colunista
Publicado em 23 de fevereiro de 2025 às 18h19.
A queda do Muro de Berlim deu-se na passagem do dia 9 para o dia 10 de novembro de 1989. Esse acontecimento é marcante, pois foi o prenúncio da queda da República Democrática Alemã, a Alemanha Oriental, e da reunificação da Alemanha, separada em duas nações desde o final da Segunda Guerra Mundial. A queda do muro também foi parte do processo de queda do bloco comunista na Europa Oriental. Berlim, por décadas, era dividida entre Estados Unidos, Reino Unido e França de um lado e a União Soviética do outro.
Em 2025, algo inédito e histórico aconteceu nas eleições de 23 de fevereiro na Alemanha. Os governos de Estados Unidos e da Rússia estiveram publicamente do mesmo lado. Apoiaram abertamente o AfD (Alternativa para a Alemanha). Esse apoio marcou a campanha que se encerrou com o partido chegando em segundo lugar com aproximadamente 20% dos votos. Os mais votados foram o CDU/CSU, partido conservador de centro-direita, que obteve quase 29%, o SPD (a centro-esquerda que liderava o governo até o final do ano passado), em terceiro, com 16%, os Verdes, com cerca de 12% e o Die Linke (a esquerda radical) com quase 9%. Diante desse resultado, esse pleito alemão nos traz alguns pontos de reflexão. Tive o privilégio de acompanhar a reta final da campanha na Alemanha e vou compartilhar aqui minha experiência.
Primeiro, vamos falar do AfD. A Alternativa para a Alemanha foi fundada em 2013 à direita do CDU/CSU. O partido populista de direita, como classificam os cientistas políticos locais, opõe-se à ideia da União Europeia de uma Europa unida, com exceção do mercado único. O grupo de direita Identidade e Democracia (ID) no Parlamento da UE excluiu os membros do parlamento da AfD por flerte com ideias nazistas. O ID conta com o partido da francesa Marine Le Pen.
O partido é classificado pelo Departamento Federal de Proteção da Constituição como suspeito de ser extremista de direita. Membros do partido estão sendo monitorados em busca de opiniões anticonstitucionais e extremistas de direita, algumas nazistas inclusive. O Departamento estima que pelo menos 20% dos membros do partido podem ser classificados neste grupo.
Tive a oportunidade de assistir dois comícios do AfD. Encontrei muitos jovens na plateia, especialmente gente facilmente com menos de 25 anos e, alguns, sem medo ou receio de exibir símbolos nazistas no corpo, ou em cartazes. Um choque pessoal.
No palco, nenhum simbolo nazista, mas uma líder jovem e super articulada, Alice Weidel. A mesma celebrava as palavras de apoio do governo dos Estados Unidos, de Elon Musk e do vice-presidente dos EUA, JD Vance. Nas redes sociais, ações ligadas à Rússia impulsionavam os vídeos, produzidos por inteligência artificial, a favor do AfD e contra os outros partidos. Nunca tinha visto uma campanha com tanto conteúdo produzido por AI. Sinal dos tempos. Pelas pesquisas da última semana, os posicionamentos de Musk e Vance ajudaram a aumentar a rejeição do AfD.
Na noite da eleição, não há dúvidas, o partido celebrou um resultado histórico. Simplesmente dobrou o número de votos e terá a segunda maior bancada no Bundestag (parlamento da Alemanha). Essa coalizão eleitoral foi possível por agregar eleitores indignados com os políticos tradicionais e concentrados em regiões do Leste, da ex-Alemanha Oriental. Muitas dessas localidades sofrem com o fechamento de fábricas e enorme aumento do custo de vida.
E é na economia o grande desafio que sai das urnas. O CDU/CSU evoluiu 4 pontos percentuais em relação ao último pleito, chegou em primeiro lugar sob a liderança de Friedrich Merz. Com uma carreira extensa no setor privado na área financeira, Merz saiu e voltou a política, e agora terá a difícil missão de formar uma coalizão de governo com o SPD, a centro-esquerda.
As propostas para área fiscal de ambos partidos são bastante divergentes. Um quer cortar impostos e despesas. Outro quer aumentar gastos em programas sociais. Porém, concordam em um ponto essencial, a Alemanha precisa flexibilizar seu teto fiscal ("debt brake", como chamam) para encarar investimentos necessários nas áreas de defesa e infraestrutura. Conversei com vários membros de ambos os partidos e ninguém sabe exatamente como isso será executado. Ideias não faltam. Falta consenso. Será um tema crucial do próximo governo.
O que não falta também é a noção que se a economia não melhorar os partidos radicais ganharão ainda mais protagonismo. Esse é o sentimento de todos que conversei. O Linke, a esquerda mais radical, obteve uma votação surpreendente e estará no parlamento. Uma dissidência do Linke, o BSW, de Sahra Wagenknecht (sim, o partido leva o nome dela) também surgiu, pela primeira vez, nessa campanha. A líder do BSW é pró-Rússia e contra imigração, e de esquerda. Sim, isso é possível.
Ou seja, o Bundestag terá 1/3 de membros radicais, seja do AfD, ou da esquerda radical. Nesse contexto, é fundamental o governo de coalizão enfrentar temas sensíveis da economia como o custo de energia. A dependência do gás russo se mostrou uma fragilidade estratégica da Alemanha. Com a guerra na Ucrânia, e a consequente restrição de oferta de gás, os custos de energia explodiram e a população germânica sofreu muito. Todos esses desafios são somados ainda ao contexto de incertezas geopolíticas vindas da China e dos Estados Unidos. Não será tarefa simples.
Portanto, o novo governo terá de lidar com novos e complexos “muros”. O “muro” da divisão regional e etária, o Leste do país com um mapa eleitoral oposto ao oeste. Os jovens, que votaram nos partidos mais radicais, principalmente AfD, de um lado e o grupo mais velho votando, com muita reserva, nos partidos tradicionais. O “muro” dos desafios da economia: crescimento, custo de vida, energia e infraestrutura. E o enorme “muro” da geopolítica, que agora coloca os governos de Rússia e EUA aliados e dissidentes dos interesses dos europeus. Isso sem mencionar a complexidade da Alemanha lidar com a China, enorme parceiro de negócios, mas, ao mesmo tempo, o pior concorrente possível. Não será simples derrubar esses muros, e exigirá muito da paciência, planejamento e disciplina alemã.