Digitalização e disciplina financeira: a receita da C&A para dar a volta por cima
De patinho feio a estrela do setor na Bolsa, varejista investe em dados e peças “versáteis” atravessar para cenário adverso para o varejo, diz o CEO Paulo Correa
Publicado em 28 de dezembro de 2023 às 10:03.
Última atualização em 28 de dezembro de 2023 às 10:19.
Quando decidiu fazer seu IPO no fim de 2019, a C&A encerrou décadas de mistério. A varejista holandesa centenária, que tem no Brasil seu segundo maior mercado, era conhecida por guardar seus números a sete chaves e pela postura no profile – os executivos apareciam pouco em eventos e não davam entrevistas.
Quatro anos e uma pandemia que castigou o varejo depois, a companhia se tornou a protagonista do segmento de moda na Bolsa brasileira em 2023, com alta de mais de 250% nas ações no acumulado de um ano complicado para o setor.
Enquanto as concorrentes vêm sofrendo com vendas estagnadas e queda na rentabilidade, a C&A entregou uma alta de 6,5% nas receitas com vestuário nos nove primeiros meses frente ao mesmo período do ano passado e aumento de 5,6% nas vendas ‘mesmas lojas’, abertas há mais de 12 meses.
No terceiro trimestre, o avanço foi mais impressionante. Tanto faturamento quanto vendas mesmas lojas subiram mais de 12%, acompanhados de aumento tanto de margem bruta, que sobe há sete trimestres, quanto de margem EBITDA.
“Ainda não capturamos 100% dos impactos dos investimentos que fizemos e ao mesmo tempo estamos criando novas alavancas para continuar nesse ritmo daqui para a frente. A jornada só começou. Ainda temos bastante espaço para ganhar nas duas margens”, afirma o CEO da C&A, Paulo Correa.
Prestes a completar 20 anos de C&A, o executivo, que está no comando da empresa há oito, afirma que não houve bala de prata. E que a companhia apenas está entregando o plano que apresentou no IPO, baseado em quatro pilares: digitalização, recuperação da capacidade de dar crédito, modernização dos sistemas de distribuição e expansão das lojas.
“Não tivemos nem um trimestre de resultados completos antes de a pandemia começar. Postergamos algumas coisas, ajustamos o ritmo, mas a direção foi sempre a mesma. O mercado não dava o benefício da dúvida, até por conta de todo o cenário, mas agora os resultados estão aparecendo", aponta.
Apesar de terem mais que triplicado este ano, as ações da C&A ainda negociam por volta dos R$ 7,90, menos da metade dos R$ 16,50 da estreia na B3.
Boa parte do desempenho mais recente da empresa é fruto da sua estratégia de digitalização. O canal digital, que antes do IPO basicamente se resumia ao site e representava 2% das vendas, chegou a 16% da receita – juntando agora e-commerce, app e vendas por WhatsApp.
Mas, muito além do canal de vendas, uso de dados vem permeando toda a estratégia da C&A. A empresa revisou toda a sua estrutura de dados, integrando bases que estavam separadas, como o do programa de fidelidade C&A e VC, a parceria que tinha com o Bradesco em cartões, dados de clientes que compravam pelo ecommerce e até quem comprava dando apenas o CPF.
“Fizemos uma super base dados, organizamos todas as informações isso virou um mega ativo”, diz Correa.
O movimento permitiu mais assertividade no crédito. Em 2021, a C&A comprou o direito que o Bradesco, seu parceiro desde 2009, tinha para emissão de seus cartões e lançou o C&A Pay, seu cartão de crédito digital.
Partindo da sua base de dados, a companhia consegue dar crédito mais rápido – e conhecendo o histórico do cliente. A oferta de cartão é feita direto no caixa, para quem já iria fazer uma compra usando outro meio de pagamento. A análise de crédito é feita na hora e o crédito liberado em poucos minutos. Hoje, 22% das vendas C&A já são transacionadas pelo C&A Pay, com uma taxa de inadimplência “em linha com o mercado”, diz o CEO.
“O que muita gente não nota é que isso é uma rampa [descendente]: quando começamos, temos um nível de inadimplência maior para depois ele ficar menor na medida que a carteira vai atingindo a maturidade. A performance futura vai ser melhor que essa foto”, afirma.
Outro investimento crucial veio no modelo de distribuição chamado de push and pull, um gap que a C&A tinha em relação a seus concorrentes. Ao contrário do modelo tradicional, em que as fabricantes despacham produtos em pacotes fechados para as lojas, no push and pull é possível ter a visão de que produto específico, considerando cor e tamanho, está tendo mais saída em cada loja e enviá-lo de forma personalizada para cada unidade. É uma forma de evitar tanto a perda de venda por falta de produto, quanto encalhe de estoque.
“O push and pull deu muito mais assertividade do que estava distribuindo. A gente começou a ter algumas aplicações de analytics já começando a despontar e pilotos nesse sentido para conseguir, de fato, fazer previsões de demanda mais assertivas”, conta Correa.
O modelo já responde por 40% das vendas, que era a meta da empresa para este ano – e deve seguir avançando.
Disciplina de capital
A disciplina de capital da empresa nos últimos anos é um dos pontos mais elogiados pelos investidores. “A companhia sempre foi muito certinha e nunca foi gastadeira. Sabe tocar quando as coisas estão ruins e tem capacidade de segurar investimentos quando preciso”, diz um gestor que acompanha os papéis.
Atropelada pelo coronavírus, os investimentos mais robustos começaram em 2021, totalizando R$ 700 milhões, o dobro do pré-pandemia. No ano seguinte, com a disparada dos juros, a C&A colocou o pé no freio e cortou sua dívida líquida, hoje em R$ 601 milhões, pela metade.
Um dos trabalhos de contenção de despesas se concentrou na redução do estoque, para melhorar o capital de giro. “Caixa é mais rei do que nunca. Já tínhamos o menor estoque da indústria e estendemos o prazo de pagamento a fornecedores”, explica.
A redução da Selic e a melhora no cenário macroeconômico prevista para 2024 devem der um bom vento de cauda para a empresa, afirma Correa. Ao mesmo tempo, o crescimento da receita deve se refletir numa alavancagem operacional, com aumento do EBITDA, que hoje ainda está abaixo dos pares.
Porém, com o patamar de juros ainda elevado, o executivo não vê espaço para uma expansão mais agressiva de lojas. Desde 2019, a empresa abriu 50 lojas, bastante abaixo dos 150 previstos durante o IPO.
“Continuamos vendo potencial para 100 novas lojas, mas a expansão não é uma prioridade nesse momento por conta do nível de retorno que ela traz no curto prazo”, diz. Com forte presença no Rio e em São Paulo, bem como no Nordeste, a C&A vê uma subpenetração em relação aos concorrentes no Centro-Oeste e no Sul.
Efeito Shein
Enquanto os concorrentes se veem às voltas com a concorrência das plataformas internacionais à la Shein, a C&A minimiza um pouco este efeito.
“Não sei exatamente quanto essas plataformas estão crescendo. O que sei é que estamos ganhando share, apesar das plataformas. Temos que continuar crescendo e focados no nosso trabalho, na nossa evolução”, afirma.
Apesar disso, ele cobra isonomia tributária. “É uma competição desleal. Ponto. Não tenho problema com concorrência, só que precisa ter a mesma regra para todo mundo.”
Num mundo com o fast-fashion se tornando cada vez mais fast, a C&A vem trabalhando com um tempo menor entre coleções. O movimento começou ainda em 2018, com o lançamento da Mindset, voltada para capturar as tendências de streetwear.
“Chegamos com um desafio para os fornecedores: queríamos 30 dias entre a concepção das peças e a chegada delas nas lojas e no site. Esse prazo era de 120 dias”, conta. O modelo vingou e hoje o modo ‘Mindset’ se estendeu para toda a C&A, com reduções de prazos – ainda que em menor proporção – também para as coleções tradicionais.
Ao mesmo tempo, a companhia vem apostando em peças mais “versáteis”, que sirvam em várias situações de uso, para abarcar uma consumidora que vê cada vez mais as peças como “investimentos”. “Se a peça é mais atemporal, você consegue precificar melhor”, diz. Nas gôndolas e na Bolsa, a aposta da C&A é no longo prazo.
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Natalia Viri
Editora do EXAME INJornalista com mais de 15 anos de experiência na cobertura de negócios e finanças. Passou pelas redações de Valor, Veja e Brazil Journal e foi cofundadora do Reset, um portal dedicado a ESG e à nova economia.
Raquel Brandão
Repórter Exame INJornalista há mais de uma década, foi do Estadão, passando pela coluna do comentarista Celso Ming. Também foi repórter de empresas e bens de consumo no Valor Econômico. Na Exame desde 2022, cobre companhias abertas e bastidores do mercado