Luigi Mangione: norte-americano foi acusado de matar o CEO da UnitedHealthcare, Brian Thompson. (Jeff Swensen/Getty Images)
Repórter de POP
Publicado em 17 de dezembro de 2024 às 15h09.
Última atualização em 19 de dezembro de 2024 às 20h39.
Em duas semanas, Luigi Mangione viu seu rosto estampar manchetes em todo o mundo após o assassinato do CEO da UnitedHealthcare, Brian Thompson. Foi acusado de matar o executivo da maior operadora de planos de saúde privada no país, no dia 4 de dezembro, com um tiro à queima-roupa, e se tornou a mais nova "celebridade" dos Estados Unidos.
Mangione, homem branco, de 26 anos, foi preso cinco dias após cometer o crime. Poucos dias após ser detido, virou herói nacional para uma parcela da população, "piada" no Saturday Night Live, homenagem em uma festa noturna norte-americana, tema central de fã-clubes nas redes sociais e edits no TikTok. A história vai até se tornar enredo, revelou a Variety, de um documentário produzido por Alex Gibney, vencedor do Oscar e diretor da produtora Jigsaw Productions, com produção da Anonymous Content.
A comoção das pessoas com Mangione, no entanto, não celebra exatamente a violência do crime, mas sua motivação. Ele matou o CEO da UnitedHealthcare poucos minutos antes que Thompson chegasse ao Investor Day anual da companhia, de forma isolada. Em um caderno encontrado pela polícia local, ao qual o The New York Times teve acesso, detalhou que procurava cometer um assassinato "preciso", sem colocar em risco pessoas inocentes. Buscava, na verdade, "vingança" contra o sistema de saúde privada do país — um dos mais caros do mundo.
Nas anotações, Mangione referiu-se à reunião com os investidores da empresa de Thompson como "uma convenção anual de parasitas tacanhos". Escreveu que é injusto que os Estados Unidos tenham o sistema de saúde mais caro do mundo, mas "que não contribui para a melhoria da qualidade de vida da população". Só serve, nas palavras escritas por ele, "para enriquecer algumas empresas, não para aumentar a expectativa de vida".
Cartazes de 'procurados' com fotos de executivos preocupam polícia de Nova YorkO grupo UnitedHealth tem mais de 50 milhões de clientes, com lucro operacional de US$ 16 bilhões em 2023. São cerca de 140 mil funcionários.
Luigi Mangione's manifesto refers to Michael Moore's Sicko documentary on the for-profit US healthcare system. In one part of it Moore takes abandoned 9/11 first responders to Cuba to get healthcare there, to show just how sick and depraved the US is by comparison: pic.twitter.com/IfdYswtlyH
— ☀️👀 (@zei_squirrel) December 10, 2024
And in this house, Luigi Mangione is a hero. End of story pic.twitter.com/qH3c7oMiW4
— Lolo (@LolOverruled) December 9, 2024
A mudança de criminoso a "herói" nacional tem gerado uma série de repercussões nos Estados Unidos. Levou não só as pessoas a questionarem — ainda mais — o sistema de saúde do país, como também fez com que políticos norte-americanos passassem a discutir o assunto dentro do Congresso. É o caso da deputada federal Alexandra Ocasio Cortez. "Eu não quero dizer que um ato de violência seja justificado, mas acho que qualquer pessoa que esteja confusa, chocada ou horrorizada precisa entender que as pessoas vivenciam seus pedidos negados por seguros de saúde como um ato de violência contra elas", afirmou ela nas redes sociais.
Mangione foi detido no dia 9 de dezembro, acusado de homicídio em segundo grau, falsificação de documentos e porte ilegal de armas. Passará ainda por novas audiências antes de receber a sentença oficial, mas já conta com a ajuda de seus "fãs": vai receber o dinheiro de uma vaquinha virtual, que já arrecadou mais de U$ 78 mil (R$ 474 mil, na cotação atual), para "direito constitucional de uma representação legal justa". A campanha foi realizada no site GiveSendGo. Caso ele opte por não aceitar a doação, o dinheiro será "doado para fundos legais para outros prisioneiros políticos dos EUA".
O autor do crime contra Brian Thompson é formado pela Universidade da Pensilvânia em Ciência da Computação e Engenharia, e nascido em família rica — que tem negócios no setor imobiliário, além de financiar emissoras de rádio. Antes de entrar na faculdade, cursou ensino médio na Gilman School em Baltimore, uma escola renomada cuja mensalidade é em torno dos US$ 3.140, segundo o New York Times. Foi orador da turma na formatura, em 2016, praticou luta e outros esportes.
Luigi Mangione's 2016 yearbook picture. pic.twitter.com/zyxQ53DUYT
— Creepy (@creepydotorg) December 12, 2024
Enquanto universitário, chegou a fundar com um amigo um clube de desenvolvimento de videogames e participou da Eta Sappa Nu, uma sociedade de honra acadêmica da Universidade da Pensilvânia exclusiva para alunos de destaque.
Balas que mataram CEO da UnitedHealthcare tinham mensagens escritas, dizem autoridadesAté o final de 2023, trabalhava como engenheiro de software na TrueCar, empresa localizada em Santa Mônica (Califórnia, EUA). Antes de ser preso, morou por seis meses no Havaí, em Honolulu, em uma comunidade de trabalhadores remotos.
Para além da "vida boa", no entanto, Mangione sofria com dores nas costas e precisou passar por uma cirurgia, em 2023, para tratar de espondilolistese, doença conhecida como "escorregamento vertebral". A motivação do crime pode ter partido daí: seis meses após sair de Honolulu, Mangione disse a amigos com quem morava que voltaria aos Estados Unidos para passar por um atendimento específico para sua condição de saúde. Pouco tempo depois, retornou a ilha e alugou um apartamento no mesmo bairro, segundo apurou o New York Times.
As investigações ainda não chegaram a um resultado conclusivo. Não foi determinado que o médico que o atendeu seria filiado de alguma forma ao grupo UnitedHealth e que o atendimento tenha sido a principal motivação de Mangione.
O sistema de saúde dos Estados Unidos é tido como um dos mais caros em todo o mundo. Diferente do Brasil, que conta com o Sistema Único de Saúde (SUS) e oferece assistência médica gratuita, no gigante norte-americano, a saúde é privada. Ou seja, sem um plano privado — cuja regulamentação varia de estado para estado —, todo e qualquer atendimento é pago inteiramente pelo paciente. Quem está abaixo da linha da pobreza e é idoso, no entanto, é assegurado por dois programas gratuitos: o Medicare e o Medicaid, que garantem assistências para atendimentos simples e emergências, somente.
A média de um plano individual é, em média, de US$ 456 dólares mensais. A maior parte dos norte-americanos contrata um plano privado da modalidade long-term care, que garante cuidado a longo prazo, direto pela empresa onde trabalha. Cerca de 58.5% das falências de famílias norte-americanas são puxadas por gastos com saúde. E somente um em cada 12 possui uma cobertura, segundo dados da eHealthInsurance.
Um estudo compartilhado pela SuperInteressante mostra que entre 2020 e 2022, durante a pandemia da Covid-19, 22,7% dos pedidos foram negados pela UnitedHealthcare para cuidados pós-agudos, nos quais é necessária a transição dos pacientes para casa.
As seguradoras são reconhecidas por negarem tratamentos ou procedimentos, como relatam diversos pacientes norte-americanos a jornais como The Washington Post, New York Times, entre outros. Na hora da contratação ou do uso, até mesmo em emergências, os critérios não são claros. Há casos famosos, como o de Leon Lederman, que precisou vender a medalha que conquistou do prêmio Nobel para pagar contas hospitalares.
Nas anotações encontradas no caderno de Mangione, havia as palavras "delay, deny and depose" ("adiar, negar e depor"), referências ao livro de mesmo nome escrito pelo professor de Direito Jay Feinman, que aborda a complexidade do sistema de saúde norte-americano — e suas crises e controvérsias. Entre as principais críticas ao sistema, compartilhadas por quem contrata esses planos, estão reclamações sobretudo relacionadas aos preços e à cobertura de saúde, que de acordo com Feinman, não visam o bem-estar e a longevidade dos pacientes.
O cenário já se arrasta por anos. Começou em 1929, quando um hospital de Dallas ofertou a 1.250 professores uma pequena contribuição mensal em troca de 21 dias garantidos de internações por ano, contando cirurgias. À época, a iniciativa visava resguardar seguradoras de saúde diante da Grande Depressão, mas o pagamento dos pacientes persistiu. Em 1954, vale dizer, o governo federal norte-americano isentou a saúde privada de impostos.
O ato de Mangione desencadeou o sentimento de revolta em milhares de moradores dos Estados Unidos que, como Lederman, criaram dívidas e perderam bens para pagar pela saúde. Tendo plano de saúde ou não.