Economia

Como o governo decidiu criar financiamentos com juros só pela inflação

Por trás da decisão da Caixa de lançar linha de crédito imobiliário atrelada à inflação está a atuação do mercado imobiliário

Prédios: dono da incorporadora Tecnisa, Meyer Nigri fez peregrinações no Palácio do Planalto dizendo que medida beneficiaria setor imobiliário (efrederiksen/Getty Images)

Prédios: dono da incorporadora Tecnisa, Meyer Nigri fez peregrinações no Palácio do Planalto dizendo que medida beneficiaria setor imobiliário (efrederiksen/Getty Images)

EC

Estadão Conteúdo

Publicado em 9 de setembro de 2019 às 13h26.

Última atualização em 9 de setembro de 2019 às 13h32.

São Paulo — Dos convidados que preenchiam o salão nobre do Palácio do Planalto naquele 20 de agosto, nenhum parecia tão satisfeito quanto o paulista Meyer Nigri, dono da incorporadora Tecnisa. O evento marcava o lançamento de uma nova linha de crédito imobiliário da Caixa. O banco estatal permitiria, a partir dali, que o índice oficial de inflação fosse usado para corrigir empréstimos na compra da casa própria. Era uma causa pela qual o empresário militava havia anos. E que, nos últimos meses, havia se dedicado pessoalmente a fazer avançar.

Em agosto, a Caixa anunciou que lançará uma linha de crédito imobiliário atrelada à inflação, o que tem a perspectiva de baratear financiamentos.

Entusiasta da ideia, que classifica como "uma revolução" para o seu mercado, Nigri tentou emplacá-la em diversos governos, sem sucesso. A "taxa referencial", criada pelo governo Fernando Collor como um instrumento para tentar combater inflação, seguia sendo usada nos empréstimos imobiliários. Na equipe econômica de Jair Bolsonaro, Nigri encontrou, enfim, interlocutores animados com a medida.

Ele foi o primeiro grande empresário do País a se aproximar de Bolsonaro, então deputado federal do Rio com ambições presidenciais. Tornaram-se amigos em 2016 e se falam com frequência até hoje, proximidade que Bolsonaro não esconde. "Fala Meyer, tudo bem? Confiou em mim lá atrás. Muito obrigada pela confiança", disse o presidente, em discurso naquela tarde no Planalto, ao comentar que a medida da Caixa deixaria o mercado imobiliário satisfeito. O rosto de Nigri se iluminou. 

O empresário diz que Bolsonaro não sabia que ele vinha correndo o governo e advogando pela nova linha. "Ele soube só recentemente", afirma. "Sobre assuntos de economia, ele pede sempre para falar com o Paulo Guedes", diz.

Foi numa conversa com o ministro da Economia que o périplo do empresário começou. Em dezembro, o economista, que se preparava para assumir o cargo em Brasília, recebeu Nigri para um almoço num restaurante no Rio de Janeiro. Foi o primeiro contato.

O empresário aproveitou para defender sua causa. Usar o IPCA para como indexador do financiamento imobiliário ampliaria o acesso ao crédito e ajudaria a empurrar a recuperação da economia, na visão dele e outros representantes do setor. Guedes ouviu com atenção. Disse ter gostado.

Animado, Nigri voltou à carga no mês seguinte e puxou o assunto com o novo ministro da Economia. Queria saber se a ideia seria implantada já na largada do governo. "Mas ele me falou: 'Meyer, minha prioridade agora é Previdência, Previdência, Previdência", afirma.

O empresário trabalhava em outras frentes. Havia feito contato com Pedro Guimarães, presidente da Caixa, banco que responde por 70% do crédito imobiliário no País. Ainda em janeiro, os dois se encontraram para um almoço, no restaurante Gero, em São Paulo. Guimarães se interessou pelo tema. O assunto havia sido mencionado em conversas do grupo montado para elaborar o programa econômico de Bolsonaro, do qual ele fazia parte. Ficaram de conversar mais à adiante.

"Aí veio a cartada final: Dallas", diz o empresário.

Nigri se uniu à comitiva do presidente, que foi aos Estados Unidos em maio para receber o prêmio "Person of the Year", concedido pela Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos. O empresário já havia acompanhado auxiliares de Bolsonaro na viagem presidencial a Israel, com outros integrantes da comunidade judaica. Mas, desta vez, a equipe econômica estaria em peso. "Sabia que Guimarães e Guedes estariam lá. Peguei as minhas pastinhas e levei", diz.


As "pastinhas" eram um conjunto de gráficos e projeções que mostravam os benefícios do indexador. Eram antigas companheiras de Nigri. "Faz uns cinco anos que venho apresentando para todos os presidentes de bancos, o setor, os ministros da Fazenda. Todos sempre gostaram, acharam a ideia muito boa, o plano ótimo, mas nunca colocaram em prática", diz. Guedes e Guimarães receberam em Dallas versões das pastinhas em um café.

Dias após retornar dos EUA, Meyer foi a Brasília para novo giro. Reuniu-se com executivos da Caixa e com o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. Era essencial trazer o BC para o plano. Para que a medida saísse, uma resolução teria de ser aprovada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN).

As pastinhas, no entanto, foram de menos serventia entre os técnicos da Caixa, que estudavam há dois anos alternativas para ampliar os empréstimos, e do Banco Central. Durante a campanha, a pedido de Paulo Guedes, Campos Neto foi incumbido de formular propostas para estimular o mercado de capitais. Já havia analisado e era defensor da medida.

Cerca de três meses depois, em agosto, a medida foi anunciada. Em uma "live" com Bolsonaro, o presidente da Caixa disse que uma novidade "revolucionária" seria apresentada e ela mudaria a "história do crédito imobiliário".

No evento no Planalto, Guimarães, Campos Neto e Bolsonaro apresentaram a nova linha corrigida pela inflação.

"Fiquei feliz da vida. Foi bárbaro. Pela primeira vez, um governo teve a visão, comprou e bancou a ideia", diz.

Com o uso da inflação como indexador, os bancos poderão vender a terceiros "recebíveis" dos empréstimos e usar a antecipação desse dinheiro para conceder mais financiamentos.

"Quando pensamos em soluções para alavancar o crédito, a resposta é: precisamos de funding (recursos). Para isso, precisamos ter financiamentos atrelados a títulos que o mercado possa comprar", diz Jair Mahl, vice-presidente da Caixa. "A Caixa esgotou sua capacidade e havia debate no banco sobre o que fazer."

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