Gustavo Franco: "O ciclo de baixa deve terminar um tanto acima da “taxa neutra" (Dado Galdieri / Bloomberg/Getty Images)
Redação Exame
Publicado em 3 de outubro de 2023 às 11h57.
Choques de oferta positivos, como os que estão operando para explicar o bom resultado das exportações e da balança comercial às vezes caem dos céus, como no caso do super ciclo das commodities de uns anos passados. Mais seguro, entretanto, é fazer reformas mirando no aumento de produtividade e no ambiente de negócios.
Essas medidas reformistas “no varejo”, ou de impacto setorial, têm efeitos mais visíveis e ponderáveis quando observadas em ambiente de inflação baixa, como o que o Brasil se depara já faz muitos anos.
Se a produtividade cresce, ainda que pouco, cria-se um viés deflacionista nos setores mais afetados, com impactos muito relevantes para a política monetária. Pode-se perder a meta inflacionária, com frequência, por menos que um ponto percentual por ano. São pequenas diferenças que podem perfeitamente se obter nesse território fértil dos choques de oferta causados por reformas modernizadoras.
Nada mais natural, 30 anos depois do Plano Real, que o Banco Central passe a dedicar atenção para o crescimento da produtividade, pois isso afrouxa as restrições dentro das quais a Autoridade Monetária precisa trabalhar. Tanto o Executivo como o Parlamento devem perceber que medidas modernizadoras que elevam a produtividade melhoram os tradeoffs entre inflação e desemprego para o benefício de todos.
Tudo isso não obstante, a ênfase na medidas e pautas reformistas modernizadoras não faz parte das prioridades declaradas do governo e do presidente. Até pelo contrário, para melhor apaziguar aliados “radicais porém sinceros”, ou por afinidade ideológica mesmo, não há como saber, o governo fez gestões, felizmente sem sucesso, para interromper medidas como a privatização da Eletrobras e o marco do Saneamento, por exemplo.
Pode ser apenas “jogar para a torcida”, manobrar as aparências ou administrar uma coalisão política muito heterogênea. Ou não. Pode ser mesmo falta de liderança e de projeto, ou hesitação. Impossível saber. A indefinição do governo na economia é uma de suas marcas mais visíveis.
Mas o fato é que há muitos progressos em andamento, decorrentes das máquinas e agências, e sobretudo das empresas, refletindo ações e políticas consistentemente adotadas no passado, aí incluídas, com destaque, as políticas para a Petrobras, uma das estrelas do desempenho exportador do país nos últimos tempos, e uma das implicâncias do presidente.
Que teria sido da Petrobrás se tivesse havido esse “abrasileiramento” dos preços de combustíveis de que falou o presidente durante a sua campanha e que foi discretamente abandonado?
Mas assim é o mundo da pós-verdade, das narrativas e dos “cercadinhos”: nem sempre é preciso declarar prioridades, e frequentemente as prioridades declaradas destinam-se a acalmar torcedores. O desafio das autoridades, nesse contexto, tem sido o de preservar alguma credibilidade ao manter meio corpo no mundo das narrativas, e a outra metade no mundo real.
É nesse contexto que se deve observar o que se passa com a política fiscal.
A ruidosa retirada do “teto de gastos”, criatura do “governo golpista” de Michel Temer, e sua substituição pelo “arcabouço”, não representou a troca de uma âncora pela outra. Foi apenas a remoção de obstáculos, feita de forma a acomodar muitos tipos de narrativas, muitas das quais com vistas a buscar o aplauso de vários públicos relevantes para o governo. Qual o resultado objetivo? Que de fato se passou e está se passando com a política fiscal?
A se acreditar nos números do “arcabouço”, faltaria algo como 150-200 bilhões na linha da receita para fechar a contas, o que não pareceria tão difícil num orçamento de 2 trilhões. E mais, o esforço de buscar receitas, sobretudo nos sonegadores, nos super ricos e nos chineses, fornece uma bela narrativa e uma bela plataforma para um ministro de Fazenda de viés progressista com aspirações presidenciais. Será realista?
O ministro da Fazenda parece bem adaptado nessa posição “conciliatória” pela qual apoia e corporifica a responsabilidade fiscal, como dele se espera, mas desde que com aumento de gasto. Como é isso exatamente?
Como se define essa responsabilidade fiscal pela esquerda?
Resposta oficial: com aumento de receita.
No papel, a solução retórica ideal é tributar os que não pagam, os ricos e os que não são brasileiros. São ótimas bandeiras para discursos de políticos sonhadores, não raro inflacionistas, mas não são caminhos realistas para a sustentabilidade fiscal brasileira.
Ignorar o gasto é simplesmente um erro.
Não obstante, o ministro parece confortável nos debates tributários, mesmo considerando os impasses da reforma nos impostos de consumo, cujo desfecho ainda não se deu, e nas querelas sobre o CARF, o JCP, o “come quotas” e as “off-shore”.
No mundo real, entretanto, há clareza sobre a existência de uma inconsistência entre o fiscal, sobretudo num contexto no qual o Legislativo eleva seu poder de controle sobre o orçamento, e o que se espera da política monetária.
Os impasses podem ser de vários tipos, conforme a imaginação do analista.
O ciclo de queda nos juros está nas cartas, mas mesmo esses primeiros movimentos de baixa, tiveram como pressuposto a obediência às metas fiscais delineadas no “arcabouço”. Mas a fé nessas metas perece se esgarçar.
A desarrumação fiscal tenderá a acordar a inflação, e com isso o BC terá de usar as armas que tem à sua disposição. O BC terá que interromper a queda de juros bem antes do que pareceria razoável ao governo se o país caminhar para o descontrole fiscal. E será uma tolice culpar o BC pelo problema.
Há certa inquietação justificada na ponta longa dos juros, parte da qual pode ser atribuída ao FED, mas não tudo. As dúvidas sobre o “arcabouço”, ou sobre a política fiscal, só fazem crescer. Essas dúvidas deverão atingir um clímax em meados de 2024, quando a SELIC se aproximar da “taxa neutra”.
O COPOM anunciou, na sua contenciosa reunião de agosto, que iniciava um ciclo de baixa, com reduções de 0,5% na SELIC neste encontro e a previsão era de permanecer nesse ritmo. Assim foi na reunião seguinte e é o que se espera para as duas que ainda faltam em 2023. Se assim for, haverá uma baixa acumulada de 1% e, de fato, a expectativa do FOCUS para a SELIC no fim de 2023 é 11,75%, perfeitamente em linha com este enunciado.
Já para 2024, não temos a mesma consistência.
Caso tenhamos oito reduções de 0,5% em todas as reuniões marcadas para 2024, terminaremos o ano com a SELIC em 7,75%. A expectativa média reportada no Boletim FOCUS, entretanto, é de 9%, o que assinala claramente uma expectativa de interrupção das quedas, ou diminuição do ritmo de queda a cada reunião, provavelmente em meados de 2024, talvez já na reunião de março, a segunda do ano.
A discussão sobre onde se encontra a taxa terminal desse ciclo de baixa já começou, e sua expressão é a pergunta sobre qual é a “taxa neutra”. O ciclo de baixa deve terminar um tanto acima da “taxa neutra”, onde quer que esteja.
Outra forma de pensar o mesmo problema tem a ver com a pergunta sobre o produto potencial. Como a inflação está mais baixa do que a experiência econométrica estaria a sugerir, segue-se que o hiato do produto, que não é grandeza observável, pode estar sendo subestimado, o que é o mesmo que dizer que o produto potencial pode ser maior do que se imagina, ou que o “juro neutro” pode estar ainda mais baixo do que se pensa.
O BC tem uma estimativa oficial da “taxa neutra”, que é de 4,5% acima da inflação, um número muito grande, e que, provavelmente, reflete a experiência passada, que talvez não sirva para o futuro, como o clássico disclaimer que a CVM manda colocar nos regulamentos de fundos de investimento sob sua esfera regulatória.
Esse número, somado à meta para 2024 (3,0%) e ao intervalo de tolerância (1,5%), o resultaria inferior aos 9% que se espera para a SELIC no fim de ano.
Não será simples a discussão sobre a “taxa neutra”, e este debate será profundamente influenciado pelas definições sobre o substituto de Roberto Campos Neto.
Três dirigentes do BC terão seus mandatos encerrados no final de 2024, um dos quais o presidente Roberto Campos Neto. Somados aos dois que o presidente Lula já nomeou, não sem muitas dificuldades e hesitações, o governo terá escolhido cinco de nove dos membros do COPOM e da diretoria do BCB. A transição terá se encerrado, e o BC terá a sua maioria fixada pelo presidente Lula. Uma nova etapa na história do BC e da política monetária vai se iniciar.
As definições estão sendo ansiosamente aguardadas, mas há tempo para refletir, construir alternativas e evitar sobressaltos.
A reunião de agosto, acima descrita com contenciosa, a de número 256, foi a primeira em mais de 25 anos de existência do COPOM em que se verificou um placar de 5 a 4. O COPOM tradicionalmente decide por consenso e os votos divergentes são muito mais sinais do que verdadeiras diferenças.
É provável que não haja divergência durante as primeiras prestações da queda de juros, como se passou com a reunião de setembro, que teve decisão unânime para fazer a mesma queda de 0,5% feita em agosto. A partir da reunião de março de 2024, todavia, na medida em que o COPOM estiver mais próximo da taxa neutra, as divergências serão mais prováveis e difíceis de administrar.
A escolha dos novos dirigentes, e da liderança do BC, se inicia provavelmente antes mesmo de meados de 2024, quando estiver se agudizando a divergência sobre “taxa neutra”, ou sobre a taxa terminal desse ciclo de baixa. Temas de natureza tática, vão se misturar com assuntos estratégicos e institucionais, e a sucessão do BC vai talvez se misturar com a dos presidentes das casas legislativas. Mais uma razão para adiantar a escolha no BC. Esse governo só teria a ganhar com definições, desde que corretas, na economia.
*Gustavo Franco é sócio-fundador da Rio Bravo Investimentos e ex-presidente do Banco Central do Brasil. Este artigo faz parte da Carta Estratégias de setembro relatório mensal distribuído pela Rio Bravo a seus clientes e reproduzido com exclusividade pela EXAME Invest.