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Cresce número de brasileiros que deixaram de pagar pelo menos uma conta

Em relação ao mês anterior, antes dos impactos da quarentena, o crescimento é de 54%

 (Sirinarth Mekvorawuth / EyeEm/Getty Images)

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EC

Estadão Conteúdo

Publicado em 19 de abril de 2020 às 17h05.

Última atualização em 20 de abril de 2020 às 10h21.

Sem trabalhar há 40 dias, a biomédica Renata Dias acumula contas atrasadas do período: aluguel, telefone, cartão de crédito, a mensalidade da escola da filha, de 17 anos, e a sua faculdade. Ela tem um negócio na área de estética na cidade de São Paulo e não sabe quando voltará ao trabalho. "Eu, no começo, fiquei revoltada com a paralisação da economia. Mas, há um mês, meu tio de 69 anos foi dirigindo até o hospital e morreu, três dias depois, sozinho, com a covid-19. Não tenho mais coragem nem de sair no portão de casa", afirma.

Com pouco mais de um mês de isolamento social, não é só Renata que viu as despesas se acumularem, sem pagamento. Pesquisa do instituto Locomotiva aponta que 91 milhões de brasileiros - o equivalente a 58% da população adulta do País - deixaram de pagar neste mês pelo menos uma das contas referentes ao consumo de março. Como comparação, no mês anterior, antes dos impactos da quarentena, eram 59 milhões com contas atrasadas - houve, portanto, um salto de 54% no período.

"A covid19 chegou na reta final de uma crise econômica e encontrou uma população sem poupança", afirma o presidente da Locomotiva, Renato Meirelles, explicando que o brasileiro não pagou as contas porque, na falta de uma reserva financeira, o dinheiro acabou. Segundo a Anbima, a associação das empresas do mercado financeiro, só 10% dos brasileiros conseguiram guardar algum dinheiro ao longo do ano passado. "Quanto menor a renda, maior o endividamento relacionado a contas mais simples, como água, luz, aluguel ou carnês. Nas classes A e B, os destaques ficam para o cartão de crédito e mensalidades escolares", diz Meirelles.

De acordo com a pesquisa, cada brasileiro, em média, deixou de pagar quatro contas, sendo que as consideradas não essenciais estão entre as mais frequentes, como carnês ou crediários de lojas (renegadas por 46% dos entrevistados) e empréstimos com instituições financeiras (descartados por 36%).

A liderança também tem duas das dívidas mais caras do País: o cartão de crédito (com juros de 322,6% ao ano, em fevereiro) e o cheque especial (130% ao ano, em igual período), ambos postergados por 37% dos brasileiros. Na prática, uma dívida com o cartão de crédito mais que dobra de tamanho a cada seis meses. A pesquisa foi realizada entre 14 e 15 de abril e entrevistou, por telefone, 1.131 pessoas. A margem de erro é de 2,9 pontos porcentuais, com intervalo de confiança de 95%.

Prioridades

No caso de Renata Dias, que tem uma despesa mensal de R$ 7 mil e viu sua renda zerar, a escolha foi por conservar algum dinheiro para os gastos emergenciais, como alimentação e saúde. "Era isso ou nada. Tenho dinheiro para 10% dos meus gastos por uns três meses. Vou cuidar da saúde agora, depois vou descobrir o que fazer para pagar as contas", afirma.

Também em São Paulo, o microempresário Eduardo Camargos, que trabalha com eventos na área de alimentação, diz que não vai pagar o cartão. "Eu até tenho um pouco de dinheiro guardado, mas como não sei por quanto tempo vou ficar sem trabalhar, não posso gastar", conta ele, que está sem eventos desde 15 de março.

Na opinião de Isabela Tavares, economista da Tendências Consultoria Integrada, a pesquisa da Locomotiva surpreende pela magnitude dos resultados depois de um período relativamente curto de quarentena. "A gente esperava por esse salto no endividamento, mas ao longo do ano, não tão rapidamente", diz a especialista, que estima que a massa de passivos gerada pela atual crise sanitária leve pelo menos dois anos para ser solucionada. "Com os bancos, nós voltamos hoje aos níveis de inadimplência de 2017. Como esperamos um (índice de) desemprego de 14,5% neste ano, e uma melhora pequena no ano que vem, projetamos que a massa de endividamento deva voltar aos patamares de 2019 apenas em 2022", diz.

'Elite' da classe C deve puxar o endividamento

Sem direto ao auxílio emergencial de R$ 600 do governo e fora do radar dos programas federais de transferência de renda, 50 milhões de brasileiros que integram a "elite" da classe C, com renda familiar entre R$ 3.135 e R$ 6 mil por mês, devem puxar a alta do endividamento nos próximos meses, aponta levantamento da consultoria Plano CDE, especializada em baixa renda, com base em dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do Instituto Brasileira de Geografia e Estatísticas (IBGE).

"Essa população, que não é a da fome, vai ser a do endividamento. Ela tem renda acima do teto estipulado pelo governo para o auxílio de R$ 600, mas, do seu orçamento, 60% são variáveis, dependem de 'bicos' e trabalhos autônomos, que estão parados no momento", diz o diretor executivo do Plano CDE, Maurício Prado. O pacote de auxílio de R$ 600 atinge famílias com renda mensal de até meio salário mínimo (R$ 522,50) por pessoa ou de até três salários mínimos (R$ 3.135) no total da família. "Essa classe C não tem perspectiva de mais renda e tem 30% da receita já comprometida com financiamentos."

O cenário é o retrato exato de Maíra da Costa. Ela trabalha por conta com alimentação e mora com os pais, aposentados, além da irmã, autônoma. Desde o início da crise, a família tem como fixa só a renda dos pais. "Estava montando uma cozinha e, com a pandemia, parei tudo. Nossa renda caiu demais", diz ela, que não pagou neste mês o financiamento do carro e o cartão de crédito. "Vou tentar negociar. Mas vamos ficar devendo", diz.

Fundador da plataforma de autônomos GetNinjas, com 1,5 milhão de cadastrados, Eduardo LHotellier diz que, em média, esses profissionais têm menos de 30 dias de reservas para arcar com suas responsabilidades financeiras. "Ele trabalha agora para pagar as contas que vencem daqui a pouco."

Para a economista da Tendências Isabela Tavares, após o pacote de auxílio do governo de R$ 600 a classe C passa a ser a mais vulnerável no enfrentamento da crise do novo coronavírus. "São famílias que sofrem com o desemprego, que investiram no empreendedorismo e, com uma renda maior, têm acesso ao crédito. Mas vão perder muita renda."

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