Inteligência Artificial

Por que o Apple Vision Pro pode acabar com o cinema?

A digitalização das experiências modifica a forma como as consumimos, com maior controle sobre o que vemos e menos compartilhamento com outras pessoas

Miguel Fernandes
Miguel Fernandes

Chief Artificial Intelligence Officer da Exame

Publicado em 9 de fevereiro de 2024 às 07h14.

Última atualização em 9 de fevereiro de 2024 às 07h14.

Recentemente fui ao teatro com meu filho. É uma das mais antigas formas de se contar história que eu conheço. Ele fez um comentário singelo que me deixou dias a fio refletindo.

Assim que entramos, apontou para frente e disse: "cinema de cortina". Sem saber que o teatro veio antes do cinema, criou essa associação como se o teatro fosse inspirado no cinema, não o contrário. Isso me deixou reflexivo.

No teatro: durante a peça, fiquei pensando nas diferenças

A digitalização das experiências modifica a maneira como experimentamos. No teatro, por exemplo, tem uma cena principal, mas posso olhar para qualquer lugar do palco. Posso focar no cenário, nos atores que estão fora dos holofotes ou na poeira flutuando no ar. Tenho o controle sobre o que vejo. Ninguém fica observando para onde estou olhando.

O cinema digitaliza essa experiência, e ao fazer isso, tira esse controle. Alguém decide por mim exatamente quais pixels eu vou assistir em cada segundo do filme.

Os processos digitais têm essa questão em comum: o controle. Ao longo do tempo, as mídias digitais foram controlando mais e mais, conteúdo hiper personalizado para me manter conectado na minha tela particular, que só eu vejo. Deixei de compartilhar músicas, deixei de compartilhar filmes, deixei de compartilhar livros. Agora no máximo comento qual música escutei no Spotify, qual filme assisti no meu iPhone ou qual livro li no Kindle. Além disso, sempre tem “alguém observando” o que estou vendo. Fica tudo no banco de dados da Amazon, Apple, Google, etc…

O cinema manteve em comum com o teatro o fato de ser uma experiência coletiva, pessoas assistem juntas, ao mesmo tempo, o mesmo filme. Tem uma tela compartilhada.

E é justamente essa ideia de uma tela compartilhada que está ameaçada pela potencial popularização dos óculos de realidade virtual e da tal da computação espacial, “categoria” que a Apple criou para se referir ao seu novo produto: o Apple Vision Pro. Circulam pela Internet vários vídeos de pessoas em situações do cotidiano, no metrô, em restaurantes, andando pela rua, vestindo os óculos, imersas em um mundo diferente do real.

É curioso pensar que essa disputa das mídias entre experiência coletiva e individual remonta à invenção do próprio cinema. Durante muito tempo a visão coletivista prevaleceu, isso vem mudando e o óculos da Apple pode ser o ponto de virada.

O cinema tem suas origens na palavra "cinematógrafo", tecnologia que viabilizou o cinema como ele é concebido: uma experiência compartilhada e coletiva de assistir a imagens que foram registradas. "Cinematógrafo" é uma junção das palavras gregas para movimento e registro. Esse registro do movimento em uma mídia aconteceu pela primeira vez no final de 1880 na França pelos irmãos Lumière. Eles inventaram um equipamento que permitia colocar uma fita dentro, com uma película que, ao ser exposta à luz, registrava o momento. Essa máquina conseguia gravar e depois projetar as imagens do movimento registrado. Aliás, Lumiere é o nome de uma ferramenta de inteligência artificial de geração de vídeos que o Google acabou de lançar.

Eis o cinematografo: uma das primeiras propostas para consumirmos cinema

O concorrente do cinematógrafo foi o cinetoscópio, inventado por Thomas Edison, o mesmo que inventou a lâmpada. Era uma invenção mais individualista, versão bem rústica dos óculos da Apple.

O cinetoscópio era parecido com um microscópio, a pessoa precisa encaixar os olhos na máquina para ver sozinha as imagens se mexendo lá dentro.

O cinematógrafo prevaleceu, não porque era necessariamente uma tecnologia melhor, mas porque era mais escalável e podia exibir um mesmo filme para uma quantidade maior de pessoas. Com o tempo, essa visão coletivista de todos assistindo ao mesmo conteúdo deu lugar a uma visão mais individualista, onde cada um assiste ao seu conteúdo.

Agora o cinetospópio: outra das propostas

Os irmãos Lumière, ao lançarem o cinematógrafo, fizeram um filme simples que registrava a chegada de um trem numa cidade. Eles próprios acreditavam que o cinema não tinha futuro, só servia para fins científicos. No entanto, George Méliès, um artista do teatro, viu nessa tecnologia a possibilidade de fazer mágicas que jamais poderia fazer antes e começou a usar a câmera como um dispositivo para criar ilusões. A arte se apropriou culturalmente da tecnologia, isso modificou a própria cultura e criou toda uma nova indústria.

Hoje, vivemos essa virada tecnológica com a inteligência artificial e outras tecnologias emergentes, como a realidade aumentada e mista. Um triunfo daquela visão mais individualista do consumo de conteúdo. Isso reflete uma tendência onde cada vez mais nos distanciamos de uma experiência compartilhada de mundo, libertando-nos dos canais de televisão que monopolizavam a programação, para um consumo de conteúdo personalizado recomendado por algoritmos.

Imagem por @inventormiguel usando o MidJourney

Essa individualização se estende à leitura de livros em formato digital, ao uso de celulares que filtram nossa interação com o mundo e as pessoas ao nosso redor, e agora com óculos de realidade virtual que nos colocam em mundos totalmente diferentes controlados artificialmente por nossas mãos. Isso traz dilemas sérios sobre a dicotomia entre uma visão mais comercial e individualista versus uma experiência mais coletiva de vida cultural. Leva a outros patamares o controle sobre o que se consome. A Apple vai saber como estava meu batimento cardíaco pelo relógio, como estava meu humor pelas minhas expressões faciais e como estava minha atenção pela retina do meu olho. Tudo medido milimetricamente pela tecnologia para alimentar inteligências artificiais que personalizam o que eu vejo.

Fico com a grande dúvida: o que é melhor? Exercer nossa liberdade ao máximo usando tecnologias que facilitam nossa vida ou ter menos opções, mas compartilhar algo que sabemos que as pessoas ao nosso redor também estão assistindo, criando uma conexão social maior? Será possível conviver com os dois mundos? Como os George Méliès do nosso tempo, os artistas, vão se apropriar dessas tecnologias? Que novas experiências podem criar?

Aprofundei essas questões nesse vídeo que publiquei no YouTube. Enquanto você vê o vídeo, vou assistir uma peça de teatro aqui no meu óculos de realidade virtual.

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