Gustavo Franco: o governo precisa de um relançamento (Leandro Fonseca/Exame)
Redação Exame
Publicado em 10 de agosto de 2024 às 07h12.
Este não é o mês do desgosto, que pode ser o próximo, ou não, a depender dos mercados, que derreteram globalmente diante dos temores de uma recessão nos EUA, e do modo como o governo vier a superar, ou não, as dificuldades que criou para si e que emergiram de forma particularmente séria em julho com respeito aos impostos e à Venezuela.
O momento não é bom, no que parece ser o encerramento oficial da primeira metade desta presidência. Certamente não é o que o presidente anda escutando no Palácio do Planalto. Há muita adulação em torno do presidente, talvez tanta quanto tem sido a falta de imaginação na economia. O governo precisa de um relançamento, pois é como se a mágica que veio com a vitória eleitoral e reabilitação de Lula estivesse se esgotando prematuramente.
No plano doméstico, o mês de julho de 2024 será lembrado pela inundação de memes sobre a fixação do ministro Fernando Haddad com impostos. Jamais os impostos foram discutidos no Brasil nesses termos. Foi no terreno da comédia, mas de um tipo que não pode deixar de ser levada a sério.
De todos os ministros da Fazenda a partir da Nova República, começando por Francisco Dornelles, que foi, inclusive, Secretário da Receita Federal, passando por renomados campeões da causa do equilíbrio fiscal, nenhum ministro falou tanto em impostos com tanto empenho e de forma tão desabrida.
Diversos desses ministros fizeram pacotes tributários. Em certa época, chegou a se falar em uma “rotina” de pacotes tributários de fim de ano, para fechar as contas. O próprio Paulo Guedes mandou o seu. Mas, invariavelmente, o pacote de impostos era um sideshow, um coadjuvante do esforço de equilíbrio fiscal e seus autores, sobretudo os ministros, mantinham sempre uma distância prudente do assunto.
Não foi o que fez Fernando Haddad.
Aqui como em qualquer parte, o tema é politicamente difícil desde sempre, ao menos desde o episódio do Tea Party nos EUA e do “quinto dos infernos” do Brasil Colônia. A Inconfidência Mineira e a Revolução Americana tiveram que ver com impostos. Faz tempo, mas as marcas deixadas nesses episódios foram duradouras, e o tema permaneceu difícil ao longo dos anos.
Note-se que o presidente da República não fala disso. O assunto pertence ao ministro, que é quem aparece nos memes e absorve essa energia. Será uma estratégia? Um plano? Terá sido uma escolha consciente para o tema central da segunda metade da presidência Lula 3, na direção de Lula 4 ou Haddad 1? Ou um resultado da mesma inércia diante de circunstâncias de Brasília que levou Fernando Haddad a abraçar o “arcabouço” e a “reforma tributária”, assuntos sobre os quais tinha pouquíssima milhagem?
Em tese, o ministro que apostou na reforma tributária – ou seja, num esforço de racionalização dos impostos sobre o consumo – não precisava ser o mentor de um aumento assumido na carga tributária. São coisas diferentes[1]. Mas Haddad não apenas não se escondeu do assunto, como fizeram todos os seus antecessores, mas, também, adotou a vestimenta progressista ao advogar abertamente uma “reforma da renda”, como o próximo capítulo da reforma tributária.
Paulo Guedes ensaiou uma retórica como essa, mas não foi adiante. Seja porque o projeto era muito mais uma reunião de pleitos e ideias que vinham da Secretaria da Receita e de seus sindicatos de auditores que propriamente um projeto do ministro, seja porque o projeto não tinha a feição “mercadista” que o governo Jair Bolsonaro às vezes gostava de alardear para si.
Coube à Câmara dos Deputados filtrar e selecionar os tópicos aproveitáveis do projeto (que ganhou o número PL 2337/21), através de uma versão aprovada na Câmara, a partir de relatório do deputado Celso Sabino (PSDB-PA). Mas a matéria parou no Senado, onde esbarrou no interesse em debater a reforma tributária (dos impostos de consumo) no plano constitucional.
Espera-se que o governo apresente projeto assemelhado ao sugerido pelo ministro Guedes em 2021, seguindo a Receita Federal. As recomendações permanecem as mesmas, excetuado o que já emplacou, portanto, é de se esperar que Haddad retome onde Guedes parou, que assuma a ideia de tributar dividendos, que enfrente o tema do reajuste da tabela progressiva, mas que traga todos esses assuntos para um ângulo mais distintamente progressista, entrando em temas como as deduções, as alíquotas mais altas para rendas maiores e alguma novidade no terreno patrimonial.
Não se pode descartar nem mesmo a apresentação de alguma versão de imposto sobre grandes fortunas (IGF), previsto na Constituição (art. 153, VII) mas nunca estabelecido. Tendo visitado o Papa Francisco, para tratar da tributação dos “super-ricos”, e insistido no assunto no G20, não seria surpreendente que o ministro introduza o IGF, que a UNAFISCO entende que poderia gerar R$ 76,4 bilhões tributando-se cerca de 220 mil contribuintes[2].
Independente dos efeitos práticos, o ministro e o governo parecem apostar nesses debates, sempre difíceis. O clichê era observar que falar de impostos era uma estratégia de comunicação desgastante. Entretanto, se esta é a sua estratégia de ajuste fiscal, por que se esconder do assunto?
Julho trouxe uma amostra do que pode ser um ataque ao ministro, e mesmo ao governo, centrado no assunto dos impostos. O desgaste causado pelos memes é uma dura lembrança sobre a influência das redes sociais sobre a política.
Julho também foi movimentado e desgastante no plano internacional, o que talvez tenha mantido o presidente afastado da arenga com o Banco Central. Foi um desgaste a menos, por ora.
O COPOM se reuniu nos últimos dias do mês e, por unanimidade, manteve a SELIC em 10,5%. Houve mesmo quem falasse em subir os juros, mesmo depois de as mensagens vindas do FED terem sido no sentido baixista. As razões seriam o relativo aquecimento da economia, a subida do câmbio e a resistência das prévias e das expectativas em se ajustarem a uma convergência mais clara na direção da meta.
Não houve subida, mas mudou o que se conhece em bancocentralês como o “balanço dos riscos”, e para pior.
Com isso, pode-se dizer que o ciclo de baixa está terminado, conforme observado pelo consenso dos membros do COPOM em duas reuniões seguidas e pelo silêncio do presidente. O debate da sucessão de Roberto Campos Neto terá lugar nas próximas semanas sem que haja maiores inquietações sobre os juros, ao menos por ora.
Duas novidades surgiram no plano internacional. Nos EUA, a grande surpresa foi a reviravolta na campanha presidencial: Kamala Harris passou à condição de candidata competitiva diante de Donald Trump, após a desistência do presidente Joe Biden.
Para o olhar brasileiro, a desistência de Biden, por sua própria iniciativa, pode ser uma mensagem para Lula, que é dado como certo na disputa em 2026, a menos que desista e relance o projeto político que liderou.
Mas foi da Venezuela que veio o maior desgaste, que teve que ver com a ambição brasileira de se manter em bons termos com Nicolás Maduro. Terá sido em razão da afinidade ideológica entre os líderes, ou pela diplomacia midiática dos últimos anos, pela qual o país procura “arbitrar” conflitos em outras partes do mundo, talvez em busca de visibilidade internacional e do assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas? Ou tudo isso?
O fato é que Celso Amorim foi enviado a Caracas, quando muitos diplomatas foram expulsos do país e o próprio TSE brasileiro preferiu não acompanhar o pleito in loco.
A fraude eleitoral, bem como os abusos do regime, é muito flagrante, o que torna muito desconfortável a posição dos que tentam manter “equidistância” das partes em disputa na Venezuela. Não há dúvida de que é mais um caso de “atravessar a rua para arrumar um problema”, e meter-se em uma situação desgastante aparentemente sem solução e que tende a escalar em matéria de tensão política e violência. Maduro se declara vencedor, a oposição apresenta evidência de fraude, crescem as manifestações, conflitos, prisões, e vão desaparecendo as possibilidades de um acordo nacional. O Brasil se tornou sócio desse impasse, uma importação supérflua, que trouxe muito desgaste para o governo e tem desfecho imprevisível.
[1] Veja-se “A esquerda e os impostos” O Estado de São Paulo, 23, set, 2023.
[2] Unafisco Nacional. Nota Técnica n. 32/2024. “De gastos tributários à concretização dos privilégios tributários: Privilegiômetro Tributário de 2024”, São Paulo, 2024, P.10. Presume-se que seria o resultado de uma única cobrança. Nem mesmo a Unafisco imagina arrecadar esse tanto a cada ano.
*Gustavo Franco é sócio-fundador da Rio Bravo Investimentos e ex-presidente do Banco Central do Brasil. Este artigo faz parte da Carta Estratégias de julho, relatório mensal distribuído pela Rio Bravo a seus clientes e reproduzido com exclusividade pela EXAME Invest.