Brasil aprovou Lei das Criptomoedas em 2022 (the-lightwriter/Getty Images)
Repórter do Future of Money
Publicado em 30 de maio de 2023 às 09h15.
Última atualização em 20 de junho de 2023 às 10h23.
O Brasil se tornou um dos primeiros países do mundo a ter uma regulamentação específica para criptomoedas ao aprovar e sancionar em 2022 um marco legal para o segmento. A Lei das Criptomoedas foi sancionada em dezembro, mas as medidas trazidas por ela entrarão em vigor oficialmente no mês de junho, após um período de seis meses para adaptações do setor.
Com isso, as empresas que atuam no setor cripto brasileiro poderão sofrer punições caso não se adequem aos elementos da nova lei. Entretanto, isso não significa que a regulamentação de criptomoedas acabou no Brasil, pelo contrário. Agora, haverá uma etapa de regulamentação infralegal, com o estabelecimento de normas específicas para o setor que serão definidas pelo Banco Central, escolhido como regulador por meio de um decreto do governo federal.
Publicado uma semana antes da lei entrar em vigor, o decreto evita quediversos pontos da lei tenham pouco efeito prático, na avaliação de especialistas para a EXAME. Ao mesmo tempo, diversos pontos ligados ao segmento acabaram ficando de fora da nova lei, mostrando a necessidade da continuidade de discussões sobre como regular o segmento, e quais aspectos dele devem, ou não, exigir projetos específicos.
A Lei das Criptomoedas entrará em vigor no dia 20 de junho. Na prática, isso significa que as medidas contidas nela passarão oficialmente a valer, encerrando o período de adaptação de seis meses que o setor tinha, um elemento tradicional em projetos do tipo. Nicole Dyskant, advogada especialista em regulação e compliance para ativos digitais, ressalta que a lei "é positiva no sentido de tirar uma zona nebulosa de que cripto não é regulado no Brasil".
"Isso já não era verdade, tínhamos regulações da Receita, orientações da CVM, mas a lei é importante por ser um marco legal. É uma regulação para as prestadoras de serviços de ativos digitais", explica a advogada. Já Tatiana Mello Guazzelli, sócia do Pinheiro Neto Advogados, vê a regulamentação como um "primeiro passo importante para dar mais segurança ao mercado de criptoativos". "De forma acertada, ela foca em conceitos, princípios e diretrizes que deverão nortear esse mercado", comenta a especialista. A lei dá poderes para o Banco Central "estabelecer as regras específicas para esse mercado".
O principal objetivo do Marco Legal das Criptomoedas é combater a prática de crimes com criptoativos, incluindo lavagem de dinheiro, e criar mecanismos de proteção aos investidores ao aumentar o escrutínio em relação às empresas que atuam no setor. Especialistas também ressaltam que ela trará mais segurança jurídica para o setor, atualmente em expansão no Brasil.
A lei estabelece que um ativo virtual passa a ser considerado uma "representação digital de valor que pode ser negociada ou transferida por meios eletrônicos e utilizada para realização de pagamentos ou com propósito de investimento".
O texto aprovado acrescenta, no Código Penal, um novo tipo de estelionato ligado a criptomoedas, atribuindo reclusão de 4 a 8 anos e multa para quem "organizar, gerir, ofertar ou distribuir carteiras ou intermediar operações envolvendo ativos virtuais, valores mobiliários ou quaisquer ativos financeiros com o fim de obter vantagem ilícita em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento".
Já as empresas ligadas a criptomoedas também deverão compartilhar um número maior de informações com órgãos do governo e precisarão de uma autorização para exercer as atividades no Brasil. Dyskant avalia que a lei também tem um "efeito moral" ao "ter uma identificação específica com cripto em casos de pirâmide, fraudes nessa área. Isso afasta defesas, teses jurídicas mais elaboradas. Tínhamos princípios básicos de crimes que poderiam aplicar, mas é algo a mais".
Entre as medidas que as empresas precisarão seguir estarão regras mais rígidas de coleta de informações de clientes, e a verificação das mesmas, mais clareza sobre transações e fornecedores, além de regras de governança e avaliação de riscos. A ideia é inibir atividades como de lavagem de dinheiro, segundo Dyskant.
Ao mesmo tempo, as especialistas avaliam que a lei perderia força sem a publicação do decreto com a etapa de regulação infralegal, que ficará sob responsabilidade do Banco Central. "Sem esse decreto, não teríamos a designação da autoridade que será responsável por regulamentar as prestadoras de serviços de ativos virtuais. Enquanto não tivermos uma regulamentação infralegal, o efeito da nova lei fica limitado. Apenas como exemplos, sem uma regulamentação, não há como se exigir autorização para funcionamento das prestadoras de serviços de ativos virtuais ou implementar as comunicações de operações suspeitas ao Coaf", comenta Guazzelli.
Já Dyskant avalia que seria um "desserviço" o Marco Legal das Criptomoedas entrar em vigor sem o seu decreto correspondente. A demora na publicação do decreto, porém, corre o risco de atrasar todo o processo de divulgação de regulamentações mais específicas para o setor a partir da determinação do órgão responsável por isso. Como esperado, o decreto manteve a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) responsável pela regulação de criptoativos considerados valores mobiliários.
Um ponto que gerou críticas por parte de especialistas foi a retirada no projeto da Lei das Criptomoedas da necessidade das corretoras realizarem a segregação patrimonial, separando os seus ativos dos fundos de clientes. A medida, considerada importante para reduzir prejuízos em casos como a falência da FTX, chegou a ser incluída no Senado, mas foi retirada na Câmara.
Tatiana Mello Guazzelli avalio que a segregação "propiciaria uma maior segurança a esse mercado". Nesse sentido, ela acredita que a regulamentação infralegal - sob responsabilidade do Banco Central - "buscará trazer uma maior proteção para os ativos mantidos por clientes nas exchanges, tanto em relação aos criptoativos quanto aos recursos em reais que geralmente os clientes transferem para as exchanges para a compra de criptoativos e ficam lá mantidos enquanto essa compra não é concluída ou, ainda, quando vendem criptoativos e não retiram os recursos da exchange".
Como não há previsão legal no momento, ela acredita que o BC não poderia exigir uma segregação patrimonial semelhante à das instituições de pagamento, precisando de uma lei específica sobre o tema. Entretanto, "seria possível criar algumas regras infralegais para proteger esses ativos, tais como regras contábeis ou vedação de as exchanges utilizarem esses ativos para determinados fins, como, por exemplo, determinar que uma exchange não pode dar os criptoativos detidos por conta e ordem de seus clientes em garantia de obrigações assumidas pela exchange.
"De toda forma, eu não descartaria a possibilidade da segregação patrimonial ainda ser abordada em uma lei separada", avalia a especialista. Já Dyskant acredita que pode ser possível incluir o tema na etapa de regulação infralegal. A expectativa dela é que a exigência seja semelhante à imposta para meios de pagamento, mas o Banco Central ainda avalia se já tem respaldo legal para entrar no tema.
Apesar dos seus aspectos positivos, Guazzelli avalia que o Marco Legal das Criptomoedas também possui pontos negativos. Um deles é que "faltou um pouco de clareza na definição dos requisitos para uma prestadora de serviços de ativos virtuais ser considerada como 'em atividade' e, portanto, poder continuar operando enquanto se adequa às disposições da nova lei e da regulamentação a ser estabelecida". Ao mesmo tempo, ela observa que "não são tantos os países que já regulamentam o uso de criptomoedas. Com a Lei 14.478, de 2022, o Brasil de destaca então entre esses países".
Nicole Dyskant afirma que a lei acabou sendo "muito principiológica, básica", em especial em comparação a uma regulamentação posterior, o MiCA, que está na fase final para sua aprovação na União Europeia. Para ela, a lei "poderia ser mais esclarecedora. Ela presume que ativo digital quase nunca vai ser valor mobiliário, mas se for, vai para a CVM, mas na prática isso acontece bastante, então não ajuda no trabalho da CVM de separar o joio do trigo".
"O Brasil está em um estágio número 1 em termos de lei, que é a regulação de prestadoras, mas não regula tokens, não cria categorias diferentes, não separa direito valor mobiliário de não mobiliário, não traz muito a CVM para essa área, mesmo com ela tendo grande atuação na área e publicações sobre. A verdade é que a nossa norma é bem inicial", diz a advogada.
Ela também acredita que a segregação patrimonial precise ser aprovada em uma lei separada caso o Banco Central não encontro respaldo legal na etapa de regulamentação infralegal. Além disso, destaca a importância de ter uma lei mais voltada para a área de finanças descentralizadas (DeFi), que seguirá sem regulamentação no Brasil. Dyskant ressalta que "são coisas que estão vindo, e precisam de um olhar diferente".
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