BM&FBovespa: para corretoras, a bolsa vai cobrar menos por serviços melhores no futuro (Germano Lüders/EXAME)
Da Redação
Publicado em 28 de fevereiro de 2011 às 17h28.
Ao contrário do que acontece nos Estados Unidos e em muitos países da Europa, o negócio de bolsa de valores no Brasil é tipicamente monopolista. Até existem duas empresas no país responsáveis por transações, custódia e liquidação de ações e títulos. A BM&FBovespa domina as áreas de contratos futuros, agrícolas, ações e opções. Já a Cetip é um mercado de balcão organizado que realiza a custódia e liquidação financeira de títulos públicos e privados de renda fixa. A empresa tem planos para crescer também nas áreas de derivativos e compra e venda de financiamentos bancários. Como uma quase não atua nos segmentos da outra, as duas não podem ser consideradas concorrentes diretas. O resultado é que o monopólio dá à BM&FBovespa um poder para cobrar de corretoras e investidores taxas proporcionalmente superiores às pagas em mercados onde existe concorrência.
As corretoras pagam diversas tarifas à bolsa, como para fazer o cadastro dos clientes, para fornecer as informações financeiras em tempo real e para estarem conectadas ao sistema de negociações de ativos da bolsa. Dependendo do número de funcionários que uma corretora possui, essas taxas somadas podem ser a primeira ou a segunda maior despesa mensal de uma corretora. Já as taxas cobradas dos investidores são altas tanto para pessoas físicas quanto para instituições financeiras. A taxa de custódia, por exemplo, custa 6,90 reais ao mês para um pequeno aplicador. Só para manter uma posição em ações durante um ano, sem realizar nenhuma negociação, alguém que investiu 1.000 reais terá de pagar 82,80 reais à bolsa. O número é tão alto que inviabiliza o mercado acionário para quem tem pouquíssimo dinheiro.
O anúncio feito neste mês pela bolsa americana Bats Global Markets e pela gestora de recursos brasileira Claritas de que vão criar uma nova bolsa no Brasil para concorrer com a BM&FBovespa muda toda a lógica desse jogo. A Bats é uma espécie de bolsa "low cost, low fare" nos Estados Unidos e na Europa. Foi criada e ganhou mercado a partir da proposta de ser uma alternativa mais barata para a negociação de ativos nos países onde atua. Não há por que imaginar que a estratégia será diferente no Brasil.
"Com um novo concorrente, todo mundo ganha, menos a BM&FBovespa", diz Marcio Cardoso, diretor da corretora Título. É por esse motivo que as ações da bolsa são surradas no mercado sempre que são divulgados sinais de que a nova bolsa vai sair. Um concorrente "low cost" teria um impacto direto na lucratividade da empresa. A margem Ebitda da BM&FBovespa está hoje em cerca de 65% - uma da maiores do país. Para a analista-chefe da corretora Spinelli, Kelly Trentin, a margem poderia chegar a impressionantes 90% em 2021 com a manutenção do monopólio. "Mas provavelmente terei de rever a previsão agora que esse cenário ficou menos provável", afirma.
A nova bolsa demora
Para os investidores que não veem a hora de pagar menos taxas para a BM&FBovespa, um alerta: a nova bolsa vai demorar vários anos para começar a operar. Há ao menos seis grandes barreiras de entrada que terão de ser enfrentadas pelo novo competidor (leia mais nas próximas páginas). Superá-las vai demandar, além de paciência, muito dinheiro. Tanto que todo o mercado hoje se pergunta se valeria a pena fazer um grande investimento em um mercado como o brasileiro, que, para muita gente, não tem liquidez suficiente para comportar duas bolsas. "O Brasil já teve muitas bolsas no passado, mas foi exatamente por falta de liquidez que todas elas morreram", diz o João Roberto Lerosa Filho, presidente da Lerosa Investimentos.
Mesmo com a expectativa de que o mercado brasileiro continue a se desenvolver e gire cada vez mais dinheiro, dois dos cinco representantes de corretoras ouvidos por EXAME.com afirmam que, ao final, são grandes as chances de a nova bolsa nunca sair. O que importa é que somente a ameaça de uma nova bolsa já está fazendo a BM&FBovespa se mexer. As melhorias estão sendo feitas em várias frentes: investimentos em tecnologia para oferecer um serviço mais confiável, constante busca por novos ativos a serem negociados no mercado brasileiro, acordos com bolsas estrangeiras que devem trazer mais liquidez e criação de um novo ambiente de negociação de grandes lotes de ações. "A bolsa é um monopólio, mas não fica parada esperando o futuro chegar", diz o presidente de uma corretora que pediu para não ser identificado. "Eles só agem como monopólio na questão dos preços."
No total, a BM&FBovespa investiu 500 milhões de reais nos últimos dois anos. Em 2011, serão mais 235 milhões a 255 milhões de reais. O dinheiro foi usado principalmente para construir um novo sistema de negociação de ativos nos mesmos moldes usados na americana CME Group (bolsa de Chicago), que é sócia da empresa brasileira. O novo sistema terá maior capacidade de processamento de ordens e será mais rápido e seguro - falhas de tecnologia que interrompem as negociações ainda são vistas com uma frequência indesejável na BM&FBovespa.
Neste mês, a bolsa também anunciou a criação do chamado "Block Trade Facility", que será um ambiente especial para a negociação de grandes blocos de ações entre dois grandes investidores - um estará na ponta vendedora e outro, na compradora. Hoje esses negócios precisam passar pelo sistema público de negociações de ações, o Mega Bolsa. O problema é que outros investidores podem participar livremente do processo, distorcendo o preço combinado entre os dois investidores. "Essa medida já foi entendida pelo mercado como uma primeira reação. Trata-se de uma forma de oferecer um serviço que poderia chegar ao Brasil pelas mãos do novo competidor", diz Kelly Trentin, da Spinelli.
A mudança ainda depende de alterações na legislação a serem negociadas com a CVM porque hoje a regra é que compra um papel quem está disposto a pagar mais e envia a ordem antes, sem exceções. Outro problema é que, se crescer demais, o novo ambiente poderia canibalizar o próprio Mega Bolsa. Para evitar esse risco, a BM&FBovespa anunciou nesta semana que planeja cobrar taxas maiores no "Block Trade Facility". Ninguém sabe, no entanto, se isso ainda será possível se uma nova bolsa for criada no Brasil.
Ainda dentro da estratégia de tapar todos os buracos que poderiam ser usados para a entrada de um concorrente, a BM&FBovespa deve continuar a busca incessante por novos contratos a serem negociados por meio de seus sistemas. Dentro dessa estratégia, ainda há muito que fazer na área de derivativos. O Brasil poderia se tornar um grande centro de negociações de contratos futuros para produtos agrícolas em que se destaca na produção, como o etanol. Na área de ações, a bolsa tem incentivado os IPOs de cada vez mais empresas. Também tem agido para aumentar a negociação de papéis de empresas americanas e europeias por meio dos BDRs. Por último, a BM&FBovespa poderia elevar sua participação ainda tímida no mercado de renda fixa com a negociação, por exemplo, de créditos imobiliários. As transações com títulos atrelados a "mortgages" são gigantescas nos EUA.
Todas essas melhorias podem até dificultar a entrada de um novo competidor, que terá de investir mais dinheiro para oferecer um serviço semelhante. Mas somente a queda das tarifas cobradas dos investidores e corretoras pode funcionar como um real inibidor aos planos de Bats e Claritas. É por isso que todos os cinco representantes de corretoras consultados são unânimes em dizer que, daqui a cinco anos, a BM&FBovespa cobrará menos para oferecer serviços bem melhores.
Barreiras de entrada
O grande número de barreiras de entrada são a principal razão para o ceticismo do mercado em relação à nova bolsa. Para reduzir os riscos do sistema financeiro brasileiro, a CVM exige que uma bolsa de negociação de ações seja responsável não apenas pela intermediação dos negócios mas também pela liquidação e custódia dos ativos. As corretoras são responsáveis por todas as transações intermediadas, mas a BM&FBovespa é a garantidora final em casos de eventuais problemas com uma corretora. A Bats não trabalha dessa forma nos países onde atua e terá de aprender a agir dentro das regras brasileiras.
Na parte de liquidação e custódia, o mercado esperava que a Bats contratasse os serviços da CBLC. Essa empresa não apenas é responsável pelo registro e guarda de todas as operações com ações, derivativos, balcão organizado e renda fixa privada da BM&FBovespa como também pertence à própria bolsa. Nesse cenário, a bolsa poderia manter as atuais margens se elevasse as tarifas de liquidação e custódia e reduzisse as de intermediação de negócios - único segmento onde sofreria concorrência.
O que surpreendeu todo o mercado foi que a Bats anunciou neste mês que planeja também desenvolver ela mesma uma área de liquidação e custódia. Nesse novo cenário, o mercado passou a enxergar dois caminhos possíveis: ou a Bats realmente investe em uma câmara de liquidação ou contrata a Cetip para fazer isso. As chances de a nova bolsa sair cresceriam com a Cetip como sócia. Sempre houve rumores no mercado de que a empresa poderia se tornar uma concorrente direta da BM&FBovespa. Essa expectativa inclusive cresceu após a oferta inicial de ações da Cetip, que a deixou capitalizada. "Mas por que a Cetip entraria nesse mercado com um sócio ao invés de fazer isso sozinha?", pergunta o presidente de uma corretora.
A segunda grande barreira de entrada é regulatória. A lei não proíbe a criação de uma nova bolsa, mas a instituição teria um longo trabalho para atender todas as regras impostas pela CVM, o Banco Central e a Receita Federal. É sempre bom lembrar que qualquer coisa que envolva regulação é demorada no Brasil. "Para que uma instituição financeira estrangeira seja autorizada pelo BC a atuar como banco de investimentos no país, costuma demorar dois anos. Imagine quanto levaria para uma bolsa começar a funcionar", diz Monica Saccarelli, diretora do Link Trade. Para abreviar esse caminho, a única solução seria iniciar os investimentos ainda sem a autorização para operação dos órgãos reguladores - o que, por outro lado, eleva o risco do negócio.
Convencer as empresas brasileiras a terem papéis listados na nova bolsa seria outra dificuldade para a nova bolsa. A regulamentação não fala isso explicitamente, mas muita gente entende que uma ação só poderá ser negociada no novo mercado se a empresa quiser estar ali. O trâmite burocrático para trazer centenas de empresas para esse ambiente seria enorme. Já a criação de novos contratos futuros a partir de determinados índices exigiria a aprovação da CVM ou do BC. Tudo isso é demorado, mas pode acontecer. "Há algumas décadas, as ações eram negociadas na Bolsa do Rio e na Bovespa, e já naquela época muita gente ganhava dinheiro comprando um papel numa bolsa e o revendendo na outra com um pequeno lucro", diz Marcio Cardoso, da corretora Título.
Para viabilizar a Bats no Brasil, as corretoras também terão de tomar parte nos investimentos. Todas estão hoje conectadas ao sistema da BM&FBovespa. Criar um novo link com outra bolsa é fácil, segundo os representantes das instituições ouvidos por EXAME.com. As corretoras têm interesse direto no aumento da concorrência no mercado. Mas só faria sentido gastar dinheiro para se plugar ao novo sistema caso esse mercado tenha liquidez.
A quinta barreira de entrada são os acordos operacionais que estão sendo fechados com as bolsas estrangeiras. Em breve, será possível para o investidor estrangeiro que usa a plataforma do CME Group negociar ações no Brasil sem contratar uma corretora local - isso já é possível para derivativos. A mesma possibilidade estará disponível ao investidor brasileiro. A BM&FBovespa também já iniciou tratativas para que, em algum momento, o mesmo seja feito com quem usa as plataformas da Nasdaq e das bolsas de Santiago (Chile) e de Xangai (China).
A última grande barreira são a dos volumosos investimentos. Em sua história, a BM&FBovespa gastou bilhões de reais para montar a estrutura atual. O dinheiro primeiro veio das próprias corretoras, que eram obrigadas a comprar títulos patrimoniais da bolsa para operar. Mais recentemente, o mercado de capitais se tornou fonte de financiamento. Por mais que a Bats seja uma empresa com participação de mercado relevante nos EUA e na Europa, ainda não é uma empresa do porte da BM&FBovespa. Uma estratégia possível seria entrar no Brasil com a oferta de poucos serviços e só ampliar o leque de produtos à medida que comece a entrar dinheiro em caixa. Como a BM&FBovespa está anos-luz à frente do rival, tem nas mãos as chaves para tentar fechar as portas de entrada que forem sendo identificadas. Resta saber se a Bats será capaz de furar esse bloqueio.