Inteligência Artificial

Deus é um bilionário? Como a fé na tecnologia do futuro está atrasando soluções reais no presente

Em novo livro, Adam Becker desmonta as promessas de Elon Musk, Sam Altman e outros bilionários que querem "salvar a humanidade" com IA e colônias em Marte

André Lopes
André Lopes

Repórter

Publicado em 30 de abril de 2025 às 12h00.

Última atualização em 30 de abril de 2025 às 15h14.

Poucas ideias têm tanto impacto no debate público atual quanto a convicção de que a tecnologia salvará a humanidade — seja da morte, da pobreza ou da própria Terra.

Essa expectativa não nasceu nas universidades ou em centros de pesquisa científica, mas no Vale do Silício. E é esse sistema de crenças que o físico e jornalista Adam Becker desmonta em More Everything Forever.

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O livro, publicado no fim de abril, se lança em uma investigação sobre como certas visões radicais do futuro — inteligência artificial autoconsciente, colônias espaciais, upload da mente — passaram de ficção científica para plano de ação empresarial, com apoio de capital de risco, doações filantrópicas e influência crescente em governos e políticas públicas.

Becker define essa visão como uma ideologia, não como um plano técnico. E estrutura sua crítica em três eixos: o reducionismo, a rentabilidade e a transcendência. A primeira característica é a tendência a simplificar problemas complexos — sociais, éticos, ambientais — em termos computacionais.

A segunda é o alinhamento com modelos de crescimento exponencial e retorno sobre investimento. A terceira, e mais perigosa, é a promessa de salvação: vencer a morte, abandonar o planeta ou garantir uma eternidade digital.

Não se trata de exagero, escreve Becker, mas de um projeto concreto em expansão. Empresas e fundações ligadas a figuras como Sam Altman, Elon Musk, Peter Thiel e Ray Kurzweil canalizam recursos para pesquisas e iniciativas que buscam, por exemplo, prever cenários catastróficos de IA ou simular a consciência humana.

O que preocupa o autor não é a especulação científica em si, mas a forma como ela é usada como instrumento de autoridade — como se grandes fortunas e previsões visionárias dispensassem validação empírica.

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Becker alerta para o risco de que essa elite digital defina os termos do debate, estabelecendo o que é progresso, o que é ético e o que deve ser temido. Se o único risco existencial que importa é a revolta de máquinas ou a extinção cósmica, então problemas como desigualdade, fome e colapso climático viram distrações — ou, na linguagem do Vale, “questões locais”.

Marte, IA e a estética do impossível

O livro dedica menos páginas aos detalhes técnicos e mais ao imaginário por trás dos projetos. A ida para Marte, por exemplo, não é tratado como proposta de engenharia, mas como símbolo: da fuga, do heroísmo individualista, do direito à expansão sem limite.

A crítica não é só à viabilidade técnica — que Becker contesta com dados sobre radiação, logística e habitabilidade — mas à ideia de que abandonar a Terra seria uma solução desejável ou moralmente neutra.

Na inteligência artificial, a crítica segue lógica parecida. Em vez de focar apenas no debate entre otimistas e alarmistas, Becker sugere que ambos compartilham o mesmo erro: tratar a IA como inevitável, autônoma e imune a decisão política.

Ele argumenta que o problema central não é “se a IA vai nos matar”, mas quem decide o que essas máquinas farão, a quem elas servem e com base em que valores.

Um dos capítulos mais contundentes trata do movimento effective altruism, que propõe usar métricas para decidir como fazer o bem. A crítica de Becker é que, ao multiplicar probabilidades minúsculas de salvar bilhões de vidas futuras, esse sistema transforma problemas reais e urgentes — como malária ou insegurança alimentar — em causas de baixa prioridade.

Ele cita estimativas que colocam investimentos em segurança de IA como mais “efetivos” que qualquer intervenção de saúde pública hoje. A consequência, segundo o autor, é a legitimação de interesses empresariais como se fossem compromissos morais, calculados por equações supostamente neutras.

De volta à Terra

Apesar do título hiperbólico, More Everything Forever é um livro sobre limites. Contra a ideia de que mais tecnologia sempre significa mais progresso, Becker propõe mais atenção, mais responsabilidade e mais humildade. “Estamos aqui agora, num mundo com mais do que poderíamos razoavelmente pedir”, escreve.

“Podemos encontrar alegria nisso e sentido em tornar este mundo um pouco melhor para todos". Em vez de imaginar a salvação por foguetes ou algoritmos, ele sugere outra rota: desacelerar, observar e cuidar do que já existe.

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