O "excesso de contexto" que enfraquece a esquerda
Enquanto a nova direita tende a dissociar problemas, os progressistas estão cada vez mais hiperproblematizando os debates – muitas vezes, perdendo o olhar para oferecer soluções pragmáticas, defende o gênio das estatísticas Nate Silver
Lucas Amorim
Diretor de redação da Exame
Publicado em 16 de novembro de 2024 às 10:33.
Última atualização em 16 de novembro de 2024 às 10:34.
Os motivos que levaram à vitória de Donald Trump e ao fracasso eleitoral dos democratas são daqueles debates que ficam mais interessantes quanto mais camadas se adicionam. Assim como uma matriosca russa ou um bom bolo de rolo.
Aumento da inflação e perda no poder de compra estão entre os fatores primordiais das análises. Cidadãos veem seu dinheiro valer cada vez menos num mundo com empregos cada vez mais fluidos, e votam na oposição com fúria crescente mundo afora.
Um dos olhares mais interessantes sobre a divisão entre conservadores e liberais que levou à consagração de Trump aposta num olhar social. Ela pode ser encontrada em muitas das 559 páginas do novo livro de Nate Silver, "On The Edge– The Art of Risking Everything", algo como "No Limite – A Arte de Arriscar Tudo", numa tradução livre.
Silver é um gênio das estatísticas que previu na mosca a vitória de Barack Obama e virou guru eleitoral nos Estados Unidos com seu site fivethirtyeight.com. Seu livro anterior, o "Sinal e o Ruído", foi um bestseller global ao mostrar ao leitor comum que para interpretar dados é preciso saber separar o que é substância do que é fumaça.
Silver captou como poucos a onda de otimismo que levou à vitória de Obama e, anos depois, foi uma voz dissonante ao mostrar que as pessoas estavam mais do que nunca em busca de uma mudança, num processo que levou à vitória de Donald Trump – duas vezes, diga-se de passagem.
Dias antes da vitória de Trump, ele publicou um artigo no The New York Times em que afirmava que sua "intuição" apontava para o triunfo do republicano.A questão não era uma onda de votos envergonhados, como muitos analistas previam. "Não é que os eleitores de Trump estão mentindo nas pesquisas; é que tanto em 2016 quanto em 2020 as pesquisas não estão encontrando um número suficiente deles", escreveu.
"Os apoiadores de Trump com frequência têm um engajamento civil e social menor, e portanto estão menos inclinados em responder uma pesquisa completa."
Esse desengajamento social dos eleitores de Trump foi destrinchado por Silver em On The Edge.
No livro, ele mistura lições do universo do pôquer com análises políticas numa combinação às vezes tão confusas quanto um cassino lotado. Mas a crítica social é ferina.
A parte pelo todo – ou o todo pela parte
Os eleitores de Trump – uma turma que forma o que ele chama de "Rio" – adoram dissociar os problemas, enquanto os democratas – que compõem o que chama de "Vila" – odeiam essa postura.
Em suma, há uma metade da sociedade que analisa um problema por vez, uma prática útil também para o pôquer, explica Silver.
Outra parte, por sua vez, composta essencialmente de jornalistas e acadêmicos, olha tudo com a lente do contexto. E tende a hiperproblematizar os debates, conectando uma questão à outra – e, muitas vezes, perdendo o olhar para oferecer soluções simples para problemas complexos.
Os moradores do Rio, trumpistas em geral, acham o outro lado "muito político", buscando conexões e contextos quando deveriam estar separando os problemas.
Eles também acham que o outro lado não tem noção de quanto suas visões de mundo são influenciadas por viés de confirmação e modismos de suas comunidades.
À medida que a polarização cresceu, a turma da Vila foi ficando mais e mais homogênea. "Em 2020, os 25 condados mais educados dos Estados Unidos votaram por Joe Biden sobre Trump com uma diferança de 44 pontos, muito acima dos 17 pontos de vantagem que deram a Al Gore contra George W. Bush", afirma Silver.
Além disso, o pessoal do Rio acredita, diz Silver, que seus opositores estão se desviando de uma sociedade meritocrática, que acredita que o livre mercado faz um trabalho melhor que planejadores centrais em separar vencedores de perdedores.
"E naturalmente, a turma do Rio acha os da Vila muito paternalistas, muito neuróticos e muito aversos a risco", diz. "Finalmente, eles são ferrenhos defensores da liberdade de expressão, não só como um direito constitucional, mas como uma norma cultural".
Por outro lado, os progressistas da Vila acreditam que o outro lado é individualista e só diz gostar de competição porque as regras em geral são favoráveis a eles. "Por qualquer medida objetiva, os moradores do Rio são incumbentes poderosos em vez de disruptores que às vezes defendem ser, e eles se beneficiam das hierarquias estabelecidas".
Há também um certo componente de arrogância intelectual. "Os moradores da Vila veem a si mesmos como estando claramente certos nas questões amplas mais relevantes, de mudanças climáticas a direitos LGBT", diz o autor. Todas elas, dentro desta ótica, estão relacionadas e devem compor uma análise sensata da realidade.
Para os trumpistas, por sua vez, tudo está aberto a debate, e sujeito a análises de "risco-retorno".
Esta profunda diferença de visão de mundo, defende Silver, é a base das divisões políticas que levaram à vitória de Trump nas urnas e que mantém as discussões candentes após as eleições.
No Brasil, como sabemos, o ambiente não está menos polarizado.
Apesar das diferenças entre os países, a divisão entre Rio e Vila combina em grande medida com o que se vê nas famílias, empresas e grupos de WhatsApp país adentro.
Saiba antes. Receba o Insight no seu email
Li e concordo com os Termos de Uso e Política de Privacidade
Acompanhe:
Lucas Amorim
Diretor de redação da ExameJornalista formado pela Universidade Federal de Santa Catarina, começou a carreira no Diário Catarinense. Está na Exame desde 2008, onde começou como repórter de negócios. Já foi editor de negócios e coordenador do aplicativo da Exame.