Gustavo Franco: política monetária esteve nas manchetes brasileiras por iniciativa direta do presidente da República (Dado Galdieri / Bloomberg/Getty Images)
Redação Exame
Publicado em 5 de abril de 2023 às 07h04.
O ano demorou a começar, tudo muito lento e hesitante, até que vieram as falas presidenciais sobre a política monetária e sobre o “cidadão” na presidência do Banco Central. Enquanto isso, novos ângulos para esses debates foram introduzidos por uma onda de encrencas bancárias do exterior, misturando-se a confusões corporativas locais, e o mês de março terminou com o anúncio do “arcabouço fiscal” no dia 30, última quinta-feira do mês, no final do expediente.
Em meados de março, enquanto o Brasil discutia o Banco Central e os juros, em dois domingos consecutivos vieram notícias alarmantes referentes a bancos definidos como “sistemicamente relevantes” em seus países e sofrendo intervenções. A sequência parecia assustadora: seria uma dessas crises financeiras internacionais que mudam tudo, um “meteoro” como o de 2008? Haveria alguma conexão, indicativa de contágio unindo esses eventos nos EUA e na Suíça?
Havia outros eventos convidando a confecção de enredos de causalidade: o inverno cripto, já de algum tempo; a fraude nas Americanas; o encerramento do Silvergate; a intervenção no SVB (Silicon Valley Bank) nos EUA, no domingo dia 12, junto com Signature Bank; algumas recuperações judiciais no Brasil e, no domingo seguinte, dia 19, a absorção do Credit Suisse pelo seu maior rival local, o UBS, numa operação envolvendo vários reguladores. E o anúncio de um corte na produção de petróleo pela OPEC.
Eventos dessa espécie costumam estar correlacionados e, por isso mesmo, muitos se divertiram ao longo do mês, ainda que meio nervosos, buscando similaridades e conexões, talvez apontando para alguma desarrumação sistêmica, com algum conteúdo radioativo compartilhado, ainda não tão claro, inclusive para indicar as próximas etapas.
As mais delirantes hipóteses foram ventiladas, e muito se especulou sobre o evento subsequente, mas, até agora, tudo indica que as intervenções das autoridades foram cirúrgicas. Com isso, a maior parte das opiniões se voltou para o convencional: são os percalços do terço final de um ciclo de aperto monetário de natureza global. É muito típico que os que andam na corda bamba enfrentem dificuldades nesse estágio do ciclo de política monetária.
Os bancos centrais do mundo inteiro reagiram de forma semelhante à inflação que se seguiu da Covid-19, com isso produzindo um aperto monetário sincronizado e de natureza global. A inflação não era de demanda nem de oferta, tampouco parecia estar nos livros-texto conhecidos, aliás, como costuma ser com a maior parte das inflações. Todas são difíceis e a ferramenta básica é o juro, que fragiliza as partes fracas do mundo do crédito, e as autoridades monetárias e prudenciais mundo afora sempre adotaram uma embocadura darwinista nesse assunto: de tempos em tempos, um terremoto no crédito “ajusta” as distribuições de frequência no terreno do “high yield”.
É claro que sempre ocorrem erros, acidentes, tropeços, fraudes, mais visíveis e mais perigosas num momento de restrição ao crédito. Daí o acúmulo de eventos em março, que não se espera que se prolongue ou que desague numa crise global.
Mas foi um susto, e que levou naturalmente a uma reflexão sobre a política monetária, e sobre se as autoridades monetárias não teriam exagerado na medicação contra a inflação, no Brasil e no exterior. Veio, com isso, certa revisão de expectativas sobre juros nos próximos meses. Mas, mesmo assim, tanto o FED quanto o Banco Central Europeu (ECB) prosseguiram elevando os juros (e reduzindo o balanço, no caso do FED). Também o Banco Central manteve seus planos e não se moveu em seu comitê de março.
A política monetária esteve nas manchetes brasileiras por iniciativa direta do presidente da República, que questionou pesadamente não apenas a “dosagem” dos juros, mas o próprio arranjo institucional introduzido pela longamente discutida Lei Complementar 179, de 24/02/2021, que instituiu mandatos fixos e não coincidentes com os do presidente da República para os dirigentes do Banco Central.
Entretanto, nem no terreno do marketing foi bem-sucedida a manifestação do presidente da República sobre o arranjo institucional da moeda. Uma opinião: “É grotesco, ainda que não inconstitucional, o PR ralhar em público com o presidente do BCB. Não sei bem qual a diferença entre isso e a diatribe do PR anterior contra os conselheiros da ANVISA e outros órgãos técnicos da Saúde. Nesses casos ficou estabelecido que se tratava de ‘ataques à Ciência’. E agora?” e mais “O presidente do BCB não tem que ser amigo, aliado ou escolhido do PR, melhor que não seja e é a lei: está em jogo o interesse público”.[1]
O jogo retórico, todavia, era o de justificar o ataque a institucionalidade pela comprovação de que os juros estão altos, os maiores do mundo. O suposto “erro” na dosimetria seria suficiente para condenar a independência do Banco Central, e o pretexto para a tentativa de pazuelizar a instituição, apelando ao clássico expediente populista de duvidar do saber técnico estabelecido.
É indiscutível que o Brasil utilizou a política monetária mais agressivamente que outros países com preocupações semelhantes no tocante à inflação no momento da saída da Covid-19, embora sejam raros os que possuam a experiência pregressa que possuímos nesse assunto.
Parece indiscutível, também, que o Banco Central teve suas decisões afetadas pelas garantias que obteve com a LC179, que elevou seu grau de independência. O desembaraço do Banco Central é visível ao baixar os juros na 232ª. reunião de 05/08/2020 quando trouxe a SELIC a 2% anuais, a menor taxa SELIC da série histórica. De igual modo, é muito flagrante na trajetória de elevação que se inicia na 237ª. reunião, de 17/03/2021, quando começam as elevações até atingir 13,75% na 247ª. reunião, de 15/06/2022, tudo isso durante as eleições.
Não houve volatilidade financeira ao longo da campanha eleitoral, a mais polarizada em muitos anos, e não se tem notícia de Jair Bolsonaro ter interpelado publicamente o presidente do Banco Central, ainda que seu desagrado com a política monetária tenha sido percebido aqui e ali.
Na sua edição de 23/10/2022, a revista The Economist designou como “hikelandia” o grupo de oito países (Brasil, Chile, Nova Zelândia, Hungria, Noruega Coreia do Sul, Peru, Polônia e Hungria) cujos bancos centrais estavam atuando de forma mais agressiva contra a inflação, mas, segundo a revista, sem sucesso.
Comparações desse tipo são sempre perigosas, e normalmente se prestam a teses provocativas e tolas, como a de que a política monetária não tem eficácia para fazer cair a inflação. A comparação entre o Brasil e a Nova Zelândia não é das melhores, ao menos em um aspecto essencial nesse assunto: o passado (a tradição) hiperinflacionário recente[2].
Será que o Brasil está curado dos velhos vícios trazidos pela inflação elevada e está mais parecido com a Nova Zelândia do que com a Argentina?
No caso brasileiro em especial, não se pode dizer que a opção da Autoridade Monetária falhou, mesmo tendo em conta que a inflação brasileira não está na meta, ao menos por enquanto.
A meta para 2023 é de 3,25% com 1,5% de margem de tolerância, portanto com um “teto” de 4,75%, e as expectativas para o IPCA neste ano medidas pelo Focus (em 31/03) estavam em 5,96%. Para 2024, as expectativas estão em 4,13%, já dentro do intervalo de tolerância (3,0% + 1,5% = 4,5%).
Não se pode estabelecer que o Banco Central falhou em sua missão, nem nada nem próximo de se invocar uma “justa causa” para a substituição do seu presidente. Ainda mais quando o presidente da Câmara dos Deputados afirma que “não há clima” para esse tipo de conversa.
Junte-se a isso o fato de que a inflação brasileira para 2023 provavelmente ficará menor que a dos EUA, do Reino Unido e para a União Europeia (em média), evento raro.
É fácil indagar, como fez ruidosamente o presidente da República, bem como diversos de seus áulicos nas redes sociais, por que os EUA e o Reino Unido possuem taxas de juros na faixa de 4% e inflações em torno de 8%, como se essa combinação mais favorável dessas duas variáveis para países ricos e com rating AAA indicasse sem lugar à dúvida que as escolhas do Brasil eram absurdas.
É claro que a saúde de cada organismo econômico faz diferença. Economias ricas e com rating AAA terão combinações de inflação e juros melhores que países BB, como o Brasil (dois degraus abaixo do “grau de investimento”, BBB, a nota 5 numa escala de 0 a 10), ou pior, como a Argentina.
A lógica deveria indicar que o Brasil deveria perseguir o “grau de investimento” em vez de perder tempo combatendo a independência do banco central.
O organismo econômico da Argentina é mais parecido com o do Brasil que o dos EUA ou o do Reino Unido. A combinação argentina é bem pior: inflação de 110% e juros na faixa de 80%. As perguntas contrafactuais interessantes seriam: como seria a Argentina se tivessem feito uma reforma monetária bem-sucedida como o nosso Plano Real, 30 anos atrás? Como seria o Brasil se não tivesse as instituições monetárias criadas pelo Plano Real e mantivesse durante todos esses anos a indisciplina fiscal argentina?
Não há nenhum “absurdo óbvio” na política monetária brasileira, como alegam dirigentes petistas e o indefectível presidente da FIESP. O Brasil está no topo de um ciclo de alta de juros, prestes a começar um ciclo de baixa que deverá durar um par de anos ao menos. As duas grandes dúvidas são (i) quando começa; e (ii) quanto tempo vai durar (até onde chega).
Seria imprudente, ou arriscado, começar agora na 253ª. reunião (de 22/03), tanto que a decisão de manutenção da Selic foi bem recebida e absorvida. Muita atenção foi dedicada os documentos do Banco Central sobre a decisão: a ata do COPOM foi examinada com muita atenção, mas por públicos que jamais o fizeram, o que sempre é pedagógico.
Duas preocupações perpassam os indícios de “desancoragem” nas expectativas de inflação de prazo maior, as questões fiscais, de que trataremos mais adiante, e as preocupações com o comando do Banco Central.
O governo demora a indicar os substitutos para os dois diretores do Banco Central cujo mandato terminou em fevereiro, o que sugere indecisão quanto ao perfil. Outros dois diretores terão que ser substituídos em dezembro deste ano, de modo que o novo governo terá nomeado 4 de 9 já em 2023. Se as nomeações seguirem a lógica de formar uma “bancada vermelha” será para destruir a lógica de decisões por consenso que tem sido obedecida pelo COPOM desde a sua criação, em linha com o conceito de “diretoria colegiada”[3].
A isso se soma um clássico no terreno das incertezas macroeconômicas: a inconsistência entre a política fiscal e os deveres da Autoridade Monetária. O fenômeno conhecido como crowding out é extensamente descrito em livros-texto: é o que se passa quando a política fiscal é excessivamente expansionista, situação muito frequente no Brasil, e o Banco Central fica obrigado preservar os juros em patamares elevados, seja para manter a inflação sob controle e/ou para assegurar a rolagem dos títulos da dívida pública.
A relação entre política fiscal e os juros é um tema polêmico em qualquer lugar do mundo. É muito comum que os políticos tomem a iniciativa de criar políticas fiscais expansionistas, por todos os bons motivos e boas causas, forçando o Banco Central a consertar o equilíbrio macro elevando os juros e assim assumindo a autoria e, portanto, a culpa pelos juros altos, sobre os quais os políticos que criaram a despesa se queixarão com genuína amargura, como se não tivessem nada com o assunto.
O arcabouço
É difícil imaginar que o novo “arcabouço fiscal” vá alterar essa lógica. Mas alguns avanços incrementais deverão ocorrer. Estava previsto na PEC da transição, que se tornou a EC126, de 21/12/2022, que o presidente da República “deverá encaminhar ao Congresso Nacional, até 31 de agosto de 2023, projeto de lei complementar com o objetivo de instituir regime fiscal sustentável” (art.6) e que depois da sanção desse projeto diversos artigos do ADCT estarão revocados, especificamente os que definem a mecânica do “teto de gastos”[4].
Como essa lei complementar já possui uma versão longamente discutida e aprovada no Senado, com vistas a substituir a lei de orçamento (lei 4.320/1964), ao menos no aspecto institucional será um avanço. Mas a substituição do “teto” e a definição de regras fiscais de natureza macro dominaram qualquer discussão sobre o arcabouço e estranhamente não se falou na nova lei complementar de finanças públicas.
Para entender o anúncio do final do mês de março, é necessário recuar no tempo, mas não muito, para o momento em que o ministro Haddad declarou que já estava bem avançado no assunto, mas que ia obter a aprovação do presidente Lula antes de qualquer divulgação e discussão de mérito. O ministro temia o “fogo amigo” do PT e a falta de empenho parlamentar para a aprovação das medidas que daí se seguiria. Um anúncio abençoado por Lula não contaria com torpedos vindos do PT, que seriam muito danosos para este tema; foi habilidoso o ministro, que novamente conseguiu uma boa repercussão para um pacote meio ralo em substância.
No mérito, há várias observações a fazer, a primeira é que o único material disponibilizado pelo governo sobre o pacote foi uma apresentação em power point, e com 12 slides (menos três de capa, títulos e créditos).
Em razão da delicada dinâmica de aprovação do pacote pelas instâncias políticas do governo, culminando na benção presidencial, e considerando os sagrados espaços do Legislativo para aperfeiçoar as medidas, não havia atos preparados (PECs, MPs ou PLs de lei complementar ou ordinária), só um power point com algumas simulações selecionadas.
Portanto, nada está muito decidido, e nesse assunto o diabo e todo o inferno estão exatamente nos detalhes, cuja deliberação e negociação vai nos tomar um bom tempo, talvez o restante do ano.
As declarações foram boas, bem como as intenções, sobretudo tendo em vista que o “novo teto”, ou o novo arcabouço, sintomaticamente designado como “calabouço fiscal”, está sendo proposto por opositores ferrenhos da ideia de teto ou mesmo de responsabilidade fiscal e sustentabilidade da dívida.
Ainda assim, mesmo sendo vago, e ausentes os atos e os detalhes, o pacote provocou diversas análises de especialistas, que não se furtaram a testar a consistência das regras delineadas e dos números apresentados. O novo teto é uma banda, ou seja, há um piso e um teto para os gatos e que se movem conforme a receita de modo a evitar o inchaço do “extra-teto”. Há metas de resultado primário, mescladas às disposições sobre gastos, com o intuito de orientar compromissos de governo quanto à trajetória da dívida pública.
Parece uma banda diagonal endógena (basta olhar o slide n.7) para a política fiscal, mas será preciso aguardar as negociações e conversas com o Legislativo para amadurecer as fórmulas. São poucos os detalhes, repita-se, mas é difícil afastar a impressão de que as diversas inovações arquitetônicas estão em fase experimental.
Os especialistas que se debruçaram sobre os números foram unânimes em elogiar as intenções, mas também ao notar que as contas não fecham na ausência de cerca de R$150 bilhões de aumento de receita. Será o prenúncio de uma elevação relevante da carga tributária? O ministro nega: “se por isso se entende a criação de novos tributos ou aumento de alíquota dos tributos existentes, não é a ideia, não é disso que se trata”.
Com isso, em resumo, o novo arcabouço não foi o ticket de entrada para o grau de investimento, tampouco a medida suficiente para pacificar as dúvidas do Banco Central e dos analistas sobre o equilíbrio fiscal.
Com isso, continua o enredo de inconsistência entre a política monetária e a fiscal, que vai pulsar conforme os andamentos das conversas com o Legislativo e com os outros personagens de dentro do governo.
O ministro Haddad foi habilidoso em equilibrar as ideias criativas ventiladas no ruidoso seminário internacional promovido pelo BNDES em 20/21 de março com as dúvidas do mundo real sobre o equilíbrio fiscal. Percebe-se no pacote, não obstante, a influência de personagens da área econômica até então secundários, como a ministra (da gestão e inovação) Esther Dweck e do economista Guilherme Mello (secretário de política econômica do ministério da Fazenda), ambos organizadores e autores de uma coletânea de 2020 de estudo ultracríticos do teto de gastos, intitulada “Economia pós-pandemia: desmontando os mitos da austeridade fiscal e construindo um novo paradigma econômico no Brasil”.
Dweck e Mello foram presenças discretas no anúncio do arcabouço, mas algumas de suas ideias, mais detalhadamente expostas na sua coletânea, parecem presentes no arcabouço: (i) o crescimento do gasto público não é problema, mas solução, e seus principais determinantes são o juro nominal e o crescimento do PIB; (ii) cortar despesas é recessivo; (iii) é possível estabilizar a dívida com aumento de gasto e (iv) o Teto de Gastos, na forma da EC95, era um ataque aos direitos humanos.
Não há nada de simples na missão do ministro Haddad.
*Gustavo Franco é sócio-fundador da Rio Bravo Investimentos e ex-presidente do Banco Central do Brasil. Este artigo faz parte da Carta Estratégias de março relatório mensal distribuído pela Rio Bravo a seus clientes e reproduzido com exclusividade pela EXAME Invest.
[1] Gustavo H. B. Franco “Aquele cidadão” O Estado de São Paulo (e O Globo) 26/03/2023.
[2] Dois desses oito países, Polônia e Hungria tiveram hiperinflações na década de 1920, e a Hungria a mais severa de todas nos anos 1940, graças a seu experimento agressivo com moeda indexada, mas nenhum desse teve inflações elevadas nos último 50 anos.
[3] O leitor que não se engane nesse assunto, mesmo os votos minoritários no COPOM são combinados.
[4] ADCT = Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, e os artigos relevantes são os seguintes: 106, 107, 109, 110, 111, 111-A, 112 e 114.