Gol: Advogado acredita que a CVM pode paralisar as negociações do site (Getty Images)
Da Redação
Publicado em 9 de outubro de 2014 às 17h58.
São Paulo - A cartolagem deixou de ser exclusividade de jogos online e grandes empresários. Foi lançada nesta semana uma plataforma que abre aos torcedores a possibilidade de comprar direitos econômicos de jogadores de futebol.
À primeira vista, o negócio pode parecer atraente, mas impedimentos legais podem barrar a existência do site antes que ele chegue ao segundo tempo.
Chamado de Panela FC, o site disponibiliza a compra de cotas de participação sobre os direitos econômicos de jogadores por valores que podem partir de apenas 15 reais.
Por enquanto, os direitos negociados se concentram em atletas de categorias de base de times do Norte e do Nordeste do país, como o Treze da Paraíba e Sampaio Corrêa, do Maranhão. Clubes portugueses, como Futebol Clube do Porto e Trofense, e o paulista Grêmio Barueri também fecharam parceria com o site.
A ideia de financiar jogadores com dinheiro de pessoas comuns é conhecida entre amantes do esporte e profissionais da área, mas um fator crucial pode barrar o site logo de cara.
“A ideia é boa, mas esbarra em uma questão fundamental: não há registro na CVM [Comissão de Valores Mobiliários], portanto o site vai configurar captação irregular junto ao público”, afirma o advogado especializado em direito esportivo internacional, Eduardo Carlezzo.
Como funciona
Para comprar os direitos dos jogadores, os torcedores interessados devem acessar o site, fazer o cadastro e comprar a moeda virtual que permite adquirir as cotas dos jogadores, a chamada paneleta.
Cada paneleta equivale a 1 real e a compra é feita por cartão de crédito, débito ou boleto bancário.
A cada semana, direitos de jogadores diferentes são colocados à disposição dos usuários. O valor das cotas varia de acordo com o atleta e o torcedor deve comprar ao menos uma cota para fazer o investimento. Na atual rodada, as cotas dos jogadores variam entre 15 e 20 paneletas (15 a 20 reais).
Nenhum usuário pode investir valor superior a 5 mil reais no mesmo atleta, mas é possível investir mais de 5 mil reais se forem comprados direitos de diferentes jogadores.
Em três meses o site deve lançar também o mercado de "segundo tempo", possibilitanto também a compra e venda de cotas entre usuários.
Regulação
Antes de decidir sobre a compra dos direitos, é importante que o torcedor entenda os riscos regulatórios aos quais está se sujeitando.
Questionada por EXAME.com sobre a viabilidade do site, a CVM respondeu em nota:
“Todo participante do mercado que tenha interesse em negociar valores mobiliários deverá seguir a legislação e a regulamentação em vigor, assim como os normativos da Autarquia. Ressalta-se que os valores mobiliários atualmente passíveis de negociação em nosso país estão definidos na legislação brasileira, em especial no art. 2º, Lei 6.385, e regulados pela CVM, através de suas instruções”.
Em outras palavras, todo tipo de negociação que envolve a tentativa de captar recursos de pessoas comuns para se financiar deve passar pelo crivo da CVM. Ocorre que essa aprovação da entidade é necessária apenas se a negociação envolver títulos mobiliários.
Portanto, o Panela FC só seria paralisado pela CVM se a entidade entendesse que os direitos econômicos se enquadram na classificação de valores mobiliários. Segundo a autarquia, a questão só será definida depois de uma análise mais aprofundada sobre a natureza do negócio.
Os valores mobiliários, segundo definição da CVM, são documentos emitidos por empresas e outras entidades, em grande quantidade, que representem direitos e deveres, podendo ser comprados e vendidos, nomeadamente na Bolsa.
Ainda que sem um posicionamento oficial da autarquia não seja possível dizer o que pode acontecer com o site, Eduardo Carlezzo afirma que uma operação muito semelhante foi barrada antes, quando o Palmeiras tentou abrir direitos federativos de seus atletas para investimento.
“Foi divulgado no site do Palmeiras que qualquer pessoa poderia fazer a compra, o que configurava captação pública. A CVM avisou o público imediatamente e paralisou as negociações. Vejo semelhança total entre as operações e acredito que se o Panela FC levar isso adiante fatalmente será alvo de investigação da CVM”, afirma o advogado.
No caso do Palmeiras, a CVM justificou a interrupção das negociações em um comunicado que dizia: “O art. 19 da Lei nº 6.385/76 estabelece a necessidade do registro da CVM para qualquer oferta pública de valores mobiliários [...], como seria o caso do investimento em sociedades em contas de participação relacionadas aos "direitos federativos" de jogadores de futebol, caso venha a ser oferecido ao público.”
Caso a CVM decida paralisar as negociações do site, não caberá a ela determinar o ressarcimento das quantias investidas pelos usuários. Nesse caso, para reaver o dinheiro aplicado, o investidor pode precisar abrir um processo judicial contra o site.
Mas, dependendo do valor investido, o processo pode não compensar, uma vez que os honorários advocatícios podem ser mais caros do que a quantia inicialmente aplicada.
Carlezzo ressalta que as negociações de direitos econômicos de jogadores não são proibidas. “A operação é permitida desde que não envolva captação pública. Se alguém quiser oferecer uma transação como essa a pessoas conhecidas é possível, mas ao montar uma operação dessa com hotsites e divulgação na imprensa claramente é uma oferta pública”, diz.
Gislaine Nunes, advogada responsável pela área jurídica do Panela FC, defende que a operação do site não envolve valores mobiliários porque os direitos econômicos só nascem a partir do momento em que o jogador é transferido para outro time.
"O site não tem como ser regulamentado pela CVM porque ela só cuida de ativos tangíveis, o que é possível realizar imediatamente. O direito econômico é intangível. Não é possível pedir para resgatar o dinheiro investido nos direitos do Pato, por exemplo, porque esse direito econômico só nasce se o São Paulo vender o jogador”, diz a advogada.
Impedimentos da Fifa
Além dos eventuais problemas com a CVM, o Panela FC também pode enfrentar restrições da Fifa.
No final de setembro, o Comitê Executivo da entidade decidiu proibir a participação de terceiros nos direitos econômicos dos jogadores, com um prazo para a transição.
Como o regulamento será publicado em maio de 2015, ainda não se sabe como a proibição funcionará na prática, nem a partir de qual momento.
Conforme explica Vinícius Nordello, no blog Esporte Executivo, de EXAME.com, como o futebol depende de investimentos de terceiros, uma alternativa à proibição seria a criação de fundos que financiam a compra dos jogadores. Os clubes ficariam com 100% dos direitos econômicos, mas o fundo exigiria garantias financeiras não vinculadas aos jogadores.
O CEO do Panela FC defende que posição da Fifa não afeta o site por enquanto porque a decisão ainda depende de regulamentação. "O Panela já sabia que isso poderia acontecer, mas nós vamos esperar o posicionamento da Fifa. Ela ainda está estudando como vai fazer isso e os mercados europeus têm uma resistência muito grande. Ainda não há nada definido”, diz.
Além disso, ele afirma que a principal crítica da Fifa é o monopólio de grandes empresários que influenciam na decisão de venda de jogador, o que não resvala no site. "O Panela FC faz o oposto disso. Ele abre o investimento ao mercado e limita a 5 mil reais o investimento em cada atleta", argumenta.
Outros riscos
Mesmo se existisse a certeza de que o site não passará por nenhum problema com a CVM e com a Fifa, algumas características do Panela FC tornam o investimento arriscado.
Ao comprar o direito dos jogadores, o usuário só lucra com a operação caso o jogador seja vendido a um outro clube por um valor maior do que o investido na compra dos seus direitos, ou caso sua cota seja vendida a outro usuário por valor superior ao da aquisição.
No primeiro caso, a venda do jogador deve acontecer durante a vigência do contrato do atleta com o clube. Se o usuário permanecer com o direito do jogador até o fim do prazo de contrato, sem vendas no meio, nem um centavo do valor investido volta para sua mão, a não ser que ele repasse sua cota a outro usuário.
Ou seja, se o torcedor comprar uma participação de 0,5% de um jogador quando ele valia 1 milhão de reais, pagando 5 mil reais, e esse jogador for vendido a outro clube por 800 mil reais, sua cota passará a valer 4 mil reais e esse será o valor recebido pelo torcedor.
O mesmo ocorre no investimento em ações. Se a empresa se desvaloriza, a cotação do ativo cai e o investidor tem prejuízo caso venda a ação nesse patamar de valor menor.
A possibilidade de venda da cota a um outro usuário também é incerta. A operação só gerará lucro se outro participante estiver disposto a comprar a cota por um preço maior do que o valor pago inicialmente.
O torcedor também corre o risco de perder todo o valor investido se o contrato do clube com o jogador for rescindido - seja pela expiração do prazo do contrato ou por iniciativa do atleta - e o torcedor não conseguir vender sua cota a outro participante antes. Nesses casos, o valor investido pelo torcedor "morreu" com o clube.
Diferentemente de uma ação, que repassa parte dos lucros aos acionistas na forma de dividendos, pode-se dizer que no investimento em jogadores os dividendos seriam os gols, assistências e boas jogadas do atleta, que não retornam um valor em dinheiro ao torcedor.
O clube também tem total liberdade para realizar suas decisões sobre o atleta, sem precisar consultar os detentores dos direitos econômicos.
Esse foi inclusive um dos motivos que encorajou o presidente do Treze da Paraíba, Eduardo Medeiros, a fechar a parceria com o site. “O clube não é obrigado a manter um jogador, existe essa flexibilidade de rescindir de maneira unilateral os contratos, um fator que me deixou tranquilo”, diz.
Os demais riscos do investimento podem ser consultados nos termos de uso do site, no item “Dos riscos inerentes ao negócio”.
Iniciativa é positiva
Apesar dos riscos, a ideia de promover o investimento público em atletas é elogiada por profissionais da área. "Eu apoio e acho muito interessante a possibilidade de fazer no Brasil a captação pública de recursos para atletas, mas para que a ideia seja viável, ela deve ser chancelada pela CVM", afirma Eduardo Carlezzo.
O presidente do Treze também elogia a iniciativa. "A ideia é inovadora e pode gerar uma nova fonte de renda para os clubes“, diz.
Apesar de o garoto-propaganda do site ser o Ronaldinho Gaúcho, por enquanto apenas jogadores do norte e nordeste estão sendo negociados.
De acordo com o CEO do Panela FC, o objetivo do site é justamente focar nas regiões Norte e Nordeste do Brasil, para fomentar times menores. “Viemos para ajudar clubes pequenos, que são os principais formadores de talento e que precisam de ajuda financeira", diz.
Os clubes que já fecharam contrato com o site são: Vitória Guimarães, Futebol Clube do Porto , Trofense, Marítimo, Remo, Tuna Luso, Sampaio Corrêa, Moto Clube, River – PI, Piauí Esporte Clube, Paranaíba, Flamengo – Piauí, Barras – Piauí, Horizonte, Guarani de Juazeiro, Ferroviário, CSA, Treze da Paraíba, Gama, Luziânia, América de Natal, Potiguar , Linense e Grêmio Barueri.
E os jogadores com direitos negociados nesta primeira rodada são: Pimentinha (Sampaio Correa), Fabiano (River – Pi), Fernando Sobral (Horizonte), Adilton (Ferroviário), Acásio (CSA), Michel (Gama), Matheus (Barueri ), Jonas ( Sampaio Corrêa) e Savio (Potiguar )
Antônio Américo, presidente da Federação Maranhense de Futebol explica que, com a Lei Pelé, foi retirado dos clubes o direito sobre os atletas, com o objetivo de de que cada jogador fosse dono do seu próprio passe.
Mas, segundo ele, na prática a lei deixou os atletas mais dependentes dos empresários. “Mais de 95% dos atletas vêm de classe baixa e eles não têm noção sobre como administrar seu passe. Um atleta de 15 anos de idade é comprado por 100 mil reais e vendido por 5 milhões por empresários. Como o Panela tem contrato com os clubes, ele tira esse atravessador”, diz Américo.
Outra vantagem ainda, segundo ele, é a promoção da transparência nas transações de jogadores entre clubes. “Quando os torcedores passam a deter os direitos, eles passam a acompanhar o atleta e a evolução das negociações e saber com mais transparência o que clube está fazendo”.
Quem realiza o contato direto com o clube, no entanto, é o Panela FC. Os torcedores não terão um poder maior para checar os valores das transações dos jogadores por possuírem os direitos econômicos.
Inclusive, esse é outro risco do investimento, já que no contrato que é repassado aos torcedores que compram os direitos não há nenhuma cláusula que exija uma transparência do clube no sentido de informar por qual valor será realizada a venda dos jogadores.
Ainda que a iniciativa seja vista com bons olhos pelo presidente da Federação Maranhense, ele concorda que o pedágio cobrado pelo site é alto.
Do valor investido pelos torcedores, 20% são revertidos ao Panela FC e 80% vão para o clube. “A comissão de 20% fica acima dos padrões de mercado, que pratica valores menores, mas no Panela o potencial de captação e a visibilidade é bem maior”, afirma Antônio Américo.