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A ameaça populista, na década de 1930 como hoje

Livro que antecipou a catástrofe fascista nos anos 1930 ainda tem alguns recados atuais, em tempos de renascimento do populismo

DONALD TRUMP: contexto da década de 1930 tem semelhanças com o cenário da política dos EUA atual (Kevin Lamarque/Reuters)

DONALD TRUMP: contexto da década de 1930 tem semelhanças com o cenário da política dos EUA atual (Kevin Lamarque/Reuters)

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EXAME Hoje

Publicado em 28 de outubro de 2017 às 11h21.

Última atualização em 28 de outubro de 2017 às 11h22.

Não vai acontecer aqui

Autor: Sinclair Lewis – trad. Cássio de Arantes Leite

Editora: Alfaguara

Páginas: 408

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Em 1935, o líder populista americano Huey Long, ex-governador da Louisianna e senador da república, tinha planos de desafiar a candidatura à reeleição do presidente Franklin Roosevelt e usar a notoriedade para fundar um outro partido e disputar o cargo. Ele pregava uma redistribuição de renda, falava contra banqueiros, apelava para a classe trabalhadora – a quem dizia que libertaria dos exploradores. Tudo isso em meio à Grande Depressão. Long tinha chances de ser eleito em 1936 (dizia-se que Roosevelt o temia), mas não chegou a concorrer: foi assassinado um mês antes de anunciar sua candidatura.

Não à toa, seu nome foi lembrado quando Donald Trump resolveu disputar a presidência americana. Várias de suas propostas eram parecidas. Mais que isso: Long foi o precursor do caminho demagógico que levaria anos mais tarde a Ross Perot e, finalmente, Trump. Long foi também fonte de inspiração para o senador Berzelius Windrip, personagem do livro Não Vai Acontecer Aqui, do Prêmio Nobel de Literatura Sinclair Lewis.

Escrito em 1935, antes do assassinato de Long, em meio à ascensão do nazismo na Alemanha e do fascismo na Itália (e na Europa em geral), o livro é um romance político que funciona como sátira da realidade. A comparação mais sedutora é com o inglês George Orwell – mas é uma covardia, a despeito de Lewis ter um Nobel e Orwell (injustamente) não.

Tanto em A Revolução dos Bichos quanto em 1984, Orwell pintou a face sombria do fascismo e, principalmente, do comunismo, com tamanha vividez que é difícil encontrar, mesmo hoje, análise política tão bem sustentada. Ele foi um mestre da extrapolação, e quase qualquer regime totalitário pode ser medido na escala orwelliana – abstrata e surreal, mas ao mesmo tempo um retrato concreto e fiel do autoritarismo. (Contradição? Não. Genialidade.)

Lewis não chegou a tanto. Não é sua culpa: ao criar uma história realista, como poderia saber que a realidade superaria em larga escala os seus traços mais sombrios?

Há campos de concentração no livro de Lewis. Mas não chegam aos pés – nem em dimensão nem em crueldade – dos campos de extermínio que Hitler implantaria alguns anos depois; nem mesmo dos gulags de Stalin.

Assim como Orwell, Lewis captou a realidade que se formava e exagerou seus traços. Mas foi tímido. Os facínoras posteriores cabem na fantasia de Orwell; mas ultrapassaram em muito a fantasia de Lewis.

A democracia é assim tão frágil?

Isso não quer dizer que o recado essencial de Lewis tenha perdido o valor. Seu título, irônico, é um alerta de que basta um descuido para que a democracia fique sob ameaça.

É por isso que, oito décadas depois de lançado, o livro voltou a ser lembrado: a eleição de Trump guarda várias semelhanças com a eleição de Windrip, o ditador manipulado por um assessor (como se dizia, aliás, que a agenda de Stephen Bannon dominava Trump, mesmo tendo ele sido uma aquisição tardia de sua campanha).

É por isso também que a tradução brasileira se revela oportuna. A eleição de um político como João Doria à prefeitura de São Paulo e, principalmente, a candidatura de um populista de direita como Jair Bolsonaro, têm também seus pontos em comum com o descontentamento que elegeu Trump, faz subir a representação da extrema direita na Europa, votou pela saída do Reino Unido da União Europeia…

E, no entanto, o alerta do livro não tinha como levar em conta a história que se seguiu a ele: a Segunda Grande Guerra e o Holocausto, a Guerra Fria, a distensão, as lutas pelos direitos civis.

O que a própria presidência Trump tem provado é que a democracia não é assim tão frágil quanto era no começo do século. A história não se repete – nem como farsa – porque as pessoas aprendem com a história.

Foi estranhamente fácil para Windrip criar um estado totalitário depois de ser eleito democraticamente. Tão fácil que soaria como inverossímil, não fosse por Hitler ter feito em seguida a mesmíssima coisa: eleito, sem ter nem mesmo a maioria absoluta, conseguiu em poucos anos controlar a sociedade alemã de forma quase absoluta.

Mas esse caminho é bem mais árduo hoje. Trump não conseguiu aprovar medidas restritivas à entrada de imigrantes porque a Justiça funcionou; não está conseguindo erguer um muro na fronteira com o México porque o Congresso, mesmo controlado por seu próprio partido, reluta em aprovar projetos mirabolantes.

Embora a Venezuela seja um exemplo de liderança democrática que virou ditatorial, e haja tantos casos de ditadores na África e no Oriente Médio que dão ares de democracia a seus regimes, em países mais bem assentados as instituições resistem – e o Brasil é um caso de sucesso.

O que era um título irônico, portanto, pode ser entendido ao pé da letra. Não vai acontecer aqui, a despeito de notícias falsas, desilusão com os políticos, esquemas de corrupção, dificuldades econômicas.

O roteiro dos facínoras

A leitura de Sinclair Lewis vale menos como alerta, hoje, do que como roteiro histórico da ascensão do fascismo. Os títulos (Windrip é chamado de Chefe, ao estilo do Fuhrer alemão, do Duce italiano, do Pai dos Povos soviético, do Grande Líder chinês, do Pai dos Pobres de Getúlio Vargas). Os hinos nacionalistas. A promessa de redistribuição radical de renda (Windrip dizia que daria 5.000 dólares a cada americano). A ascensão dos canalhas e os grupos organizados de militantes. A diabolização de negros e judeus.

Vários dos capítulos começam com trechos de um livro de Windrip (um livro dentro do livro), que exibem suas crenças, à moda de Minha Luta, o libelo que Adolf Hitler escreveu na prisão e que, mais tarde, faria um sucesso onipresente na Alemanha – especialmente por sua fantástica estratégia de marketing: quem não o tivesse em casa arriscava ser denunciado como inimigo da pátria.

Não Vai Acontecer Aqui é centrado não na história de Windrip, mas do jornalista liberal Doremus Jessup. Pode-se argumentar que os jornais estão hoje em condições econômicas menos sólidas do que já estiveram; mas já construíram uma tradição de defesa das instituições.

O ordálio de Jessup encontra eco na história de Fritz Gerlich, jornalista que resistiu à ascensão de Hitler e acabou preso e morto num campo de concentração. Mas a imprensa brasileira se saiu relativamente bem nos tempos mais obscuros da ditadura militar brasileira – embora uma cena do livro de Lewis lembre quase ao pé da letra o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, apresentado como suicídio por seus torturadores.

É certo que o leitor encontrará inúmeros motivos para relacionar os personagens e situações do livro a casos e pessoas reais. Mas isso não implica que o roteiro será seguido.

Nos últimos 80 anos, a profusão de relatos – incluindo os ficcionais, como o de Lewis – educaram legiões de cidadãos sobre os riscos do fascismo. Mesmo se há derrotas no caminho, a descida ao inferno encontra resistência a cada metro.

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