Posicionamento da Nike: marca faz post antirracismo após assassinato nos EUA (Nike/Reprodução)
Problema estrutural nos Estados Unidos, o racismo voltou a ser discutido após o assassinato de George Floyd por um então policial em Minneapolis. O tema foi levado a sério por marcas americanas. Um exemplo notório foi a Nike, que postou um vídeo com a frase “Don’t do it” (alterando seu famoso lema “Just do it”), denunciando o racismo e a morte de inocentes. A ação foi potencializada pela Adidas, que endossou o chamado da concorrente. Depois disso, outras marcas entraram no movimento.
No Brasil, o racismo também é um problema estrutural, mas a postura das marcas é distinta. Um levantamento feito pela Exame, com base na lista da consultoria Interbrand das 25 marcas mais valiosas do Brasil, mostra que nenhuma delas fez publicações sobre o tema nas últimas duas semanas. O período inclui o assassinato de João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos, durante operação policial em São Gonçalo, no Rio de Janeiro.
Algumas das marcas analisadas só tocaram no tema na terça-feira, 2, em adesão à campanha BlackoutTuesday, movimento global em que personalidades e empresas publicaram imagens totalmente pretas em apoio aos protestos antirracismo nos EUA e em países no mundo todo. Outras marcas – estrangeiras que têm atuação no Brasil – se manifestaram citando, inclusive, o nome de João Pedro, caso da Netflix.
David, João Pedro, João Vitor, George Floyd e tantos mais.
Ficar em silêncio é ser cúmplice, e eu não vou mais me calar.
Eu tenho um compromisso e um dever com meus assinantes, funcionários, criadores de conteúdo e talentos negros. #vidasnegrasimportam em qlqr lugar do mundo https://t.co/kqPtBnLhBi
— netflixbrasil (@NetflixBrasil) May 30, 2020
Grande parte das empresas, no entanto, têm feito diversas publicações relacionadas à redução de impactos da pandemia, mostrando sua capacidade de engajamento com um tema que também é social. Por que, afinal, é tão difícil para uma marca se posicionar em uma questão tão clara e urgente quanto o racismo?
A resposta envolve muitos fatores, mas, na prática, uma questão pesa mais: a análise de riscos. “Quando ocorre algo de grande magnitude, existe um balanço interno sobre as consequências de se posicionar ou não. Geralmente, não se posicionar é visto como uma estratégia menos arriscada em termos de reputação”, diz Luana Ozemela, economista e diretora da Dima, empresa que conecta o mercado árabe a empresas latinas, com sede no Qatar. “Mas, neste caso, sabemos que a neutralidade beneficia o opressor e não a vítima, que tem a vida em jogo.”
Ozemela construiu sua carreira com foco em políticas públicas para impacto em desigualdade racial e de gênero no Banco Interamericano de Desenvolvimento em locais como Estados Unidos e Haiti. Segundo ela, existe um descompasso nos interesses das pessoas por trás das marcas. “Entendo que acionistas queiram ganhar dinheiro e minimizar riscos, mas os clientes também são importantes para as marcas”, diz. “Se quiserem continuar ganhando dinheiro, o cliente deve estar em primeiro lugar. Em um país com 56% de negros, é preciso se posicionar.”
Posicionamento e consumo
Estudos mostram que, para além da análise de riscos, o racismo tem outros impactos na publicidade. Em 2017, uma pesquisa do Grupo Croma revelou que, entre os quase 2.000 entrevistados, 32% acreditam que as marcas presentes no Brasil reproduzem comportamentos preconceituosos e 16% acreditam que as marcas correm risco ao associar sua imagem a negros.
“As marcas ainda são medrosas, a verdade é esta”, diz Edmar Bulla, diretor do Grupo Croma. “Elas não defendem causas com um discurso contínuo e, se fazem isso pontualmente, ninguém acredita no posicionamento.” Para ele, o apoio a questões como a luta contra o racismo deve ir além da publicidade, passando obrigatoriamente pela empregabilidade, com negros representados no quadro de funcionários e na alta liderança.
Bulla lembra de uma pesquisa recente sobre a ação das marcas na pandemia. Aquelas que se posicionaram com clareza têm 69% de intenção de consumo. O resultado indica uma tendência válida para qualquer questão de interesse coletivo. “Marcas que abordassem, por exemplo, o caso de João Pedro, ganhariam frente à sociedade. A ausência constante de posicionamento causa um efeito de esquecimento.”
Em uma pesquisa de consumo realizada em 2019, a consultoria Accenture constatou que 83% dos consumidores brasileiros preferem comprar de empresas que defendem propósitos alinhados aos seus valores de vida, evitando marcas que se mantêm neutras. O desejo de ver posicionamento de empresas sobre temas como política e meio ambiente é compartilhado por 79% dos consumidores.
Ativistas de fim de semana
A timidez das empresas brasileiras acaba gerando outra questão que impede o posicionamento: o medo do oportunismo. Por vezes, uma publicação pontual sobre o tema tem reação negativa do público, que entende que a marca quer apenas usar uma discussão em alta para fazer marketing.
Criador da agência Black Influence, que trabalha com influenciadores negros, Ricardo Silvestre sente isso na pele. “Empresas não assumem o compromisso público de ajudar a comunidade negra e estar presente na vida das pessoas. Acaba sendo um discurso de fachada”, diz. “Como publicitário, vejo que não existe demanda: só há contratação de negros em novembro, quando surge o tema da consciência negra. Black lives matter? Acho que não.”
A solução seria manter um posicionamento perene sobre questões sociais que conversam com a missão das empresas. O mercado parece estar prestes perceber isso, sobretudo com o impacto da pandemia.
Pelo menos é o que pensa Michel Alcoforado, antropólogo e sócio-diretor da Consumoteca, consultoria que apoia marcas para que lidem com as mudanças do mundo. Para ele, as empresas começarão a entender que o posicionamento em relação a certas causas dá dinheiro. E o grande exemplo sobre o tema é a varejista Magazine Luiza.
Magalu e Madero: exemplos opostos
“A própria Luiza Trajano assumiu causas como suas e da marca, sobretudo no apoio às mulheres. Desenvolveu o grupo Mulheres do Brasil e tem feito uma campanha ferrenha para pensarmos na violência doméstica. Além disso, teve a campanha para não demitir funcionários na crise”, diz Alcoforado, destacando o retorno que a marca tem ao se posicionar.
Como resultado, não obtido apenas pelo posicionamento, a Magazine Luiza ultrapassou os 100 bilhões de reais na Bolsa durante a pandemia. “E eles doaram 10 milhões e alguns respiradores, o que não se compara como o fundo de um bilhão que o Itaú criou. Magalu sai como a empresa que não demitiu e que se preocupou com o Brasil e com as mulheres em casa. Quanto o Itaú anunciou o fundo, alguns disseram ‘por que só um bilhão, se eles faturam muito mais?’”, diz o antropólogo. “O período do low profile acabou: quem não se posicionar não vai mais existir.”
Em contraponto, ele analisa o caminho tomado pela rede de restaurantes Madero. A empresa optou pelas demissões, e o fundador Junior Durski chegou a publicar um vídeo no Instagram no qual dizia que “o Brasil não pode parar por conta de 5 mil ou 7 mil pessoas que vão morrer”. Mesmo após retratação, a empresa viu uma queda brusca na base de clientes. “Jogaram a marca no chão. Quando vemos o esvaziamento dos restaurantes da rede, entendemos que há uma questão nacional posta apesar das elites”, diz Alcoforado.
O impacto do posicionamento nos resultados pode indicar uma mudança no comportamento das marcas, mas Luana Ozemela garante que isso, por si só, não é suficiente. “As revoluções institucionais só acontecem com uma liderança forte e decisiva”, diz a economista. “A atitude deve partir do CEO, dos conselhos, dos diretores, e deve vir com um mandato forte, com recursos destinados para o tema, parcerias para executar planos de ação de equidade de raça e métricas para avaliar a evolução. Por isso é tão importante o posicionamento. A mudança real começa aí.”