SEC tem realizado ações que afetaram empresas de criptomoedas (FabrikaPhoto/Envato/Reprodução)
As decisões de duas gigantes do mercado de criptomoedas, a Paxos e a Kraken, de reverterem serviços para seus clientes em meio a ameaças de processos por parte da Comissão de Valores Mobiliários dos EUA (SEC, na sigla em inglês) acenderam um alerta nos investidores nos últimos dias.
O bitcoin e outros criptoativos, que vinham em uma sequência de valorização desde o início de 2023, passaram a cair desde a sexta-feira, 10, em um movimento que ganhou força nesta segunda-feira, 13. Por trás desse quadro, especialistas apontam à EXAME uma situação de grande insegurança jurídica nos Estados Unidos, o que tende a afetar o mercado cripto como um todo.
Por ser a maior economia do mundo e reunir uma grande quantidade de capital e investidores, o país é considerado essencial para a expansão das criptomoedas, o que por sua vez ajuda na valorização dos ativos. Entretanto, alguns atores do mercado já não descartam a possibilidade de que, após as últimas ações da SEC, o segmento acabe precisando se desenvolver sem uma presença direta no país por algum tempo.
Isac Costa, professor do Ibmec-SP e sócio de Warde Advogados, observa que o grande problema compartilhado tanto pela Kraken quanto pela Paxos foi o oferta de modalidades de investimento que a SEC acabou considerando como valores mobiliários. No caso da corretora de criptomoedas, o alvo foi o staking, modalidade de renda passiva com depósito de criptomoedas, enquanto a segunda empresa suspendeu a emissão do BUSD, uma stablecoin atrelada ao dólar.
"O conceito de valor mobiliário na legislação norte-americana é amplo e a entidade [SEC] é responsável por analisar as características de instrumentos financeiros que fazem com que sejam enquadrados como isso - a realização de uma oferta pública, a expectativa legítima de um benefício econômico e a atuação da empresa que capta os recursos ou de terceiros para que esse benefício seja gerado", explica Costa.
Ao falar sobre os dois, a SEC considerou que esses serviços tinham as características de um valor mobiliário, mas não foram ofertados seguindo as regras que esses ativos precisam seguir, incluindo a aprovação do órgão. Mesmo discordando dessa visão, as companhias fizeram acordos para retirar os produtos do mercado e evitar punições futuras.
Para Victor Jorge, professor do MBA in company da FGV e sócio do escritório Jorge Advogados, "o poder de atuação da SEC em relação aos criptoativos perpassa, necessariamente, pela questão da definição da natureza jurídica dos criptoativos e de suas respectivas operações. Essa disputa jurídica tem sido travada de forma bastante intensa não só em solo brasileiro, como também em solo estadunidense. A definição da natureza jurídica de criptoativos, de fato, não é tarefa das mais simples".
No Brasil, o Congresso aprovou recentemente um projeto de lei que regulamenta o setor de criptomoedas, incluindo com uma definição oficial para esse tipo de ativo. O texto já foi sancionado pela Presidência, e agora há a etapa de determinação de órgãos reguladores e outras regras mais específicas. Já nos Estados Unidos, não há nenhuma regulação oficial para o setor.
"A SEC tem se julgado competente para atuar em parcela considerável do mercado de ativos digitais. Isso porque, em sua ótica, a natureza jurídica de diversos criptoativos e suas respectivas operações são enquadráveis como valores mobiliários [...]. É importante pontuar que cada investigação e decisão da SEC leva em conta as particularidades do caso concreto", ressalta.
Isac Costa diz ainda que, ao contrário de grandes economias como a União Europeia e o Reino Unido, o presidente da SEC, Garyn Gensler, e a maioria dos executivos do órgão "têm empreendido uma cruzada contra a maior parte dos produtos cripto que são ofertados a cidadãos norte-americanos. Em vez de desenhar uma regulação específica ou adotar um regime de sandbox regulatório, a SEC tem adotado uma abordagem de 'punir para educar'".
Costa lembra ainda que Gensler já chegou a afirmar que todas as criptomoedas se configurariam como valores mobiliários, com exceção do bitcoin. Outro regulador do país, o CFTC, discordou, e incluiu o ether e a stablecoin USDC na lista de criptoativos que seriam commodities, não valores mobiliários.
E mesmo dentro da SEC não há consenso sobre o tema. Uma das comissárias da organização, Hester Pierce, divergiu da atuação recente da comissão, defendendo que seria preciso primeiro implementar uma regulação para as criptomoedas para depois punir as empresas que a violassem, evitando assim um desestimulo à inovação financeira.
Mesmo assim, o advogado acredita que "enquanto o Congresso norte-americano não alterar a regulação do mercado de capitais para acomodar um novo conceito para criptoativos, a SEC tenderá a enquadrá-los como valores mobiliários", o que abre margem para novas investidas contra empresas do setor.
Victor Jorge também acredita que a SEC tende a manter uma postura "firme" e com esforços para investigar e punir empresas de criptomoedas que ofereçam investimentos que sejam considerados valores mobiliários. Ele lembra que "esse movimento não é novo e pode ser observado desde, aproximadamente, o ano de 2017".
"Como consequência, vislumbramos uma possibilidade de que as medidas adotadas mais recentemente pela SEC sejam ampliadas para outras empresas do segmento. Não é por outro motivo que o CEO da corretora Coinbase já se manifestou publicamente no sentido de que irá defender a legalidade da operação de 'staking' no Poder Judiciário estadounidense, se preciso for", pontua.
Ele lembra que o mercado de criptomoedas está "buscando estabilidade jurídica" em todo o mundo, e que a instabilidade jurídica atual nos EUA abre margem para ações que abalam o mercado como um todo, devido ao medo de que elas serão replicadas contra outras empresas.
"Certamente, haverá instabilidade no mercado, o que se demonstrará a partir de uma possível maior variação de seus preços. Contudo, sempre é bom frisar que o mercado de criptoativos é muito dinâmico, de sorte que tais acontecimentos podem ensejar novas oportunidades aos players que tiverem perfis de risco mais alinhados às oportunidades que surgirão", defende o professor.
João Marco Cunha, gestor de portfólio da Hashdex, opina que o serviço de staking da Kraken realmente tinha as características de um valor mobiliário, e que portanto a atuação da SEC foi "justificável e, fundamentalmente, não deveria ter impacto substancial sobre os preços dos principais criptoativos", como o que ocorreu.
Na visão dele, o movimento pode ter sido associado à própria queda no mercado de tecnologia como um todo, mas Cunha também acredita ter sido provável que "alguns investidores tenham usado o evento como gatilho para realização de ganhos auferidos ao longo desse ano".
Já Isac Costa observa que "o desenvolvimento do mercado cripto depende da validação de casos de sucesso e da adoção em massa de soluções baseadas em DLT, de um efeito de rede. Toda vez que um regulador decide limitar a expansão da oferta de criptoativos, a insegurança jurídica aumenta, afastando instituições incumbentes que querem investir no setor e, em alguma medida, o público em geral".
Por isso, ele acredita que o mercado de criptomoedas precisará ser englobado de alguma forma à regulação para que seja adotado por uma parcela maior da população. Nesse processo, ações como a da SEC podem ser vistas como "inconveniente", mas ele acredita que "é preciso dialogar com o mercado financeiro existente para a criação de uma ponte, permitindo a popularização dos criptoativos com segurança jurídica, proteção a investidores e garantia da estabilidade financeira".
"Enquanto a SEC continuar com a regulação pelo enforcement, de punir para orientar, o pleno desenvolvimento do mercado cripto não contará com a contribuição do mercado norte-americano, dependendo de desdobramentos em outras jurisdições, especialmente na União Europeia", opina.
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