Americanas: “temos uma montanha para escalar” para voltar ao azul, diz CFO
Um ano após rombo bilionário, Camille Faria traça metas para a nova fase pós-RJ
Publicado em 15 de janeiro de 2024 às 11:04.
Última atualização em 15 de janeiro de 2024 às 15:55.
Um ano depois da revelação que gerou a pior crise do varejo brasileiro, a Americanas toma fôlego para superar o episódio que fez a empresa quase centenária ter de mudar o rumo. A direção executiva da companhia espera homologar entre o fim deste mês e o começo de fevereiro o plano de recuperação judicial aprovado com ampla maioria em 19 de dezembro, dando fim à dívida de R$ 42,5 bilhões gerada após a descoberta de R$ 25 bilhões em fraudes contábeis.
Quando a crise foi deflagrada, o entendimento era de que se tratava de inconsistências contábeis, que afetavam basicamente a estrutura de capital. “Aprofundando, percebemos que era uma fraude de resultado, que escondia resultados insuficientes”, diz Camille Faria, CFO da Americanas, em entrevista para o Exame Insight. Por isso, foram duas frentes de trabalho: fortalecer a estrutura de capital e fazer um turnaround operacional.
Depois de indas e vindas, os bancos credores aceitaram se juntar aos acionistas de referência, Jorge Paulo Lemann, Beto Sicupira e Marcel Telles, para capitalizar a empresa em R$ 24 bilhões, no total. O trio 3G vai fazer um aumento de R$ 12 bilhões, os quais já incluem o financiamento debtor-in-possession (DIP). Desse valor, R$ 1,5 bilhão já foram aplicados e outros R$ 3,5 bilhões devem ser antecipados para 15 dias após a homologação do plano, dando um respiro de caixa para a empresa manter suas operações.
A companhia vai fazer uma nova emissão de debêntures da companhia no valor de R$ 1,87 bilhão, que vai ser o patamar de dívida da Americanas a partir daí. O grande desafio, contudo, é conseguir voltar a acessar linhas de crédito para voltar a operar em condições mais normais de temperatura e pressão.
Nesse sentido, a companhia conseguir amarrar três fontes firmes de financiamento dentro do plano de recuperação judicial. Uma delas é o ganho de prazo médio de 70 dias para pagamento dos fornecedores, que desde o estouro da crise são pagos à vista – o que deve dar um fôlego importante em termos de capital de giro. Ainda é bastante longe dos mais de 100 dias com que a Americanas – conhecida pela postura dura em relação aos fornecedores antes da fraude – operava.
Outra tem a ver com o compromisso dos bancos credores para extensão de linha de crédito, na ordem de R$ 1,38 bilhão, essencialmente na forma de fianças para garantir os processos tributários da companhia. “Temos um histórico bastante positivo nesses questionamentos tributários, mas é preciso apresentar garantias para que eles não sejam executados”, diz a CFO.
O plano também amarra um compromisso de R$ 1,5 bilhão em antecipação de recebíveis – em que os financiadores topam essencialmente o risco do fornecedor e não da varejista. O risco sacado, instrumento comum no varejo, mas que foi um dos principais artifícios para a fraude perpetrada na empresa, já não é uma opção para a companhia nessa nova fase, garante a diretora.
Resolvida a questão do passivo, vem a árdua tarefa de recuperar a operação. “Ainda estamos no início do trabalho, temos uma montanha para escalar”, diz ela. Com um resultado “ainda bastante negativo”, nas palavras da diretora, como reflexo dos impactos da crise e da recuperação judicial, a varejista mira em 2025, quando espera voltar ao azul e gerar um Ebitda (resultado antes de juros, impostos, depreciação e amortização) recorrente de R$ 2,2 bilhões.
Como mostraram os balanços reapresentados, a Americanas terminou 2022 com um prejuízo líquido de R$ 12,9 bilhões e Ebitda negativo em R$ 6,2 bilhões. Os números de 2023 ainda não foram publicados, mas a divulgação está prevista para o fim de janeiro – uma promessa feita por Faria aos credores no dia da assembleia de aprovação do plano da RJ.
Tanto do lado dos passivos quanto do lado da operação, a Americanas deve emergir da RJ com um balanço bem mais leve. A crise atingiu os canais da varejista de formas distintas. Com itens de menor tíquete-médio e entrega no ato da compra, o varejo físico se mostrou “muito resiliente”, de acordo com Faria. “Tivemos apoio dos fornecedores desde o início, sem falta de abastecimento. Naturalmente, o que mudou foi o pagamento à vista.”
Ainda segundo Faria, o consumidor manteve uma demanda firme pela relação com a marca e o interesse em “ver a Americanas saindo dessa”: em julho, uma pesquisa contratada pela companhia indicou que 91% dos consumidores achavam que a Americanas merecia superar a crise. "Sentimos isso na Páscoa, no Natal e agora na Volta às Aulas.”
Já o digital sofreu mais. No primeiro momento, o cliente teve receio de comprar e não receber, além de ser um canal de tíquete mais alto. Mas o impacto também passou pela mudança necessária de estratégia da empresa pós-crise. “O que aconteceu no digital também foi um movimento de perceber que o consumo de caixa do 1P (venda direta) era desproporcional com o novo momento da empresa. Teve uma priorização em que se replica o sortimento do físico para o online e também do 3P (marketplace), com os sellers que completam nosso portfólio, numa espécie de prateleira infinita”, conta Faria.
Com isso, a principal aposta da Americanas até 2022 e origem da crise da varejista foi perdendo market share. Até antes do rombo ser descoberto, em 11 de janeiro de 2023, a Americanas detinha quase 5% das vendas do varejo online brasileiro – um número que era representativo dada a pulverização do setor. Os dados da SimilarWeb apontavam que Magazine Luiza detinha 5,4% e Casas Bahia, 3%. Em franco crescimento, o Mercado Livre era líder com pouco mais de 12%. Em entrevistas recentes à Exame, executivos de todas as companhias, em especial Magalu e Meli, afirmam ter percebido ganho de participação de mercado após o episódio. Hoje, segundo o SimilarWeb, o Mercado Livre é o e-commerce mais acessado, seguido de Amazon e Magazine Luiza.
“Estamos com movimento muito grande de migrar até mesmo as grandes marcas para o 3P. Então teve um impacto grande no digital. Isso quer dizer queda em receita, mas não em rentabilidade, porque como a gente queimava caixa. A gente melhora o Ebitda ao fazer esse movimento”, argumenta Faria.
Esse reposicionamento, ainda em processo, não significou, garante a CFO, mudança de política com os sellers, a não ser pelo repasse do dinheiro das vendas na plataforma que passou de 15 dias para a mesma semana da transação. “Não mudamos o take rate, não demos mais desconto. Estamos em RJ e não podemos abrir mão da rentabilidade porque não temos dinheiro para queimar.” Além disso, diz ela, há um forte trabalho de disciplina de custos em andamento. “Estamos olhando tudo: logística, TI, revendo contrato e renegociando preço. Revendo realmente tudo para o novo modelo operacional.”
Costura complexa
Faria foi anunciada como diretora financeira da companhia seis dias depois do comunicado que revelou o rombo financeiro e anunciou a renúncia de Sergio Rial e André Covre, que tinham acabado de chegar como novos CEO e CFO, respectivamente. Vinda da TIM, Faria era um nome forte para a missão: de 2019 a 2021 tocou a direção financeira da Oi, quando a operadora estava em sua primeira recuperação judicial.
Durante todo o ano de 2023, ela e Leonardo Coelho, que assumiu a presidência executiva da companhia vindo da Alvarez & Marsal (empresa contratada pela Americanas para atuar na reestruturação), trabalharam na costura do acordo entre a empresa, os acionistas de referência e os bancos, que respondiam por mais de 85% da dívida. “Nessa recuperação judicial, a empresa era uma varejista, ‘asset light’, mas com acionistas de referência, que deram muito apoio”, observa Faria, comentando as diferenças em relação à RJ da Oi.
Ainda assim, não foi tarefa fácil. Até a proposta final aprovada por credores, que representavam 97,19% dos créditos, foram diversos encontros de negociação e ações na Justiça, como a do banco Safra, que até dois dias antes pedia o cancelamento da assembleia de credores.
Depois da capitalização pelo trio 3G e os bancos credores, e considerando que acionistas atuais não exerçam direito de preferência, os sócios de referência passarão de 30,1% para 49,3%. Os outros devem ficar 48,2%.
Como a conversão de ações de cada banco credor dependerá do volume de adesão ao leilão reverso da dívida -- para o qual a empresa reservou o limite de R$ 2 bilhões -- ainda não é possível determinar exatamente qual será a composição acionária dessa nova Americanas. A oferta de ações virá com bônus de subscrição, na relação de três bônus de subscrição para cada ação.
Quem converter dívida em equity também terá um lock up (uma obrigação para a permanência na base acionária) de três anos. A liberação para negociar esses papéis virá parcialmente, mas os bancos podem já vender 50% de suas ações já no dia seguinte e 5% a cada semestre, considerando os bônus de subscrição, uma vez que a expectativa do mercado é subscrição na totalidade.
Todo esforço de fortalecer caixa também é importante para a companhia não ter de vender alguns de seus ativos em condições desfavoráveis. Com o desinvestimento previsto no plano, a Uni.co, dona da Pucket e da Imaginarium, e o Hortifruti Natural da Terra tiveram seus processos de venda suspensos, ao menos temporariamente. “A decisão continua sendo de desinvestimento, mas no momento correto e pelo preço correto. Não temos pressa.”
Prestes a iniciar essa nova etapa, a Americanas tem hoje 1759 lojas, o que corresponde a 93% do período anterior à recuperação judicial. Os números do último relatório mensal do administrador judicial mostram que a empresa tinha R$ 1,55 bilhão em caixa em novembro. Já o valor de mercado não chega a R$ 747 milhões, bem abaixo dos quase R$ 11 bilhões pré-crise. A ação da Americanas é negociada hoje a R$ 0,82.
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Raquel Brandão
Repórter Exame INJornalista há mais de uma década, foi do Estadão, passando pela coluna do comentarista Celso Ming. Também foi repórter de empresas e bens de consumo no Valor Econômico. Na Exame desde 2022, cobre companhias abertas e bastidores do mercado
Natalia Viri
Editora do EXAME INJornalista com mais de 15 anos de experiência na cobertura de negócios e finanças. Passou pelas redações de Valor, Veja e Brazil Journal e foi cofundadora do Reset, um portal dedicado a ESG e à nova economia.