Gustavo Franco: os investidores brasileiros se acostumaram a ganhar da inflação (Germano Lüders/Exame)
Redação Exame
Publicado em 6 de setembro de 2023 às 06h22.
Brasília se acalma quando o presidente viaja, pois boa parte da capital, juntamente com o noticiário, viaja com ele.
O tema de mais essa etapa da diplomacia presidencial é a expansão do grupo BRICS, assunto de grande visibilidade, mas de efeitos econômicos “de longo prazo”, difíceis de se vislumbrar no primeiro momento.
Grandes debates podem ser entabulados sobre se os BRICS, ou se alguma expansão desse grupo, alcançarem a expressão e o significado do finado grupo dos 77 (G-77), os países ditos “não-alinhados”, de certo peso nos tempos da “guerra fria”.
O contexto é outro, mas há pouca dúvida de que o grupo se tornou algo bem maior que o prefigurado pelo criador do acrônimo, Jim O’Neill, em um já célebre relatório de pesquisa da Goldman Sachs. Mas certamente parece exagerado pensar que o grupo possa entreter ideias ambiciosas, por exemplo, sobre a desdolarização do comércio internacional. A construção e expansão do grupo está em andamento e não se sabe bem até onde poderá ir.
No Summit de Johanesburgo, agora no mês de agosto, o grupo ajustou a inclusão de seis novos membros: Argentina, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Etiópia, Egito e Irã. Não há mais um acrônimo que possa encapsular as iniciais desse novo G-11, e está aberta a temporada para as interpretações econômicas e geopolíticas sobre os termos de referência desse grupo.
O fato é que, sem a expansão de agora, os cinco membros originais respondiam por cerca de 15% do PIB mundial em 1992 e hoje sua contribuição ultrapassa 1/3, com 3,4 bilhões de pessoas, ou seja, mais de 40%da população do planeta.
A contribuição do G7 para o PIB global era de 45% em 1992 e passou a 28% em 2023.
É claro que esse G-11, ou o grupo BRICS depois de uma expansão (BRICS+), ainda pode crescer muito mais, porém, necessariamente, sua personalidade vai mudar. Sua próxima expansão possivelmente confrontará não mais o G-7, mas o G-20, cuja presidência será do Brasil entre dezembro de 2023 e novembro de 2024. E o grande desafio do próximo ano, resumido em uma única palavra, será: Argentina.
Os novos membros do BRICS+ não necessariamente contribuirão capital para o banco, o NDB (New Development Bank, conhecido como o “banco dos Brics”). Embora isso possa ocorrer em se tratando dos novos sócios que vêm do Golfo Pérsico, os outros, como a Argentina, deverão permanecer na ponta tomadora, do outro lado do balcão, como clientes. Crescendo em direção a seus clientes, o BRICS+ tende a ser uma emanação da China, um desafio para os outros países fundadores do grupo.
Cada um dos sócios originais do grupo possui sua agenda e seus interesses específicos e circunstanciais no desenvolvimento do bloco, que terá de se equilibrar numa linguagem sempre muito neutra para definir sua razão de ser e para acomodar as suscetibilidades de cada sócio.
Para o Brasil, resta evidente que o grupo e o conceito do BRICS+ permitem uma fusão entre a diplomacia pessoal do presidente da República e as agendas da esquerda do Itamaraty, bem representadas e assentadas no novo governo através da presença do embaixador e ex-ministro Celso Amorim, como um ministro sem pasta, ou chanceler “sombra”.
A inclusão da Argentina nessa primeira expansão do grupo BRICS pode ser vista como uma vitória brasileira, restando cogitar sobre o quanto deverá custar. Pode ser um favor para os Hermanos que, inclusive, afaste o Brasil de obrigações financeiras com o vizinho. Seria como fazer uma introdução, e deixar a dura conversa sobre funding com os sócios chineses. Mas talvez seja o contrário: o Brasil pode não conseguir se desvencilhar de contribuir para um pacote argentino, que parece provável em sequência às eleições de outubro, e que pode ser gigante e arriscado, e cuja construção provavelmente passará pelo G-20.
A Argentina realizou em 14 de agosto as suas primárias presidenciais (PASO – Primarias Abertas Simultâneas Obrigatórias) e o grande vencedor foi Javier Milei, um candidato que desafia descrições: como definir o populismo pela direita, com fortes tonalidades de liberalismo de modalidade libertária, na pátria do peronismo?
A analogia com Bolsonaro é automática e um tanto perturbadora, mas não passa de uma aproximação: os outsiders políticos, como as famílias infelizes de Tolstói, o são cada um de um jeito.
A aceleração da inflação tem sido alarmante, bem como o estado das finanças públicas. Conservadoramente, o FMI estima que a inflação termine o ano em 120%, com queda de 2,5% no PIB, mas a situação fiscal se encontra em franca deterioração, sendo que o próprio FMI não acredita que o governo cumpra sua meta fiscal para o ano, um déficit primário de 1,9% do PIB. Há um acordo com o FMI em andamento, cuja sexta revisão revelou uma impressionante taxa de descumprimento.
As eleições presidenciais terão lugar em outubro, e vai se firmando a expectativa de um pacote anti-inflacionário radical.
A inflação é o grande assunto da eleição, e a atmosfera lembra a disputa brasileira de 1989, época em que o presidente era eleito em outubro e a posse ocorria em março do ano seguinte. A tensão vai crescendo de tal sorte que um pacote se torna inevitável para quem quer que vença.
Miliei tem como principal assessor econômico o economista Emilio Ocampo, autor de um livro (em coautoria com Nicolas Cachanoski) cujo título fornece uma indicação muito forte sobre o que poderá se passar: Dolarización: Una Solución para la Argentina.
Entretanto, é difícil imaginar que a Argentina consiga implementar um regime como o do Equador, de dolarização sem “currency board”, e sem uma moeda fiduciária nacional. Esta seria a próxima variante (a última?) ainda não tentada, ainda mais radical que o “Plano de Conversibilidade”, associado ao ministro Domingo Cavallo, de 1991, e que colapsou em 2002.
Parece também difícil imaginar que isso possa ser tentado sem que ocorra algo como um “Plano Bonex” (o equivalente argentino para o confisco do nosso Plano Collor). Vamos aguardar.
Enquanto isso no Brasil, em imenso contraste, vamos festejando discretamente os 29 anos do padrão monetário iniciado em 1994, e refletindo sobre o longo prazo, ou sobre os próximos 30 anos de política monetária e de mercado de capitais, em um ambiente de estabilidade de preços, ou de inflação de Primeiro Mundo.
As primeiras três décadas do real foram muito profundamente marcadas pelas dores do tratamento.
Demorou pouco menos de três anos, a partir do Plano Real, para que a inflação, medida pelo IPCA, caísse abaixo de 5% anuais no acumulado de 12 meses. Mas foram mais de 25 anos para a SELIC chegar nesse patamar. O COPOM, que foi criado em 1996, se reuniu 226 vezes antes de colocar a SELIC em 4,5% anuais em 11/12/2019.
Foi uma trajetória longa e tormentosa e uma de suas lições mais cruéis é que não há cura definitiva: o risco de retorno da velha senhora está sempre presente e requer esforço permanente de prevenção.
A experiência recente da Argentina serve como valioso referencial para os que não lembram, ou que não viveram as dificuldades dos anos 1980, e não compreendem a gravidade e a complexidade de uma hiperinflação.
Passados 30 anos do Plano Real, e mesmo depois de longa desintoxicação, a inflação permanece uma ameaça, ainda que numa ordem de grandeza diferente da que teve no passado. Feita a ressalva, é interessante refletir sobre o horizonte que se apresenta para a política monetária e para o mercado de capitais brasileiro.
Ressalvada uma deterioração fiscal significativa, que sempre parece estar na próxima esquina, mas que, em verdade, é bem mais difícil de ocorrer hoje do que já foi no passado, é legítimo admitir que o Tesouro deverá encontrar melhores condições de (re)financiamento de sua dívida nos próximos 30 anos, especialmente se comparadas às condições observadas nos primeiros 30 anos do real.
Em tempos de crise fiscal, parece claro que a manutenção de juros reais positivos, todos dias a cada dia, funcionava como uma garantia de backstop público contra os efeitos da inflação, e como uma condição essencial para afastar o risco de uma hiperinflação. Eram os tempos do overnight.
É claro que a situação fiscal brasileira não é a de um país que tenha sequer o “grau de investimento”, mas a crise fiscal aberta do início da década de 1990 parece ter ficado para trás. Entretanto, o reconhecimento desses progressos “institucionais” ficou mais difícil depois que o próprio presidente da República politizou as taxas de juros, com isso incentivando os economistas, e mesmo o Parlamento, a cerrar fileiras em apoio ao Banco Central e a voltar suas atenções para a sustentabilidade fiscal.
Com efeito, o assunto do equilíbrio fiscal está bem longe de estar resolvido, e a aprovação do chamado “arcabouço fiscal”, em linha com o determinado pela PEC da Transição, representa nada mais que um passo relativamente tímido nessa direção. O país recebeu um upgrade na classificação de risco soberano, mas ainda permanece firmemente abaixo do “grau de investimento”.
Do ângulo intertemporal, a ideia de efetuar um “ajuste fiscal permanente”, ou de adotar um regime fiscal que de fato estabeleça a sustentabilidade fiscal, destinado a colocar o país na região do “grau de investimento” deveria ser um no-brainer. Reduções de despesa hoje se transformariam em grandes economias de juros no futuro.
É simples: ficaria mais barato para o Tesouro (re)financiar sua dívida porque haveria menos risco. Se o país chegar ao “grau de investimento”, e mesmo ultrapassar essa marca em dois ou três degraus (chegando no nível do Chile, por exemplo), certamente conseguiria reduzir substancialmente o custo de sua dívida, com imensa vantagem fiscal.
Mas as decisões de política fiscal não são feitas com essa lógica.
O ministro da Fazenda deveria ser o depositário desses princípios, o que, todavia, não parece ser o caso. A atenção do ministro parece unicamente concentrada nos impostos, e muito pouco em redução de despesa. O arcabouço foi uma boa iniciativa, mas é menos efetivo e restritivo que o teto de gastos. Suas metas de superávit primário não parecem factíveis, nem mesmo na banda inferior, o que remeteu o ministro da direção dos impostos e do desgaste.
A associação do ministro, e do governo, ao aumento da carga tributária, aliada à leniência com a despesa, deverá ficar mais flagrante e politicamente custosa.
A ministra do Planejamento, Simone Tebet, perdeu espaço e não faz contraponto ao ministro, até pelo contrário, parece se alinhar ao petismo mais radical, que, talvez por profissão de fé ou obrigação política, não apoia o ministro da Fazenda.
O ministro Haddad tentou encontrar linhas de menor resistência no campo da arrecadação, com o propósito de não descumprir muito flagrantemente sua promessa de não aumentar a carga tributária, mas não está fácil. Os sites de varejo para pequenas compras – que funcionam com “sacoleiros” em e-commerce – e os de apostas esportivas são novas fontes, mas de potencial limitado para as ambições do governo.
Os esforços para a tributação dos recursos offshore, bem como dos fundos exclusivos, exigiram um “esforço de vendagem” através do argumento de que eram tributações sobre “super-ricos” que, por qualquer razão, tinham sido “esquecidas” pelos seus antecessores. Em ambos os casos, todavia, há um problema formal em se tributar estoques, portanto o já acontecido, evocando a velha máxima pela qual também o passado, no Brasil, é incerto.
Num cenário em que o governo encontra um bom caminho para a política fiscal e se aproxima efetivamente do “grau de investimento”, faz sentido especular sobre o que se passará com os juros e com o panorama de investimentos.
Num cenário de sustentabilidade fiscal, não faria mesmo muito sentido que o Tesouro refinanciasse sua dívida pagando juros maiores que a inflação a cada dia todos os dias. Teria que haver uma conversa sobre o “desligamento”, talvez impossível no Brasil, do custo do financiamento da dívida pública e a política monetária.
Na planície, enquanto isso, os investidores brasileiros se acostumaram a ganhar da inflação, e do CDI idealmente, todos os dias e a cada dia, mesmo que mantenham suas aplicações por prazos longos e não precisem da liquidez.
Consolidamos uma “cultura do CDI diário” da qual não se consegue escapar, e que é preciso superar para que o mercado de capitais brasileiro progrida e para que o financiamento do governo seja mais barato.
É claro que será mais barato se for menos arriscado, como acima observado. O que nos leva de volta ao problema fiscal, infelizmente ainda não resolvido, e nem mesmo reconhecido em toda a sua complexidade.
É muito possível, talvez bem provável que em meados do ano que vem, a prevalecer o ritmo de redução da SELIC indicado na última reunião, ocorrida em 2 de agosto, o Banco Central venha a enfrentar um debate sobre onde pode estar a “taxa neutra”. Ou sobre até que nível de SELIC irão as reduções.
O Relatório FOCUS registra a expectativa de 11,75% para SELIC na virada do ano de 2023, implicitamente projetando três cortes de 0,5% para as três reuniões marcadas para este ano.
Para 2024, todavia, o FOCUS projeta 9,00% para o fim do ano, mas se o COPOM permanecesse cortando 0,5% a cada reunião, o ano de 2024 terminaria com 7,75%. Implicitamente se projeta, portanto, que o COPOM enxergará que chegou na taxa neutra em meados de 2024.
Mas o debate será interessante sobre o nível em que verá aterrissar a SELIC nesse ciclo de baixa já iniciado. A trégua que o presidente da República deu ao BC pode ser removida e as hostilidades podem se renovar, bem quando o mandatário terá que fazer a sua escolha para os três dirigentes do BC cujos mandatos se encerram em dezembro de 2024, aí incluído o do presidente Roberto Campos Neto.
A atmosfera política está amena, como é próprio da meia estação, mas talvez apenas na aparência. Parece não esmorecer o noticiário referente ao ex-presidente Jair Bolsonaro, mas a fila anda, e o Legislativo vai lidando com novas pautas de interesse do governo.
As relações entre o Executivo e o Legislativo têm sido conduzidas com enorme cuidado. O rescaldo das eleições é complexo. É claro que haveria mais velocidade nos projetos de governo caso aprovada a reforma ministerial que se destina a proporcionar mais espaço político para o chamado “Centrão”. Mais velocidade, nesse contexto, naturalmente significa menos identificação com a agenda caracteristicamente petista, pois muda relevantemente a identidade do próprio governo. Compreende-se, portanto, a indefinição do presidente Lula.
*Gustavo Franco é sócio-fundador da Rio Bravo Investimentos e ex-presidente do Banco Central do Brasil. Este artigo faz parte da Carta Estratégias de agosto relatório mensal distribuído pela Rio Bravo a seus clientes e reproduzido com exclusividade pela EXAME Invest.