Loja da Saraiva (Saraiva/Divulgação)
Repórter
Publicado em 21 de setembro de 2023 às 07h44.
Última atualização em 21 de setembro de 2023 às 08h43.
A história da mais tradicional rede de livrarias do Brasil caminha para um desfecho. Mais de cem anos após sua fundação, a Saraiva deverá trocar de mãos ainda nesta semana, com a perda de controle da família fundadora e que dá nome à companhia.
A dívida líquida reportada no último balanço da Saraiva estava em R$ 24,620 milhões. Mas o valor total seria cerca de R$ 100 milhões a mais, segundo fontes ouvidas pela Exame Invest. A diferença seria referente ao total de pagamentos represados e que ainda não teriam sido lançados nas contas da companhia. Das 106 lojas que a Saraiva tinha em 2018, ano de sua primeira recuperação judicial, todas já foram fechadas. Somente neste ano, foram mais de 20. Entre funcionários, a pergunta é sobre quando empresa ressarcirá os demitidos.
Foram cerca de 300 empregados dispensados nos últimos meses. Para arcar com os custos trabalhistas, segundo fontes, a família controladora teria injetado cerca de R$ 5 milhões por meio de uma operação de Dip Finance, em que o credor (no caso, a própria família) tem preferência no pagamento. Mas os funcionários alegam que ainda não receberam o dinheiro devido. "Quem saiu recentemente ainda não recebeu nada e estão atrasados os parcelamentos de acordos feitos com os funcionários das lojas que fecharam a partir de abril", disse à Exame Invest um ex-gerente da companhia que pediu para não ser identificado.
O cenário é o que espera o novo corpo de acionistas que será formado a partir da Assembleia Geral Extraordinária (AGE) prevista para esta sexta-feira, 22. Na pauta da AGE está a conversão das ações preferenciais, que deixarão de existir, em, ordinárias.
A conversão foi uma das medidas exigidas pela Justiça, já o número de ações preferenciais havia estourado a proporção máxima de 2/3 devido a uma cláusula prevista em sua recuperação judicial. Aos credores, na época, foi proposta a redução de 80% da dívida e a conversão dos 20% restantes em ações preferenciais, com preferência de pagamento, mas sem direito a voto. Com isso, o número de ações preferenciais explodiu de 1,140 milhão para 8,963 milhões, enquanto a de ordinárias se mantém estacionada em 671.819.
As ações ordinárias da Saraiva estão cotadas perto de R$ 3,75, enquanto as preferenciais ao redor de R$ 1,60. Mesmo com a diferença significativa de preços (que, inclusive, já foi ainda maior) e o número 12 vezes maior de preferenciais, a relação de paridade estabelecida foi de 1 para 1.
A participação da família na Saraiva, atualmente, é dividida entre dois nomes. Jorge Saraiva Neto, diretor-presidente e vice-presidente do Conselho de Administração, tem 41,6% das ações ordinárias e 1% das preferenciais. Olga Saraiva, sua mãe e filha do fundador, é presidente do Conselho de Administração e possui 10,4% das ações ordinárias e menos de 1% das preferenciais. Após a conversão das ações, portanto, o direito de voto da família Saraiva deverá passar dos atuais 52% para cerca de 4,7%.
A operação está sendo vista com bons olhos por parte dos credores, que esperam vender as ações ordinárias na tentativa de reaver parte do valor da dívida que tinha com a Saraiva. Essa relação de troca, porém, não agradou Alyssa Bruscato, investidora gaúcha que chegou a ser a segunda maior acionista da empresa, mas que zerou sua posição pouco antes de ser diluída pela conversão de ações.
A história de Bruscato, que vinha travando uma guerra dentro da empresa, começou em 2019, três anos após a saída do investidor coreano Mu Hak You, que zerou sua posição após também ter entrado em choque com os controladores A esperança, mais uma vez, era de um turnaround. Mas, após anos atuação nos bastidores da companhia, a história de Bruscato na Saraiva chegou ao fim, com sua saída do corpo de acionistas relevantes e a renúncia de conselheiros indicados por ela. O estopim da saída de Bruscato, afirmou em carta aberta, seria a aprovação das contas de 2022 pela presidente do Conselho de Administração, Olga Saraiva. A alegação é de que haveria conflitos de interesses evidentes na aprovação das contas. "Sem o seu voto as contas do exercício encerrado em 31 de dezembro de 2022 seriam reprovadas e a atual administração poderia sofrer uma ação de responsabilidade."
Responsabilizar a administração pelos atos dos últimos anos é um dos desejos de Bruscato, que saiu com prejuízos do investimento. A empresa, segundo ela, teria sido lesada por um contrato com a KR Capital, empresa de Marcos Guedes, ex-CEO estatutário da companhia com a qual a Saraiva teria uma dívida de R$ 25 milhões. O valor seria fruto de um contrato assinado em 2020, que teria previsto uma remuneração de 20% sobre a redução da dívida. O percentual seria bem acima do acordado com a Galeazzi, que receberia 0,5% sobre a redução da dívida da Saraiva com os credores mais um valor fixo de R$ 400.000 caso o plano de recuperação fosse aprovado.
A chegada de Marcos Guedes foi anunciada em comunicado ao mercado do fim de 2020 que afirmava que o contrato com a KR Capital havia sido firmado pelo Conselho Administrativo para a gestão interina da empresa. Só que a ata da reunião do Conselho segue um mistério.
Conselheiros indicados pela Alyssa Bruscato disseram ter pedido insistentemente o documento da reunião que teria firmado a contratação da KR Capital. Só que o original nunca teria sido entregue, apenas uma cópia. Foi em cima dessa cópia que o perito Domingos Toschetto emitiu um laudo em que afirma haver supostas falsificações no documento. O resultado do laudo foi enviado ao Ministério Público, que investiga o caso.
A suposta falsificação do documento também foi citada nas cartas de renúncia dos conselheiros da Saraiva Aaron Rabeno e Francine Bruscato Costa, ambos indicados por Alyssa Bruscato. "Nos últimos meses tive conhecimento de diversos fatos e documentos que aumentaram os questionamentos acerca da contratação e pagamentos à KR Capital, tais como a celebração de uma confissão de dívida em favor da KR Capital, a cessão do crédito detido pela KR Capital para um FIDC, a suspensão por ordem judicial, dos pagamentos devidos à KR Capital, e, por fim, a ata do Conselho de Administração, de dezembro de 2020, que aprovou a primeira contratação da KR capital, com evidências de adulteração", diz a carta assinada por Rabeno.
Do valor total devido à KR Capital, R$ 20 milhões seriam pagos em ações, R$ 2,5 milhões parceladamente e os outros R$ 2,5 milhões à vista. Essa quantia à vista, segundo o administrador judicial da empresa, teria sido paga em espécie. Tanto o parcelamento quanto o pagamento em ações à KR Capital foram suspensos pela Justiça. Só que esse valor a receber já não pertence mais à KR, que teria vendido os direitos sobre o crédito ao FIDC AlphaOverlay.
Teria sido, inclusive, por meio de um FIDC que a KR Capital conseguiu reduzir parcela significativa de sua dívida com o Banco do Brasil, o então maior credor da Saraiva, com mais de R$ 100 milhões a receber. De acordo com questionamentos recentes feitos pela Alyssa à Saraiva, a KR Capital teria indicado o FIDC Travessia para adquirir os créditos do Banco do Brasil. Posteriormente, esse crédito, adquirido a um valor sob sigilo, teria sido usado em seu valor de face na compra de duas unidades produtivas independentes (UPIs) da Saraiva: os créditos fiscais estimados em R$ 50 milhões e um imóvel no shopping Ibirapuera, vendido 6 meses depois por cerca de R$ 20 milhões.
"Essa operação indicada pela KR Capital pode ter garantido um lucro milionário ao FIDC Travessia e um prejuízo para a companhia que se desfez de 2 ativos valiosos, além, é claro, da dívida de aproximadamente 25 milhões de reais com a KR Capital originada por conta da realização dessa operação", afirmou Alyssa Bruscatto em carta anexa à ata da AGE de agosto.
A reportagem buscou posicionamento da Saraiva por meio dos contatos fornecidos em seu site de Relações com Investidores, mas não obteve resposta. Foram feitos ainda questionamentos sobre as alegações ao diretor jurídico da companhia por meio de contato direto, mas, até o momento, não houve resposta até a publicação da matéria. O espaço segue aberto para a empresa se posicionar.
A AGE de agosto foi a última de Alyssa Bruscatto, que já se tornou uma página virada na Saraiva e em breve a própria família fundadora deixará de fazer parte da história centenária da empresa, que caminha para o capítulo final. O suspense, agora, é se os credores que assumirão a companhia terão fôlego de escrever uma nova história na Saraiva -- ou se as próximas linhas a serem escritas serão apenas as notas de rodapé.