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Bitcoin e El Salvador: casamento perfeito ou desastre anunciado?

'Lei Bitcoin' de El Salvador é prova de fogo para o principal criptoativo do mercado e um dos experimentos mais importantes com a tecnologia até agora

El Salvador foi o primeiro país a adotar o bitcoin como moeda de curso legal (Anadolu Agency / Colaborador/Getty Images)

El Salvador foi o primeiro país a adotar o bitcoin como moeda de curso legal (Anadolu Agency / Colaborador/Getty Images)

Bitcoin com curso forçado, mineração com energia proveniente de vulcões, desbancarizados e internet via satélite. O que esses quatro elementos têm em comum? Ora, todos eles são parte da nova realidade de El Salvador.

Foi em meio à calmaria depois da tempestade que levou os preços do criptoativo a passarem por uma correção de mais de 50%, que o jovem presidente do país centro-americano, Nayib Bukele, anunciou que tornará o bitcoin a moeda de curso forçado no país. Em outras palavras, indivíduos e estabelecimentos comerciais serão obrigados, por lei, a aceitá-lo como meio de pagamento por lá.

A proposta, que tramitou no congresso salvadorenho por menos de 24 horas, foi aprovada com 62 votos a favor, de um total de 84. A partir da data de aprovação, a população terá 90 dias para se preparar para a mudança. Trocando em miúdos, o bitcoin passa a circular como moeda na região, efetivamente, em setembro de 2021 (desde que não haja alterações no cronograma).

Mas Bukele não parou por aí. Poucos dias após anunciar a “Lei Bitcoin”, o presidente informou que está estudando formas viáveis de minerar bitcoin utilizando geotérmicas, isto é, com energia proveniente de vulcões (que, diferente do imaginário coletivo, não vem da lava, mas sim do vapor d’água).


Loucura? Só o tempo dirá, mas que essa parece ser uma bela prova de fogo para o principal criptoativo do mercado e um dos experimentos mais importantes com a tecnologia, não resta dúvidas.

Um breve panorama sobre o país

Apesar de estar genuinamente entusiasmado com a possibilidade da implementação do bitcoin como moeda de curso legal em El Salvador, é preciso ser pragmático no entendimento da viabilidade dessa implementação. Para tanto, alguns elementos precisam ser levados em consideração.

Em primeiro lugar, é fundamental notar que o país abandonou a sua moeda nacional, o colón salvadorenho, em 2001 e, desde então, utiliza o dólar americano como moeda de curso legal na economia. Isso significa que, desde então, o governo renunciou ao controle de sua política monetária e se tornou uma economia totalmente dolarizada.

Soma-se a isso o fato de, até 2017, o país contar com impressionantes 70% da população adulta sendo desbancarizada. O que melhor, nesse caso, do que um sistema de dinheiro que pode facilitar a movimentação de recursos tanto dentro como fora do país? Afinal, 20% do PIB de El Salvador é proveniente de remessas internacionais, que é majoritariamente proveniente dos EUA.

Nesse sentido, a adoção do bitcoin, um ativo cuja concepção inicial era justamente ser uma moeda sem governo, transfronteiriça e com livre mobilidade global, me parece ser um casamento perfeito.

Ainda assim, é preciso também avaliar o número de indivíduos com acesso à internet na região. Afinal, esse é o principal canal utilizado para a transmissão de informações para o blockchain do bitcoin. Segundo dados da Internet World Stats, até março deste ano, havia aproximadamente 4,5 milhões de usuários de internet no país, ou seja, 68,3% da população.

Dado que cerca de 99,2% dos acessos às mídias sociais por lá era proveniente de dispositivos móveis, podemos assumir que a maioria dos acessos à internet no país é feita por esse meio. Indo além, a velocidade média de navegação de dispositivos móveis na região é de 23 Mbps, valor superior, nas Américas, aos da Bolívia, Panamá, Paraguai, Chile, Colômbia e Venezuela.

Em outras palavras, apesar de não ser a internet mais rápida do mundo, a velocidade na região parece atender bem os requisitos mínimos para o envio de informações para o blockchain do bitcoin, bem como para receber informações provenientes da rede.

De qualquer forma, ainda resta cerca de 32% da população que não possui acesso a internet, a maioria em regiões rurais. Esse é justamente um dos desafios que deverá ser enfrentado pelo presidente para que se viabilize pagamentos com o bitcoin. Para tanto, Bukele anunciou que pretende construir uma rede de satélites para oferecer uma melhor infraestrutura de acesso à internet, movimento que pode levar algum tempo para se concretizar.

Há também o desafio de educar a população. Nesse sentido, também há um comprometimento do governo para auxiliar a população no processo de transacionalidade do ativo, ou seja, assegurar que haja facilidade no processo de conversão de bitcoin para dólares.

Mais do que isso, não podemos deixar de considerar os impactos que a implementação trará para a estrutura orçamentária do governo salvadorenho e a eventual socialização dos custos da nova implementação tecnológica, como adequação dos sistemas de pagamento e melhoria da infraestrutura informática do país.

Repercussão com os órgãos internacionais

Vale notar também que, em março deste ano, o governo de El Salvador iniciou as conversas com o Fundo Monetário Internacional (FMI) para buscar um financiamento de cerca de US$1,3 bilhão para auxiliar o país com a estabilização das contas públicas. Ocorre que, após a aprovação da Lei Bitcoin, um porta-voz do FMI demonstrou preocupação com o movimento ousado realizado pelo presidente e suas repercussões macroeconômicas.

Numa linha semelhante, o Banco Mundial rejeitou o pedido do governo do país centro-americano de auxílio técnico na implementação do criptoativo como tecnologia de pagamento no país, alegando preocupações com questões ambientais e de transparência.

Ora, seria essa preocupação com o meio ambiente e com a transparência um sentimento genuíno?

Essa me parece uma daquelas perguntas cuja resposta é mais complicada do que parece. Até porque, boa parte das nações que integram o FMI estão entre as que mais consomem petróleo e que possuem a maior emissão de dióxido de carbono no mundo. Como a não utilização do bitcoin auxiliaria tais nações a reduzirem o impacto ambiental?

Sem me aprofundar muito aqui, me parece muito mais uma questão ligada a controle monetário do que uma preocupação genuína com o meio ambiente ou com a transparência financeira (vale lembrar que os registros de transações feitos com o bitcoin são públicos).

É natural imaginarmos que as duas organizações adotem tal postura. Afinal, ambas representam, em sua essência, o sistema legado de finanças, que estende a mão para práticas inescrupulosas de juros negativos ao passo que negam auxílio a um país que busca viabilizar, na prática, um experimento monetário com o intuito de atrair investimento estrangeiro direto.

Na contramão, o Banco Centroamericano de Integração Econômica (BCIE), órgão financeiro internacional que visa combater a pobreza e apoiar ações de desenvolvimento econômico, declarou que auxiliará El Salvador com a implementação do ativo como meio de pagamento.

Fossem somente os desafios da economia local a serem enfrentados pelo país para a implementação do bitcoin como meio de pagamento, esse texto se encerraria por aqui. Mas há mais para ser discutido. Em especial, no que diz respeito à capacidade técnica do bitcoin de absorver a economia de um país.

Entendendo a viabilidade técnica da implementação salvadorenha

Pensando que o bitcoin ainda não é uma das redes com maior capacidade de processamento de transações por segundo, a preocupação com a viabilidade técnica é algo genuíno. Atualmente, a rede tem capacidade de processar algo em torno de 6 a 7 transações por segundo. Esse é um valor irrisório quando comparado com o total de movimentações feitas por um país.

Uma das formas que esse problema pode ser endereçado é recorrer às soluções de segunda camada, como a lightning network (LN), que faz uso de canais diretos entre os nós para efetuar transações entre as partes e somente efetua o registro uma vez que o canal é fechado. Em outras palavras, essa solução utiliza o blockchain do bitcoin como um mecanismo de compensações finais.

Outra solução possível, defendida por Hal Finney ainda em 2010, seria utilizar o bitcoin como uma moeda de reserva para instituições bancárias e de pagamento, usando esse mesmo conceito de rede de compensações finais.

Dessa forma, uma grande processadora de pagamentos, como a VISA por exemplo, que tem a capacidade de processar dezenas de milhares de transações por segundo, poderia processar transações numa segunda camada e, ao final de cada dia, efetuar os registros finais no livro-razão descentralizado do bitcoin.

Ao que tudo indica (ou pelo menos ao que indica o tuíte do presidente), num primeiro momento o governo de El Salvador deve se apoiar na infraestrutura da lightning. Afinal, a tecnologia já está pronta para ser utilizada.


É justamente por isso que, no final das contas, o caso será também uma prova de fogo para o bitcoin. Esse será, provavelmente, o maior teste de estresse pelo qual a rede já passou em sua curta história.

Considerações finais

Ainda que reconheça que a implementação do bitcoin em El Salvador não será trivial, tampouco livre de riscos, acredito fortemente que a experiência pode se mostrar valiosa para todos os envolvidos.

Se, por um lado, há o desafio de implementação por conta das características do país, por outro a empreitada pode trazer modernização para o setor de energia do país, além de acelerar o processo de transformação digital em regiões atualmente pouco conectadas.

Mais do que isso, há grandes chances de o movimento feito por Bukele atrair capital novo, seja por meio dos especuladores, que buscarão a redução da incidência de ganho de capital em suas operações, ou com empresas de criptoativos, que podem encontrar na nação centro-americana uma jurisdição amigável para o desenvolvimento de seus produtos e serviços.

Portanto, um impacto no investimento direto gerado pela nova lei, no comparativo anual, já representaria um saldo positivo. O resultado seria uma quantidade de dinheiro maior circulando domesticamente e uma arrecadação de tributos sobre a atividade de tais empresas que poderia favorecer o desenvolvimento local.

Do outro lado, a rede do bitcoin deve se beneficiar com a classificação do ativo como moeda de curso legal, reacendendo o debate sobre o seu enquadramento jurídico e com a aceleração da pesquisa e desenvolvimento de soluções que melhorem a capacidade de processamento de transações na rede (ou fora dela). Mesmo porque, após a Lei Bitcoin de El Salvador, outros países já demonstraram interesse em implementar o principal criptoativo do mercado como meio de pagamento em suas economias.

Não há dúvidas que o experimento será acompanhado de perto por entusiastas de todo o mundo e de que esse pode ser um ponto de inflexão na adoção do bitcoin como meio de pagamento. O que nos resta é acompanhar a evolução das coisas por lá bem de perto.

*Nicholas Sacchi é head de Pesquisa e Conteúdo do BTG Digital Assets

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