A bivalência das empresas familiares pode ser uma força catalisadora para o sucesso quando bem gerida. (Anna Fomenko/Getty Images)
Colunista
Publicado em 4 de dezembro de 2024 às 15h00.
Em 1996, John Davis e Renato Tagiuri publicaram o icônico artigo intitulado “Bivalent Attributes of the Family Firm”. Nele, Davis e Tagiuri apresentam a bivalência como uma característica inerente às empresas familiares e exploram sua natureza “dupla” em diversos aspectos, ressaltando que a diversidade de perfis dentro da família pode gerar tensões, mas também oferece um enorme potencial. Concluem que a combinação de negócios e laços familiares cria tanto desafios quanto oportunidades, podendo contribuir para o sucesso ou a ruína dessas empresas, a depender de como as divergências são administradas.
Esse não foi o primeiro, nem o último artigo acadêmico a discutir o perfil conflituoso das empresas familiares. Entretanto, entre os textos que tive o privilégio de acessar, considero esse um dos que melhor revelam a beleza escondida nas diferenças. Como toda leitura, seu conteúdo ressoa de forma única para cada leitor; e é possível que minha visão seja influenciada pela minha experiência profissional, pelo meu apreço por gestão de crises e pelo prazer que encontro em mediar conflitos. Para mim, a divergência é matéria-prima para grandes ideias, e é assim que enxergo a sociedade familiar: como uma fonte propulsora de desenvolvimento e progresso.
Crescida em uma família empresária e, após anos atuando com empresas familiares – primeiro como advogada, depois como executiva e hoje como conselheira – percebo que a emoção, frequentemente mais presente nesse contexto, pode contribuir significativamente para a criação de propósito e fortalecer o sentimento de pertencimento. Esse é o ambiente ideal para a formação de equipes de alta performance, criativas, realizadas e comprometidas com resultados. Quando isso é aliado a uma visão de longo prazo, essas empresas tendem a se tornar mais resilientes e a criar um ambiente propício à inovação.
Assim, não me surpreendo em ver empresas familiares se destacando como líderes em inovação em seus setores. É inspirador observar a capacidade de algumas companhias em combinar tradição e inovação de forma harmônica, reinventando-se ao longo do tempo sem perder a essência e seus valores originais.
Por outro lado, quando a emoção domina os agentes – em vez de ser controlada – pode se tornar um problema. Infelizmente, isso ocorre com mais frequência na medida em que o controle se dispersa e as decisões deixam de se concentrar na figura do fundador. A convivência entre gerações e membros com perfis tão diversos pode resultar em desordem, descrédito e até em batalhas societárias, com consequências graves para o mercado. A existência de uma boa estrutura de governança ajuda na gestão de conflitos, mas não impede os efeitos – às vezes silenciosos – do dissenso não resolvido.
Existe, de fato, uma questão cultural a ser trabalhada, começando pela conscientização não só dos membros familiares, mas também dos colaboradores sobre o papel de cada um na organização (ou fora dela). Tão importante quanto identificar talentos e alocá-los em funções adequadas às suas habilidades e vocações, é disseminar a compreensão de que as decisões empresariais não devem ser guiadas por laços familiares, para o bem da preservação do negócio – e desses mesmos laços.
Nesse contexto, o compromisso da empresa com a inovação pode tanto agravar as tensões como reduzi-las. Alinhar as expectativas em relação à alocação de recursos e talentos nos três horizontes da inovação pode criar o espaço necessário para as novas gerações, contribuindo para a equalização dos interesses e perspectivas sobre os caminhos da empresa.
Por exemplo, os membros mais experientes da família podem desempenhar um papel central na melhoria contínua e inovação incremental em produtos e serviços já existentes (Horizonte 1), trazendo seu conhecimento sobre o negócio e o mercado, otimizando operações e maximizando retornos.
Já quando o foco é expandir o negócio para novos mercados ou desenvolver produtos com base no know-how existente (Horizonte 2), recomenda-se uma combinação de experiência e visão, onde tanto os membros mais jovens quanto os mais experientes podem contribuir, trabalhando juntos para explorar novas oportunidades e fortalecer os laços de admiração e confiança.
Por fim, quando falamos de inovação disruptiva e criação de novos negócios ainda não validados pelo mercado (Horizonte 3), a ousadia e criatividade das novas gerações podem se tornar um diferencial competitivo, trazendo novas perspectivas, que questionam o status quo e experimentam abordagens inovadoras para os desafios futuros.
Certamente, esse modelo serve apenas como exemplo de como uma família pode distribuir talentos e gerações entre os três horizontes. Vale ressaltar que a identificação de talentos não deve se basear exclusivamente em tempo de experiência ou idade, mas sim em habilidades técnicas e emocionais, interesses, disponibilidade e outras características subjetivas. Já convivi com líderes experientes que mantêm o arrojo da juventude e com “jovens idosos”, extremamente apegados à tradição. O ponto aqui é que a convivência entre diferentes gerações pode ser a chave para o sucesso em todos os três horizontes de inovação, especialmente quando os membros da família assumem suas diferenças e distribuem responsabilidades de forma consciente e racional, direcionada à maximização dos resultados para o negócio.
Em resumo, a bivalência das empresas familiares pode ser uma força catalisadora para o sucesso quando bem gerida. Em vez de ver as diferenças de pensamento e talentos como pontos de conflito, essas características podem ser transformadas em uma poderosa fonte de inovação.
Ao integrar diferentes perspectivas e estilos de liderança — oriundos de distintas gerações e perfis — as empresas familiares conseguem maximizar seu potencial criativo e inovador, aumentando as chances de sucesso no presente e no futuro. Ao abraçarem a bivalência e promoverem uma cultura de inovação contínua, as empresas familiares têm a oportunidade não apenas de atravessar gerações, mas de liderar seus setores com soluções disruptivas e sustentáveis.