A sede da bolsa brasileira, a B3 (Patricia Monteiro/Bloomberg/Getty Images)
Bianca Alvarenga
Publicado em 26 de novembro de 2020 às 06h00.
Última atualização em 26 de novembro de 2020 às 11h56.
Para quem começou a investir há pouco tempo, a ideia de um pregão presencial, com a negociação de ativos por telefone, parece loucura. Mas, acredite, não faz muito tempo, todas as operações da bolsa de valores ainda eram assim. A migração para os sistemas eletrônicos e a chegada das plataformas de home broker foram um grande empurrão para a democratização dos investimentos, especialmente em ações. Mas não são todas as aplicações que contam com essa facilidade.
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A maioria dos investimentos em renda fixa ainda é negociada de forma não eletrônica. É o caso dos títulos de crédito privado, como debêntures, Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRIs) e Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRAs). Embora o investidor possa ter acesso a essas aplicações pelo home broker da corretora, as ordens de compra e venda são feitas manualmente pelas instituições financeiras -- ou seja, não há um processo automático para as transações envolvendo esses títulos.
"Não existe venda eletrônica de títulos de crédito privado no mercado secundário. A estimativa do preço, do deságio pelo resgate antecipado e a própria venda são feitas manualmente", explica Alan Ghani, analista da EXAME Research.
Mas isso começa a mudar. A B3, empresa que administra a bolsa de valores, contou à EXAME Invest que algumas melhorias estão sendo desenvolvidas para criar agilidade no sistema de negociação de títulos de crédito privado. A maioria delas está sendo gestada dentro da plataforma chamada de Cetip Trader, criada pela antiga Cetip e que serve para a negociação de títulos de renda fixa.
Uma das novidades é o lançamento pela B3 de uma plataforma de precificação de ativos, que permite aos distribuidores (corretoras e bancos) uma estimativa mais precisa do valor justo de um título negociado no mercado secundário. Essa etapa pode melhorar a transparência das taxas cobradas nas operações de revenda, diminuindo o custo para o investidor final.
"Ter um preço de referência é muito importante. Apesar de o mercado de títulos de crédito ser bastante diverso, talvez somente 15 ou 20 títulos tenham liquidez suficiente para uma precificação mais correta", afirmou Fabio Zenaro, diretor de Produtos de Balcão e Novos Negócios da B3.
Além disso, há um outro sistema em desenvolvimento, chamado de fix suite, que vai permitir a entrada de ordens de compra e venda em um ambiente centralizado. Esse sistema deve ser lançado até o início de 2021. "Uma vez que essa interface mais automatizada para envio de ordens for lançada, os aspectos operacionais para as corretoras e bancos serão facilitados ", diz Mario Palhares, diretor de Produtos Listados da B3.
As novidades atendem a reivindicações dos principais agentes de mercado. "Temos escutado muito pedidos de mercado e estamos avaliando qual é a melhor solução para a eletronificação do segmento de renda fixa público e privado", diz Guilherme Pimentel, superintendente de Produtos de Renda Fixa da B3.
Por fim, a administradora da bolsa de valores também está promovendo melhorias no processo de liquidação das operações, para que os "bastidores" também estejam preparados para o ganho de escala do mercado. "A negociação de títulos privados tem crescido em razão do cenário de juros baixos. Há três ou quatro anos, o volume de operações secundárias era muito baixo. Para que esse crescimento não traga problemas, precisamos melhorar o processo operacional de liquidação e alocação", diz Zenaro.
A expectativa da B3 é que, conforme as melhorias sejam disponibilizadas, mais corretoras e bancos passem a recorrer ao sistema da administradora da bolsa, o que deve centralizar a negociação dos títulos. Para o investidor, quanto mais distribuidores ligados a um sistema único, melhor, pois aumenta a transparência e a competição do mercado.
Títulos de crédito privado são bem mais complexos do que outros ativos negociados eletronicamente, como ações. Isso porque uma mesma empresa pode emitir títulos de prazos e retornos completamente diferentes, o que torna a precificação desses ativos mais difícil. Você pode ter, por exemplo, debêntures emitidas por uma mesma empresa, mas com vencimento, rentabilidade e liquidez variados -- e cada uma delas terá uma avaliação diferente no mercado.
A falta de um sistema único de negociação faz com que o investidor tenha acesso a um universo limitado de títulos de crédito privados. Além de a liquidez ser menor, por causa do complexo processo de compra e venda, esses títulos são de distribuição específica. Ou seja: o investidor terá acesso somente às aplicações de renda fixa que sua corretora tiver no portfólio. Para encontrar uma debênture, um CRI ou um CRA específico, é possível que ele tenha que procurar outra corretora ou banco. E ainda precisará contar com a sorte de haver um investidor interessado em vender esse título naquela data.
Helio Pio, sócio da gestora Devant, diz que as restrições de operação não permitem ao investidor conhecer, com exatidão, o preço justo daquele título. Não é possível saber, também, quanto a corretora está ganhando para distribuir essas aplicações. "A estrutura manual de negociação causa um custo para as corretoras. Por isso, muitas vezes não faz sentido oferecer uma operação de 1.000, 3.000 ou 5.000 reais. Por mais que haja uma taxa de corretagem de 1,5% ou 2%, a conta não fecha. Na prática, isso acaba limitando o número de pessoas que podem investir, justamente em um momento em que a diversificação é ainda mais importante", diz Pio.
Além disso, a falta de escala para essas operações faz com que o deságio na venda no mercado secundário seja maior. "Se a disponibilidade desses títulos fosse maior, o preço de saída ficaria mais atrativo. O investidor deixaria de ser penalizado pela falta de liquidez e pelo spread (a margem) da corretora. Esse spread poderia diminuir, pois quanto maior a escala menor os custos para as corretoras", diz Ghani, da EXAME Research.
Se por um lado o investidor tem muito a ganhar com a facilitação da negociação de títulos de crédito, as empresas têm ainda mais. O crescimento de CPFs ativos na bolsa de valores, por exemplo, fomentou as operações de emissões de ações (tanto IPOs quanto as ofertas subsequentes, os follow ons), o que fortaleceu a operação das empresas. O mesmo pode acontecer caso mais investidores tenham mais acesso ao mercado de dívida privada.
"As empresas precisam de recursos para ajudar a desenvolver a economia, mas há um impeditivo prático, que é a falta de um home broker ou de um sistema único para a negociação de títulos privados", observa o sócio da Devant.
Na ausência do sistema único, a negociação acontece à moda antiga. "Você liga ou manda mensagem para a corretora informando o ativo que quer negociar, diz o preço e a remuneração, e essa corretora repassa para a base de clientes. Uma vez que um interessado é encontrado, a corretora faz manualmente a ordem de compra ou venda. É um mercado boca a boca, quase como vender ou comprar um imóvel", diz Gustavo Pondian, gestor de fundos de crédito privado no Banco Fator.
Mas é essencial que o ganho de escala seja acompanhado de uma maior disseminação de informações sobre debêntures, CRIs, CRAs e outros tipos de crédito privado. Embora estejam dentro do guarda-chuva da renda fixa, essas aplicações têm uma dinâmica de risco bem diferente de outros títulos de crédito, como CDBs, LCIs, LCAs e até do próprio Tesouro Direto. Os títulos de dívida não são, por exemplo, cobertos pelo Fundo Garantidor de Crédito (FGC).
"O investidor pode ter a falsa impressão de que, por ser parte da renda fixa, esses títulos são garantidos e que não há risco de perder o (valor) principal investido. Mas sabemos que não é bem assim", alerta Zenaro, da B3.
Basta lembrar do caso mais recente de problemas nesse mercado. A concessionária de estradas Rodovias do Tietê entrou em recuperação judicial neste ano, deixando na mão os milhares de investidores que tinham comprado suas debêntures incentivadas, emitidas em 2013. Cerca de 18 mil pequenos investidores tinham esses títulos na mão e acabaram perdendo tudo. Pode-se dizer que a grande maioria não conhecia os riscos da aplicação e tomou um susto quando as debêntures viraram pó.
Com o ganho de escala do mercado de negociação, episódios como o da Rodovias do Tietê podem ser ainda mais traumáticos. "O acesso à informação e um bom processo de suitability (definição do perfil do investidor) são essenciais para garantir que investidor esteja ciente das oportunidades e riscos. Lembrando que isso deve ser um esforço de toda a indústria de investimentos: reguladores, B3, corretoras e bancos. Não podemos esquecer que os distribuidores são os que conhecem melhor os clientes e que, por isso, conseguem garantir aderência ao tipo de investimento", afirma Palhares, da B3.
A boa notícia é que o interesse dos distribuidores pelo desenvolvimento do mercado de crédito privado mostra que há muitas possibilidades à frente. "Quando as plataformas tiverem esses produtos disponíveis, as próprias áreas de research vão passar a cobrir esses títulos, fazendo análises sobre os riscos e oportunidades. Atualmente não há muita informação, porque esse é um mercado com pouca presença de pequenos investidores, mas eu espero que isso mude", afirma Pio, sócio da Devant.