Repórter
Publicado em 29 de janeiro de 2024 às 07h43.
Última atualização em 29 de janeiro de 2024 às 07h48.
No século 20, ilustrações criadas pelos franceses Jean Marc Côté e Villemard, que ficaram populares durante a Belle Époque, imaginavam um futuro retrô a partir das inovações da época. Nelas, as telas não eram o foco de nada, tampouco aplicativos - inimagináveis para uma mente de 100 anos atrás. Mas algumas apostas se aproximaram da realidade atual nos conceitos. Nos desenhos, já havia a previsão da comunicação por dispositivos eletrônicos e a automação de tarefas manuais exaustivas, como a colheita em plantações. Para a educação, a especulação era de que os estudantes iriam receber o conteúdo de forma automática com a tecnologia conectada diretamente em suas cabeças.
Neste caso específico, o futuro, como bem se sabe, tem uma certa dificuldade para se afirmar. E, ao contrário do que previram os franceses, muito pouco foi alterado na forma como se aprende nos dias atuais: as salas de aula ainda seguem no formato alunos olhando para um quadro enquanto ouvem o professor, seja presencialmente ou de forma remota. Mas há transformações que alteram essa equação. A inteligência artificial, que tem movido o setor de tecnologia para os seus avanços mais atuais, está chegando ao dia a dia dos alunos. Essa é uma previsão de educadores e executivos de grandes companhias, como Sundar Pichai, do Google, que prevê a inteligência artificial, a novidade mais quente do setor tech, como o professor mais poderoso que o mundo já viu.
A realidade já esboçada em alguns projetos indica que, muito em breve, cada pessoa do mundo – independentemente de onde estejam e de onde venham – terá, por meio das IAs generativas, aquelas que criam uma resposta a partir de um pedido escrito ou falado, que as ensinem sobre qualquer tema e se adaptem às necessidades pessoais de aprendizado.
A prática já é documentada até mesmo na realidade brasileira. Segundo uma pesquisa realizada pela empresa americana de tecnologia Chegg, cerca de 50% dos estudantes de ensino superior no Brasil já fazem uso da IA para trabalhos acadêmicos e a vida pessoal.
Por mais de uma década, o setor da educação tem tentado encontrar formas de tornar o aprendizado mais dinâmico. Apps com cartões didáticos, ensino remoto, plataformas de aprendizado e até tablets na mão de cada aluno tentaram ampliar as capacidades que a aula possui para ensinar um aluno. No cenário mais recente, o que começou com o ‘boom’ do chatbot da OpenAI, o ChatGPT, hoje pode ser visto em inúmeros outros projetos entrelaçados à educação – de uma forma bastante difusa no aproveitamento.
Em São Paulo, escolas particulares como a Camino School passaram a desenvolver as próprias ferramentas e estimular o uso responsável da IA. A escola trilíngue segue o princípio da aprendizagem ativa, no qual os alunos são estimulados a desenvolver os próprios projetos e ir atrás da informação. “A nota é algo estático, e nós acreditamos na evolução.
Por isso, pais e professores podem acompanhar a curva de aprendizagem do aluno pela plataforma”, explica Eric Endo, responsável pela criação do Lanttern dentro da Camino. Ao longo do ano, o plano é enriquecer a plataforma open source com conteúdos para alunos e professores e determinar as políticas de uso da IA na escola. “Com certeza o ensino médio já está usando de outra forma, provavelmente pelo ChatGPT, e a ideia é que possamos discutir isso”, disse.
No ensino superior, a ESPM vai passar a oferecer o curso “Prompts para IA” agora no primeiro semestre. O professor Carlos Rafael Gimenes, do curso de Ciência de Dados e Negócios, irá abordar o uso de prompts – o comando que se faz para a IA generativa – para geração de imagens e textos.
O especialista em engenharia da computação desenvolveu um portal para que os alunos possam praticar a geração de imagens sem custo, diferentemente de ferramentas pagas como Midjourney e DALL-E. O portal permite monitorar o que os alunos estão fazendo e evitar conteúdos inapropriados, já que as ferramentas de código aberto não têm censura embutida. Ele também mencionou que a ESPM substituiu os equipamentos de dois laboratórios com novos computadores com hardware especializado para processamento de IA, o que reduzirá significativamente o tempo de geração de imagens.
A CPET, plataforma educacional de cursos técnicos online, já incorpora a IA generativa no aprendizado e suporte dos alunos. “Adotamos um software alimentado pelo ChatGPT e treinamos ele com os conteúdos das disciplinas dos cursos”, conta o presidente Ricardo Luiz Marcatto. A IA acaba funcionando como um tutor, mas Marcatto garante que a intenção não é substituir o trabalho do professor: “Os alunos são encorajados a entrar em contato com seus tutores para uma compreensão mais aprofundada, além disso, todas as atividades práticas continuam sendo exclusivamente corrigidas por eles”.
De acordo com uma pesquisa realizada pela Impact Research, 88% dos professores aprovam o uso da IA generativa no ensino. Há uma oportunidade de corrigir provas, desenvolver exercícios e preparar aulas de uma forma nunca antes feita. Para muitos, não é a substituição do professor e sim a facilitação do seu trabalho: agora, não precisam usar o tempo fora da sala de aula para se preparar para o dia seguinte.
Mas o professor da ESPM ressalta que, mesmo com o auxílio da IA – seja para montar a próxima aula ou responder uma questão da lição de casa – ainda é necessário botar a mão na massa. “Sempre será necessário uma curadoria. Não se pode copiar e colar o que está no ChatGPT e achar que aquilo vai resolver seu problema”, disse Gimenes. “É o que dizem: a IA não vai tirar o emprego de todo mundo, ela vai tirar o emprego de quem não sabe usar”.
O uso da IA também expande o acesso à educação e tira a responsabilidade do “aprender” fora da sala de aula. Agora, pelo smartphone, qualquer pessoa com qualquer idade pode se dedicar a aprender um novo tema ou idioma: o Duolingo, por exemplo, teve mais de 20 milhões de usuários ativos diariamente em 2023.
No Brasil, há uma iniciativa que combina a IA generativa com a plataforma de mensagens mais acessível do mundo. O ChatClass começou como uma forma descontraída de aprender inglês pelo WhatsApp, e hoje é uma ferramenta que já foi usada para ensinar e engajar colaboradores do Grupo Pão de Açúcar, Carrefour, Coca-Cola, Natura, Stone e mais. A ideia é que, através de mensagens no “Zap”, qualquer tema pode ser aprendido de qualquer lugar, e o chatbot pode ser adaptado conforme às necessidades da empresa que fecha um dos planos do ChatClass, que varia de R$ 649 a R$ 2999.
Para o CEO do ChatClass, Jan Krutzinna, que já trabalhou na ONU, as escolas brasileiras não têm a infraestrutura necessária para acompanhar a transformação digital que experienciamos hoje. O sonho de um tutor disponível para cada aluno é distante, mas ter ferramentas disponíveis no WhatsApp é uma solução que combina com a realidade brasileira. Segundo pesquisa do We Are Social, 93,4% dos brasileiros têm uma conta no app de mensagens. “Uma IA sofisticada não serve para nada se ninguém tem um dispositivo com internet na sala”.
Mas se existem ferramentas que ampliam o acesso ao ensino; personalizam a experiência para o aluno e facilitam a gestão da sala de aula para o professor, há também um vazio regulatório que abrace tantas novidades. Entram neste quadro em branco questões éticas, como a falta de segurança dos dados dos alunos, o descontrole de qual informação é verdadeira na internet e até IAs que burlam as inspeções das outras ferramentas, humanizando o texto e permitindo a “cola”.
No Brasil, tramita o projeto de lei que vai regulamentar o uso da IA em diferentes contextos. Do senador Rodrigo Pacheco, a primeira versão do texto do PL 2338/2023 se assemelha à legislação já existente da União Europeia. Por lá, o ponto principal é a participação humana no ciclo da inteligência artificial. No momento, a comissão brasileira está prorrogada até abril, mas independente de se o texto for aprovado, a dupla robô e aluno deve se tornar algo do dia a dia das escolas.