Afeganistão: esta prática retornou de forma preocupante ao Afeganistão pós-talibã, sem que seja considerada pedofilia ou homossexualidade (Getty Images)
AFP
Publicado em 19 de dezembro de 2016 às 16h04.
Tremendo de raiva, Shirin mostra uma foto de seu cunhado sequestrado por policiais afegãos que o transformaram em seu brinquedo sexual, uma tradição centenária no Afeganistão e socialmente tolerada.
Seu desespero é compartilhado por inúmeras famílias que lutam por arrancar os adolescentes dessa condição de escravidão sexual institucionalizada.
Shirin faz parte de uma das 13 famílias entrevistadas pela AFP em três províncias do Afeganistão, que contaram como um filho ou um sobrinho foram sequestrados para a prática do "bacha bazi", que consiste em manter um menino pré-pubere como parceiro sexual.
A história dessas famílias destaca o combate, geralmente solitário, contra esta forma de estupro socialmente tolerada e estendida entre as forças afegãs apoiadas por governos ocidentais.
Shirin se recorda de como gritava e se debatia o menino de 13 anos que foi retirado à força de sua casa há vários meses por um comandante da polícia da província de Helmand.
"Quando supliquei a ele, seus homens apontaram suas armas e ele: quer que sua família morra? Melhor esquecer dele", conta Shirin à AFP, em Lashkar Gah, capital de Helmand.
"Nossos filhos são sequestrados à vista de todos para o 'bacha bazi'. A quem deveríamos pedir ajuda, aos talibãs?'", se desespera.
Estes testemunhos, recolhidos em Helmand e nas províncias de Uruzgán e Baglán, fazem parte de uma investigação da AFP, que revelou, em junho, como os talibãs empregam o 'bacha bazi' contra as forças de segurança, recrutando meninos para lutar contra quem abusa deles.
Os talibãs negam ter feito isso, mas o governo abriu uma investigação sobre os abusos.
A AFP decidiu não publicar o nome dos meninos nem dos policiais acusados porque as vítimas continuam em cativeiro, em sua grande maioria.
Um sentimento é recorrente entre as famílias envolvidas: a impotência.
A maioria das vítimas foram raptadas em plena luz do dia, enquanto brincavam, na rua ou dentro de casa.
Uma vez sequestrados, são obrigados a coabitar com os policiais nos postos de controle e inclusive, há ocasiões em que são vistos nas cidade,que representa uma grande vergonha para eles e suas famílias.
Depois de meses de buscas infrutífera,s Sardarwali encontrou seu filho cercado de policiais em um mercado de Gereshk.
Queria abraçá-lo, mas não teve coragem de se aproximar. "Eu fiquei vendo-o se afastar e desaparecer", recordou.
As famílias temem que seus filhos se viciem nos opiáceos que seus captores os forçam a usar.
Pior ainda, que sejam enviados para combater os talibãs ou que moram em um ataque contra a delegacia em que se encontram detidos.
Para algumas famílias, saber que não estão sozinhas é uma espécie de consolo. Em suas aldeias, há muitos ex-bacha bazi, que são devolvidos quando a barba começa a crescer.
Esta prática retornou de forma preocupante ao Afeganistão pós-talibã, sem que seja considerada pedofilia ou homossexualidade e portanto, contrária ao Islã.
Os meninos imberbes, de traços mais finos, vestidos de forma feminina, são um sinal apreciado de masculinidade e de status em uma sociedade em que homens e mulheres vivem separados.
Isso implica uma competição nas fileiras da polícia entre certos comandantes, que exaltam a beleza se seus "bachas", explica um ex-chefe de segurança de Helmand.
"Com frequência, a única saída para esses meninos reduzidos a escravos passa por um acordo com os talibãs: 'vocês me libertam e eu trago a cabeça e as armas de meu captor'", afirma a fonte.
O governo afegão, por sua parte, se apressa a negar que tolere esse tipo de prática.
Mas o porta-voz do governador de Uruzgan, Dost Mohamad Nayab, reconhece que há 'bacha' quase em cada posto policial da província. Explica que qualquer tentativa de liberar os meninos desata a revolota dos policiais e estes abandonem seus postos, abrindo as portas para os talibãs.
Para o pesquiador Charu Lata Hogg, do instituto Chatham House, é indesculpável não fazer nada em nome da segurança.
"A ONU e o Afeganistão assinaram em 2011 um plano de reabilitação que prevê explicitamente a reabilitação de meninos vítimas de abusos sexuais", destaca. "Por que não se fez nada?", questiona.
O ativista Sardar Hamdar considera que a prática compromete o apoio popular às forças de segurança e favorece as campanhas de recrutamento dos talibãs.
"Esta prática cria estragos em nossa sociedade. Nossos filhos crescem pensando que é normal estuprar meninos", alerta..
Ante a cultura do silêncio e da impunidade, sem recursos legais possíveis, inúmeras famílias perderam toda esperança. Apenas os com mais contatos nas altas esferas ousam pedir uma intermediação para salvar seus filhos.
O imã Haji Mohammad se dirigiu a um alto funcionário da Inteligência afegã duas semanas depois do sequestro de seu filho por parte de um chefe da polícia de Helmand.
O menino de 11 anos, libertado depois de 18 dias, voltou para casa aterrorizado. Sua família contou à AFP que, ante a falta de ajuda psicológica profissional, o menino continua traumatizado depois de dois anos.
"A família quer justiça, mas eu disse a ele: fuja ou voltarão para pegar seu filho'", explica a fonte a inteligência. "O bacha bazi não é um crime que seja castigado".