Combatentes das Farc: Pelo menos seis ex-integrantes das Farc foram assassinados em Ituango desde a assinatura do acordo de paz (John Vizcaino/Reuters)
Gabriela Ruic
Publicado em 6 de agosto de 2018 às 16h43.
No extremo norte da região andina da Colômbia, onde, por décadas, rebeldes marxistas controlaram a produção de cocaína e enfrentaram o exército, o tão elogiado acordo de paz celebrado em 2016 deveria mudar tudo. E mudou — para pior.
Promessas de incentivo a culturas que substituiriam a coca e de novas medidas de segurança ficaram no papel. Onde havia a lei brutal — mas clara — dos grupos rebeldes, se instalaram máfias de traficantes que extorquem tanto os fazendeiros que a pecuária, a cafeicultura e até a produção de cocaína quase não dão lucro. Ex-guerrilheiros estão voltando a pegar em armas. A taxa de homicídios disparou e centenas estão fugindo da região, esvaziando escolas e o comércio.
“O que está acontecendo é a reconfiguração criminosa por controle de território e economias ilegais”, disse Ariel Avila, analista político da Fundação de Paz e Reconciliação, em Bogotá. “Ninguém esperava que o governo fosse tão lento para chegar nessa área.”
O governo passou quatro anos negociando um acordo com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). O presidente Juan Manuel Santos, que está prestes a deixar o cargo, ganhou um Prêmio Nobel. Mas, na prática, o estado abandonou Ituango e outras zonas em poder das Farc. O presidente-eleito, Iván Duque, que assume o cargo nesta terça-feira, precisará lidar com a produção recorde de cocaína, o interior dominado por milícias privadas e dissidências cada vez maiores das Farc.
Duque afirma que a coca é uma “ameaça existencial” ao país, que ele combaterá com herbicidas dispersados por aviões e destruindo as plantas, além de programas de substituição.
Promessas fundamentais do acordo de paz nunca foram colocadas em prática. Assim que as Farc saíram de cena, paramilitares entraram em Ituango. Nenhum pé de coca foi arrancado sob o programa de substituição. Projetos que prometiam criar empregos para ex-guerrilheiros nunca se concretizaram.
“Eles nos deixaram com a roupa do corpo”, disse um ex-guerrilheiro que afirma ter recebido ofertas de dissidentes e de traficantes — dos últimos um salário mensal de 800.000 pesos (US$ 280).
Um ex-integrante das Farc que atende por Rogelio deixou um assentamento monitorado pela Organização das Nações Unidas (ONU) e formou um novo grupo de guerrilheiros no fim do ano passado. Rogelio está entre os mais de 1.000 integrantes das Farc (13.000 ao todo) que participaram do processo de paz, mas voltaram a pegar em armas. A esses dissidentes se juntam novos recrutas. O ressurgimento de guerrilheiros na região provocou a resposta violenta do cartel conhecido como Gaitanistas, que mata suspeitos de ajudar os dissidentes.
“Decidimos continuar a luta devido ao fracasso do governo em cumprir o acordo de paz e devido ao assassinato de ex-combatentes e líderes comunitários”, disse um integrante do grupo de Rogelio conhecido como Picino.
Também operam na região pelo menos outro cartel de traficantes e outra facção dissidente das Farc, segundo a polícia.
“Quero sair deste inferno”, disse uma mãe em Ituango durante o velório do filho de 18 anos, assassinado aparentemente pelos Gaitanistas.
Em Ituango, agricultores e donos de negócios costumavam pagar as Farc por proteção. Agora, facções diferentes exigem pagamento e ameaçam matar quem paga seus concorrentes. Grupos paramilitares cobram dos fazendeiros 100.000 pesos (US$ 35) por cabeça de gado.
As Farc cobravam um “imposto” sobre o comércio de pasta de coca. Já os Gaitanistas compram pasta fiado e depois se negam a pagar, alegando que a polícia apreendeu o produto. O cartel também é acusado de roubar aves e comida dos fazendeiros.
Desde o acordo de paz, Ituango, com 25.000 habitantes, se tornou uma das cidades mais perigosas do planeta, com 43 assassinatos neste ano (foram oito em todo o ano passado). O índice de homicídios lá é quatro vezes maior do que o de El Salvador, o país mais violento do mundo.
Ituango tem localização estratégica para o tráfico de cocaína. É ali que as montanhas dos Andes dão lugar à planície costeira que chega ao Caribe, de onde a droga é embarcada para o México e a América Central.
Os dissidentes conhecem bem as montanhas e cânions de Ituango e têm maior experiência de combate do que seus inimigos, mas os Gaitanistas têm mais dinheiro e armamentos. A população é oprimida pelos dois lados e vive aterrorizada. Gaitanistas tiram passageiros de ônibus e executam as pessoas no acostamento.
O Conselho de Paz de Ituango — formado por representantes da comunidade, da prefeitura, empresários e religiosos — suspendeu operações em julho após ameaças de morte.
Pelo menos seis ex-integrantes das Farc foram assassinados em Ituango desde a assinatura do acordo de paz, sendo dois dentro do perímetro de proteção do assentamento. Em fevereiro, uma granada foi atirada pela janela da casa de uma família suspeita de ligação com um dos grupos armados, matando uma menina de três anos.
“Quando o processo de paz começou, nós enxergamos um ótimo futuro para Ituango e as pessoas começaram a voltar após muitos anos”, disse Gladys Zapata, funcionária de uma escola. “Havia muita esperança, mas agora, meu Deus, as coisas estão piores do que antes.”