KIM JONG UN: o presidente norte-coreano testou um míssil numa provocação a Donald Trump / KCNA via REUTERS
Da Redação
Publicado em 7 de janeiro de 2017 às 06h56.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h33.
Lourival Sant’Anna, de Nova York
“A Coreia do Norte acaba de declarar que está nos estágios finais de desenvolver uma arma nuclear capaz de atingir partes dos EUA. Não vai acontecer!” Em exatos 140 caracteres (em inglês), o máximo permitido pelo Twitter, Donald Trump colocou uma espada sobre si mesmo, na noite de segunda-feira 2, antes até de assumir a presidência. Agora, ou cumpre a sua ameaça, de conter o incontível regime de Kim Jong-un, ou se arrisca à desmoralização sofrida por Barack Obama no Oriente Médio, ao advertir a Síria, em 2012, de que o uso de armas químicas seria uma “linha vermelha”, e não fazer nada depois de seu emprego pelo ditador Bashar Assad contra a própria população.
Em seu pronunciamento de Ano Novo, no domingo, Kim celebrou: “Pesquisa e desenvolvimento de armas de tecnologia de ponta estão progredindo ativamente e fortalecendo nossas capacidades de defesa, e inclusive testes de lançamento de foguete balístico intercontinental no último estágio de preparação têm sido continuamente bem-sucedidos”. O ditador advertiu: “A menos que os EUA e seus vassalos (Coreia do Sul e Japão) parem as ameaças nucleares, as chantagens e os exercícios de guerra que realizam bem diante de nossos narizes, a República Popular Democrática da Coreia continuará aumentando suas capacidades militares para autodefesa e ataque preventivo com ênfase principal na força nuclear”. E continuou com frases costumeiras, do tipo “precisamos esmagar o inimigo resolutamente”, etc.
No passado, ameaças desse tipo do regime norte-coreano caíram no vazio e sua retórica bizarra, com referências a glórias imaginárias de um país cuja população passa fome, são alvo de piada. Mas os especialistas têm levado mais a sério a capacidade militar do país, que no ano passado realizou dois dos cinco testes nucleares de sua história — um em janeiro e outro em setembro, o mais poderoso de todos — e mais de 20 lançamentos de mísseis balísticos. A sustentação da dinastia socialista, fundada pelo avô de Jong-un, Kim Il-sung, em 1948, depende da constante percepção de ameaça de inimigos externos.
Jong-un completa 33 anos neste domingo e, no ano passado, seu aniversário foi celebrado com um teste nuclear dois dias antes, em 6 de janeiro. Nesta sexta-feira, milhares de pessoas se reuniram na Praça Kim Il-sung, em Pyongyang, gritando slogans como “vida longa ao camarada Kim Jong-un” e “vamos acelerar os avanços vitoriosos do socialismo”. Um membro do Partido Comunista discursou: “O povo deve encarar o pronunciamento de Ano Novo de Kim Jong-un como um lema de vida e luta”.
Depois de se reunir com representantes dos governos da Coreia do Sul e do Japão, o subsecretário de Estado americano Antony Blinken atestou o aperfeiçoamento da capacidade bélica norte-coreana: “Eles aplicam o que aprenderam à sua tecnologia e ao próximo teste, e na nossa avaliação temos visto uma melhora qualitativa nas capacidades deles no último ano como resultado de um nível de atividade sem precedentes”.
Com suas armas nucleares e seus mísseis de alcance cada vez maiores, na vizinhança de dois aliados importantes dos EUA, a Coreia do Norte é um problema em si mesmo, mas por trás dela está a China, sem cujo apoio o regime norte-coreano já teria caído há muito tempo. O primeiro tuíte de Trump foi ao ar às 21h05. Pouco mais de 40 minutos depois, às 21h47, ele continuou: “A China tem tirado montantes maciços de dinheiro e riqueza dos EUA em um comércio totalmente unilateral, mas não ajuda com a Coreia do Norte. Legal!” No dia seguinte, o porta-voz da chancelaria chinesa, Geng Shuang, disse, em entrevista coletiva, que os esforços de Pequim de evitar tensões na Península da Coreia são “amplamente reconhecidos”, e emendou: “Esperamos que todas as partes evitem declarações e ações para escalar a situação”.
Embora o governo de Barack Obama concorde que a China poderia pressionar mais Pyongyang, fontes do Departamento de Estado americano disseram à rede de TV CNBC que não concordam com a avaliação de Trump de que a China não está cooperando em relação a seu aliado.
Desde 2006, a China, que tem poder de veto no Conselho de Segurança da ONU, tem permitido a aprovação de uma série de sanções econômicas contra a Coreia do Norte, em reação a seus testes nucleares. A última, aprovada em novembro, como resposta a um teste realizado em setembro, impôs um corte de mais de 60% nas exportações de carvão norte-coreano, além das vendas de cobre, níquel, prata, zinco e de estátuas de bronze. Isso representa uma perda de cerca de 800 milhões de dólares, o equivalente a um quarto da receita de exportações do país. A resolução foi resultado de intensas negociações entre os governos americano e chinês.
O especialista chinês Tong Zhao, do Centro Carnegie-Tsinghua para Política Global, em Pequim, observa que houve um esfriamento nas relações entre os dois governos: “A China está frustrada com sua incapacidade de pressionar a Coreia do Norte”.
A linha oficial de argumentação chinesa é a de que é melhor manter a parceria, ainda que a Coreia do Norte não siga as diretrizes de Pequim, do que isolar seu regime. “As relações da China com a Coreia do Norte são complexas”, escreveu o pesquisador Evans Revere, em um estudo da Brookings Institution, de Washington, publicado em outubro. “Mas o critério de Pequim é que é melhor manter um problemático aliado norte-coreano na superfície do que arriscar o que poderia resultar se pressionassem Pyongyang duro demais.”
O fator americano
De qualquer forma, a alternativa ao regime norte-coreano interessaria menos ainda à China: a unificação da pensínsula, sob um governo sul-coreano, aliado próximo dos EUA. Os especialistas na região concordam que não interessa à China, que responde por 90% do comércio da isolada Coreia do Norte e representa seu cordão umbilical, a instabilidade causada pelo seu regime.
A agressividade de Pyongyang tem provocado aumento da presença militar na região dos Estados Unidos, que mantêm cerca de 30.000 soldados na Coreia do Sul. Em julho deste ano, os americanos instalaram baterias antimísseis Thaad (iniciais para Defesa de Alta Altitude Terminal). Embora o sistema sirva para defender a Coreia do Sul de seu vizinho do norte, sua instalação incomodou profundamente a China, que o vê como uma neutralização de seu poderio nuclear e também como plataforma de espionagem militar sobre seu território.
Chen Hai, vice-diretor do Departamento de Assuntos Asiáticos da chanceleria chinesa, esteve na semana passada em Seul, e visitou grandes empresas sul-coreanas, como a Samsung e o Grupo Lotte, conglomerado que atua em diversas áreas. Sua mensagem foi bastante clara, segundo reportagem do jornal Financial Times: ou o governo sul-coreano retira o Thaad, ou as empresas do país vão sofrer represálias na China. O ministro das Finanças sul-coreano, Yoo Il-ho, denunciou a adoção de barreiras comerciais não-alfandegárias pela China contra produtos sul-coreanos a partir de julho.
Para o especialista Cai Jian, do Centro de Estudos Coreanos da Universidade Fudan, em Xangai, a China tem condições de exercer pesada pressão econômica sobre Seul: “A economia coreana se apoia fortemente nas exportações para a China. Até agora as penalidades ainda são de uma escala muito pequena e a maioria ainda não foi tornada pública. Mas eles vão aumentar as punições. Se os sul-coreanos não mudarem de rumo, Pequim os fará pagar um preço alto”.
Um estudo feito no ano passado pelo Instituto EUA-Coreia, da Universidade Johns Hopkins, de Washington, considera que “a cooperação chinesa é essencial” para a solução do conflito na Península Coreana. Mas pondera que essa cooperação já não é garantida, com as tensões no Mar do Sul da China, onde o país disputa territórios e influência com os vizinhos da região; a busca de projeção dos EUA na Ásia e a instalação do sistema Thaad.
Com Trump, isso se torna ainda mais difícil. O comércio com a China foi um dos principais alvos de seu campanha. O agora presidente eleito ameaçou impor tarifas de importação de até 45% sobre os produtos chineses. A nomeação de Robert Lighthizer para o cargo de representante para o Comércio confirma essa prioridade. Advogado, Lighthizer tem atuado em processos da indústria siderúrgica americana contra os concorrentes chineses. E tem defendido uma mudança do Partido Republicano em relação ao comércio, em favor de uma posição mais protecionista. Nos anos 80, no governo de Ronald Reagan, como vice-representante para o Comércio, ele conduziu a guerra comercial contra o Japão, que em certo sentido desempenhava o papel hoje ocupado pela China, de potência industrial asiática emergente.
No dia 2 de dezembro, Trump pisou no calo mais sensível dos chineses, ao conversar pelo telefone com a presidente de Taiwan, Tsai Ing-wen, colocando em xeque a política de “uma China”, sagrada para Pequim, que implica o não reconhecimento do governo taiwanês.
Diante do alvoroço causado pela inédita conversa, Trump tuitou: “A China nos perguntou se era OK desvalorizar sua moeda (tornando difícil para nossas empresas competir), taxar pesadamente nossos produtos que entram no país deles (os EUA não os taxa) ou construir um enorme complexo militar no meio do Mar do Sul da China? Acho que não!” Uma semana depois, em entrevista à Fox News, ele disse que entendia perfeitamente as implicações de seu gesto, repetiu as queixas contra a China e acrescentou uma: “Francamente, eles não estão nos ajudando com a Coreia do Norte”.
Uma das reclamações que Trump tem repetido contra a China simplesmente não procede: na verdade, o Banco Central chinês tem despendido consideráveis reservas para tentar conter a queda de sua moeda, o yuan ou renminbi, para evitar pressões inflacionárias por meio do aumento dos preços dos produtos importados. Mas Trump e seus assessores não costumam ligar muito para esse tipo de “detalhes”.
Os especialistas discutem qual seria a forma mais eficaz, do ponto de vista dos Estados Unidos, de lidar com a Coreia do Norte e com seu poderoso aliado chinês. O governo americano poderia buscar uma relação construtiva com a China, para pressionar ainda mais Pyongyang, por meio de sanções econômicas. Mas o fato é que isso tem sido feito de forma progressiva desde 2006, sem o resultado esperado.
Para o especialista em assuntos nucleares Jeffrey Lewis, diretor do Programa de Não-Proliferação do Leste Asiático, de Monterey (Califórnia), as pressões econômicas só “têm o efeito de fazer os EUA e seus aliados sentirem que estão fazendo alguma coisa, enquanto a Coreia do Norte desenvolve seus mísseis balísticos intercontinentais”. Tong Zhao, do Carnegie de Pequim, concorda: “Não vejo como a Coreia do Norte suavizará sua posição. Eles vêem a contenção nuclear como absolutamente crucial para assegurar a sobrevivência do país. Só depois que a tiverem, destinarão recursos para a economia”.
John Delury, professor de assuntos chineses na Universidade Yonsei, em Seul, reconhece que não há mais opções no campo econômico para pressionar Pyongyang: “A Coreia do Norte é difícil de punir porque tem tão pouco a perder”. É diferente do Irã, compara ele, que tem uma economia integrada à da Europa e uma classe média que sofreu com as sanções impostas pelo Ocidente, levando o regime às negociações que resultaram no acordo nuclear do ano passado.
Solução militar?
Claro que os EUA podem recorrer à solução militar. Mas, apesar da imensa superioridade militar americana, isso não seria indolor. Estudos de cenário feitos pela consultoria Stratfor mostram que a artilharia convencional norte-coreana teria condições de destruir parcialmente alvos no norte da Coreia do Sul e em Seul. Alguns mísseis podem atingir também o Japão.
Os norte-coreanos também têm um arsenal químico, que está só parcialmente em condições de emprego — cerca de 150 ogivas de mísseis — mas que também pode causar um dano psicológico, por seus efeitos. Acredita-se ainda que o país tenha de duas a cinco ogivas nucleares prontas para uso. Ainda que apenas uma delas furasse o Thaad e atingisse uma grande cidade sul-coreana, o efeito seria “catastrófico”, pondera o estudo da Stratfor.
Mesmo não acreditando em sanções econômicas, especialistas como Delury não descartam a possibilidade de uma negociação entre os governos de Trump e Kim. Em junho, durante a campanha, Trump chegou a dizer que gostaria de se encontrar com Kim: “O que diabos há de errado em conversar?” Delury acha que esse “é o caminho”, e que a declaração foi um momento “brilhante” de Trump: “Ele tem os instintos certos. Você pode imaginar Trump em Pyongyang de uma forma que não pode imaginar Hillary Clinton”.
Tudo é possível. Mas brigar com Pequim talvez não seja a forma mais fácil de chegar até Pyongyang.