Petrobras sob ataque pode viver retrocesso de conquistas pós-Lava-Jato
Reformar a Lei das Estatais significa retrocesso no tempo; especialistas apontam o que gestores atuais podem fazer para garantir que a companhia se mantenha nos trilhos
Publicado em 24 de junho de 2022 às 18:01.
Última atualização em 24 de junho de 2022 às 18:23.
Reformar a Lei das Estatais. Privatização. O quarto presidente em um ano. Mudança de diretoria. Fim da Política de Paridade Internacional de Preços (PPI). Tudo isso foi jogado aos ventos nesta semana pelo governo diante da crise dos combustíveis, que ganhou ainda mais força diante da guerra na Ucrânia. A coleção de "soluções" é uma medida de como a alta nos preços pode impactar a eleição e de qual a disposição do governo de interferir na companhia diante desse cenário. Em risco, uma interferência que não se vê desde a época em que Sérgio Gabrielli fazia reuniões sobre sobre como usar a mina de ouro então recém-descoberta com o pré-sal ou que não se vê desde que o governo de Dilma Rousseff (PT) deixou o preço dos combustíveis congelado. Diante da crise atual e a proliferação de ideias do governo, e diante de todo passado da Petrobras, a pergunta que fica é como o conselho de administração da empresa — órgão máximo de governança de uma companhia — pode pelo menos tentar proteger o negócio. Onde está o limite entre obediência à vontade do controlador e defesa do melhor interesse da companhia?
Para fontes ouvidas pelo EXAME IN, há um consenso: ninguém vai colocar o próprio CPF em jogo por uma pseudosolução para a crise atual dos combustíveis. Muitos no mercado acreditam que se trata de uma cortina de fumaça, inclusive. Basta olhar para o que acontece no resto do mundo: nenhuma outra empresa do setor trocou de presidente quatro vezes em um espaço tão curto de tempo. Assim como nenhum outro governo delegou única e exclusivamente às empresas do setor a responsabilidade por medidas de controle de preços de combustíveis. Para completar, da última vez que o governo interferiu de maneira tão explícita na Petrobras, a companhia teve de fazer baixas contábeis de US$ 98 bilhões e ficou à beira da insolvência (não fosse uma estatal), uma vez que a geração de caixa estava totalmente comprometida com projetos de retorno negativo e fragilizada devido à defasagem em relação ao preço internacional de petróleo.
O risco da volta ao passado é minimizado, na visão de especialistas, pelo efeito combinado entre Lei das Estatais, estatuto da companhia e Lei das S.A. Especialmente nesta última, nem mesmo o artigo 238 (“A pessoa jurídica que controla a companhia de economia mista tem os deveres e responsabilidades do acionista controlador, mas poderá orientar as atividades da companhia de modo a atender ao interesse público que justificou a sua criação”) poderia fornecer respaldo suficiente para uma interferência do governo nos moldes da que se desenha.
“O artigo não autoriza o acionista controlador a utilizar a Petrobras para obter uma redução de preços de combustíveis visando à redução da inflação ou a qualquer função que não tenha a ver com o próprio funcionamento adequado do mercado de distribuição de combustível e dos mercados em que a Petrobras atua. A Petrobras existe para fazer com que o Brasil tenha uma companhia pública dedicada à atividade de extração, distribuição. A função da empresa é atuar nesses mercados. Proporcionar subsídios, isso sim é uma decisão de governo”, diz Marcelo Trindade, ex-presidente da CVM, ao EXAME IN.
Em adição a isso, na visão de Ary Oswaldo Mattos Filho, fundador e professor sênior da FGV Direito SP, a Lei das Estatais, nos moldes em que está, covalida o que é estabelecido na Lei das S.A. E resume os principais artigos que cumprem essa função. "O artigo 4º, parágrafo I, o artigo 5º, o 7º, o artigo 16, o 18, 22 e 26 fornecem uma base consistente, hoje, para a atuação dessas companhias no país. Não há, de nenhum modo, espaço para o governo agir em favor de interesses que não sejam os da companhia", afirma.
Isso não impede, entretanto, o governo de continuar procurando uma nova maneira de atender aos interesses eleitorais que este ano pressupõe. O movimento mais recente foi o descrito pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), de trazer uma medida provisória à Lei das Estatais, capaz de garantir o que ele mesmo definiu como “uma maior sinergia” entre as empresas e o governo no momento. Não custa lembrar que a lei foi criada em 2016, por causa da própria Petrobras. A memória ainda está fresca a respeito dos escândalos de corrupção protagonizados pela própria companhia e das multas bilionárias que tiveram de ser pagas aos acionistas americanos em decorrência disso.
“A MP produz efeito com a simples edição da medida provisória. As consequências já vão se reproduzir. Mesmo que não seja aprovada mais adiante, os fatos, os atos praticados na vigência dela são válidos. Se for rejeitada pelo Congresso ao final da tramitação, a Constituição diz que o colegiado terá de lidar com os fatos que ocorreram durante a vigência da medida provisória”, diz Trindade.
Mudar a lei significa trazer um menor rigor sobre a avaliação dos conselheiros e até uma volta aos tempos onde “apadrinhados, perdedores de campanhas eleitorais, sindicalistas amigos tinham vez nos conselhos e diretorias das estatais. É um tremendo retrocesso”, diz Dalton Sardenberg, professor de governança corporativa e coordenador técnico do Programa de Desenvolvimento de Conselheiros da Fundação Dom Cabral.
A piora na governança não se traduz, entretanto, em uma perspectiva de que todas as decisões do governo serão atendidas nos moldes em que deseja, de acordo com outra fonte ouvida pelo EXAME IN. “Não acho que isso vá mudar nada. Mesmo que novos conselheiros cheguem e possam estar sujeitos a algum tipo de influência do que o governo quer, ninguém vai colocar o próprio CPF em risco. As decisões não serão aprovadas por unanimidade, especialmente pensando que há pessoas ali eleitas por minoritários e que vão cumprir com o papel que o conselho pressupõe”, afirma. Em relação à manutenção da governança no pós-eleições, a opinião é de que há riscos de retrocessos mais significativos para a companhia. “Tudo que aconteceu antes deixa um gosto muito amargo. Mas acho que a governança já foi muito prejudicada. Depois de todo o estrago que já foi feito, há muito pouco estrago a ser feito”, diz.
Fato é que, enquanto as medidas propostas pelo governo não caminham, há uma visão de que a atuação do conselho para proteger a companhia tem sido exemplar — e que deve continuar assim, caso seja pautada em uma atuação responsável. É elogiado por especialistas o foco na missão de gerar valor para a companhia e de se ater ao que o estatuto da Petrobras prevê como responsabilidade desse colegiado: enquanto a diretoria é a responsável por definir preços, o conselho os fiscaliza. E está sendo capaz, ao menos até agora, de segurar a pressão do governo por possíveis congelamentos de preços de combustíveis, como manda o figurino.
A atuação também é respaldada pela Lei das S.A., especialmente no que dispõe o artigo 142 sobre a responsabilidade fixar orientação geral aos negócios da companhia. A ele, soma-se o artigo 155, que aborda o dever de lealdade do administrador da companhia à empresa e o artigo 158, de olho na responsabilidade civil dos mesmos quando causarem prejuízos.
“O maçarico está em cima do conselheiro. Ele vai pensar 10 mil vezes antes de fazer alguma coisa que vá implicar na existência de uma class action ou ação de responsabilidade no Brasil”, diz Mattos Filho.
Falando em mercado, o movimento atual do governo de alterar a Lei das Estatais coloca em xeque não somente o que vai acontecer com a Petrobras mas também a capacidade de a própria população confiar em futuras privatizações que aconteçam sob os mesmos moldes. Tira, em certa medida, o respaldo de que é possível investir o próprio FGTS em estatais que forem privatizadas e que terão uma gestão altamente profissional. É essa população — inclusive mais do que investidores internacionais — a mais atingida em caso de mudanças que visem ao déficit da companhia, como parece ser o caso da vez. Não custa lembrar que, hoje, o governo tem apenas 28,7% do capital social da companhia (ou 36,6%, se somados os percentuais do BNDES/BNDESPar). Números capazes de mostrar que o argumento de que “o petróleo é nosso” perde ainda mais força.
Ainda em relação às consequências para a população brasileira, caso as mudanças sejam realizadas como de fato o governo quer e isso acarrete em problemas para a empresa — processos, por exemplo — quem responde sobre elas é o acionista controlador da companhia, como dispõe o artigo 246 da Lei das S.A. O acionista controlador não é o presidente da república, mas a União Federal.
Diante de todo esse cenário, a conclusão é clara: a missão do conselho permanece inalterada, mas pode sofrer abalos de acordo com o que a lei propõe. Usar a Petrobras para conter processos inflacionários é fugir à missão da companhia e que traz, como principal prejuízo, não apenas perdas de mercado para investidores internacionais, mas uma visão cada vez mais e mais degradada sobre o próprio Brasil.
As conquistas obtidas para governança da Petrobras após a Lava-Jato desvendar os desmandos no negócio — maior independência do conselho, limites para indicações políticas, e regras claras sobre o que compete à diretoria e o que ao colegiado — estão sob ataque. E, nesse contexto, ameaçadas. O drama maior é que é, junto com elas, a confiança no país. Junto à confiança, por sua vez, vão o câmbio e o risco Brasil. Para a população, há mais riscos do que soluções no front, até o momento.
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