A francesa Sophie Kasiki: assistente social em Paris, viajou para a Síria em 2015. Ao chegar lá, se deparou com o inferno (Robert Laffont/Divulgação)
Gabriela Ruic
Publicado em 7 de julho de 2017 às 06h00.
Última atualização em 7 de julho de 2017 às 13h28.
São Paulo – Junho de 2017 marcou o início de uma das mais importantes ofensivas contra o grupo Estado Islâmico (EI) na Síria: a batalha pela retomada de Raqqa, que está localizada a cerca de 500 quilômetros da capital Damasco e às margens do rio Eufrates.
Antes vista como um símbolo da guerra civil contra o regime do presidente Bashar Al-Assad, Raqqa caiu no controle dos extremistas em 2014, incorporando à sua história o título de “capital” do autoproclamado califado do EI.
Desde então, os residentes vivem sob o medo da violência extrema. São comuns execuções públicas de todas as sortes, decapitações, inclusive, e pelas razões mais banais: da falta do véu islâmico pelas mulheres até a comunicação com jornalistas estrangeiros.
Ir embora? Apenas com autorização da cúpula do EI. Ainda assim, há quem consiga fugir da cidade para contar a história. A francesa Sophie Kasiki, 35 anos, é uma dessas pessoas. Por e-mail, ela conversou com EXAME.com sobre a sua experiência.
Sua jornada é similar à de muitas pessoas que, seduzidas pelo falso discurso de justiça social de seus recrutadores, se juntaram ao grupo. Assistente social com atuação nos subúrbios de Paris, foi convencida a viajar à Síria por jovens que via como irmãos. Eles disseram que ela poderia ajudar a população e que trabalharia em uma maternidade.
Em fevereiro de 2015, partiu da França com seu filho de três anos. Não demorou até perceber que havia sido enganada e chamou de "o momento mais aterrorizante" aquele em que viu seus amigos impedindo que ela deixasse a cidade.
No livro “Nas Sombras do Estado Islâmico – Confissões de Uma Arrependida” (2016), pinta um retrato sombrio sobre os fatos e hoje espera contribuir para que outras pessoas não cometam o mesmo erro. Abaixo, confira a entrevista na íntegra.
EXAME.com – Seu livro abre com uma frase do escritor francês Paul Valéry que diz: “É preciso tentar viver”. Como ela se relaciona com a sua história?
Sophie – Essa citação me inspirou muito desde a fuga do inferno em Raqqa até a chegada na França e a passagem pela prisão. Nessa experiência, me dei conta de que nada do que vivi depois poderia ser mais monstruoso do que o que eu testemunhei na Síria. A vida, a partir daquele momento, ganhou uma nova importância.
EXAME.com – Como era a vida em Raqqa? Como é ser mulher, atualmente, nessa cidade?
Sophie – A vida por lá é apenas para os soldados. Os sobreviventes vivem sob o medo constante e as proibições. As ruas são controladas permanentemente e as pessoas vivem aterrorizadas. Todos têm a impressão de que são vigiados constantemente.
As mulheres não têm qualquer espaço, jamais se locomovem sozinhas. Vivem como fantasmas, escondidas sob o niqab preto (vestimenta islâmica), usando luvas e com o rosto coberto.
EXAME.com – Você conheceu outras mulheres ocidentais? Como você, elas também tentavam fugir?
Sophie – Conheci muitas mulheres europeias no hospital, mas não soube de nenhuma que pensasse fugir. Eu não confiava em ninguém e não me sentia segura em manifestar o meu desejo de voltar à França. Eu sabia que poderia ser denunciada.
EXAME.com – Qual foi o episódio mais aterrorizante que você testemunhou durante sua estada na Síria?
Sophie – Foi o momento em que percebi que as pessoas que me levaram para a Síria não me deixariam partir e quando soube que passaram o meu telefone ao Daesh (acrônimo usado para identificar o grupo em árabe) para assegurar que eu não passasse qualquer informação ao governo francês. Percebi que nada daquilo era um pesadelo, mas a realidade.
EXAME.com - Quais foram os argumentos usados para convencê-la a viajar à Síria?
Sophie – Foram usados diversos argumentos para me levar para o lado deles. Essas pessoas me conheciam, sabiam do meu interesse e necessidade permanente de ajudar pessoas em situações vulneráveis. Sabendo, ainda, que as coisas na minha vida pessoal e profissional não iam bem, conseguiram me fazer pensar em outras coisas que não apenas em mim mesma.
EXAME.com – Você imaginava que seria presa ao retornar à França?
Sophie – Eu sabia que teria de justificar minhas ações para todos, começando pela Justiça, mas esperava encontrar minha família, tentar responder todas as suas perguntas para então, quem sabe, acalmá-la.
Hoje, com distanciamento, acho normal que o governo desconfie de quem retorna dessa zona de guerra, que investigue se essas pessoas estão preparadas para se integrarem à sociedade, ainda que eu saiba que os mais perigosos não pedem ajuda às autoridades ou familiares para voltar.
EXAME.com – O EI é um grupo formado por milhares de combatentes ocidentais que, segundo o seu livro, ocupam o topo da pirâmide social dos territórios controlados. Como esse fenômeno é visto pelos sírios?
Sophie – Os combatentes estrangeiros, especialmente os europeus, são bem vistos e até mimados pelo grupo. Na Síria, eles têm coisas que jamais teriam na Europa: casa, comida, salário. Mas tudo isso é confiscado dos sírios, que vivem na miséria total e com o medo permanente de sofrerem alguma violência ou serem mortos.
EXAME.com – Antes de tudo isso, você atuava como assistente social nos subúrbios de Paris, uma região que é foco dos recrutadores do EI. Por que tantos jovens se juntam ao grupo?
Sophie – As razões são diversas e é difícil enumerar, ainda mais considerando as crises sociais que muitos países estão vivendo. O Daesh entendeu isso, se aproveitou das falhas dos governos ocidentais e conseguiu oferecer identidade para aqueles que se sentiam rejeitados, uma resposta que fazia com que se sentissem úteis e importantes para a comunidade.
EXAME.com – Considerando a sua experiência, como governos devem lidar com as pessoas que foram enganadas pelo grupo, foram para a Síria ou Iraque, se arrependeram e agora tentam voltar?
Sophie – O governo precisa levar para o público a experiência de quem esteve na Síria e compreendeu as mentiras, os males e o doutrinamento do Daesh. Esse problema (dos jovens que fogem e tentam retornar) não está relacionado a um ambiente social específico, mas a todos.
Informar a sociedade sobre as mentiras do grupo e o seu funcionamento seria mais produtivo para combater a sua ideologia do que estratégias que só favorecem a sua propaganda.