No Bradesco, uma revolução na Cidade de Deus. Vai ser suficiente?
Seguindo o playbook do Itaú, plano de Marcelo Noronha é um abalo sísmico na estrutura de um banco alicerçado numa cultura insular e forjada ao longo de décadas – mas pode ter vindo tarde demais
Publicado em 8 de fevereiro de 2024 às 10:34.
Última atualização em 8 de fevereiro de 2024 às 17:43.
Há dois meses no cargo, Marcelo Noronha trouxe ontem um plano de transformação “sem paralelo na história do Bradesco”, nas suas próprias palavras, numa tentativa de colocar o banco privado que já foi líder no crédito privado no país de volta à rota do crescimento e da rentabilidade.
Em meio a um resultado desastroso, 40% abaixo do consenso de mercado no quarto trimestre, e com a sinalização de um 2024 ainda difícil e de ‘transição’, o conjunto de iniciativas não foi suficiente para conter uma queda de 15,4% das ações preferenciais. Foi a segunda maior queda diária do banco desde 2000, ceifando R$ 24 bilhões de valor de mercado numa tacada só.
Mas isso não significa que o plano de Noronha não seja, de fato, uma revolução. Diferentemente de outras estratégias de transformação digital, que passaram pela criação do Next e da contratação de inúmeras consultorias sem resultado palpável, seu plano é um abalo sísmico na estrutura de um banco alicerçado numa cultura insular e forjada ao longo de décadas, em que hierarquias e rotinas são vistas como seus principais ativos.
Foi essa cultura que fez o Bradesco consolidar seu sucesso, saindo de um pequeno banco em Marília, na década de 1940, para se tornar um dos líderes de mercado.
Mas, num cenário de disrupção digital – em que novos entrantes como Nubank e Inter vem ganhando cada vez mais espaço especialmente nos clientes de baixa renda e PMEs, que são o principal público do Bradesco –, não é ela que vai levar o banco para seus próximos 80 anos.
O problema agora está claro: “A estrutura organizacional do Bradesco é complexa, com excesso de layers, o que aumenta o tempo de tomada de decisão e dificulta a orientação ao cliente”, disse a companhia no slide em que apresenta o diagnóstico da situação atual, que levou a um crescimento de receita muito abaixo da média e inadimplência galopante ao longo dos últimos dois anos.
“Pode parecer óbvio, mas reconhecer isso, com essa clareza, dentro do Bradesco, é praticamente uma revolução”, diz um gestor que conhece bem o banco. “Há um ano, eles estavam em negação. Agora, ao menos reconheceram qual é o problema e estão atacando.”
Entender o Bradesco passa por conhecer suas entranhas. Diferentemente de outros bancos não são os controladores que ditam as regras, mas um conselho formado por ex-executivos com décadas de casa, e que dão experiente no banco, no mesmo andar da diretoria. Vencer suas resistências não é simples. “O conselho está conosco e temos 100% de apoio”, garantiu ontem Noronha.
O novo CEO está mudando toda a estrutura organizacional do comando, reduzindo as distâncias entre ele e as lideranças, de forma a dar mais autonomia aos executivos. Sob nova direção, o banco, conhecido por só trabalhar com prata da casa, também passará a considerar posições de C-level que venham de fora.
Pode parecer um detalhe, mas não é. Ao longo de seus 81 anos, o Bradesco teve apenas seis CEOs: o fundador Amador Aguiar, seu sucessor Lázaro de Mello Brandão, Márcio Cypriano, Luiz Carlos Trabuco e Octavio Lazari Jr, que teve o mandato mais curto, de apenas seis anos, e saiu em meio à crise.
Noronha, que já passou pelas áreas de cartão, atacado e mais recentemente de varejo, é considerado o CEO mais ‘fresh’ porque está no banco há ‘apenas’ 20 anos – e, ao contrário dos seus sucessores, não começou sua carreira na Cidade de Deus.
É a cultura, estúpido!
Apesar de estar embalado com vários princípios, o cerne do plano é a transformação digital. Seja para cortar despesas, reduzindo o chamado ‘custo de servir’, ou para dar tração à receita, com uma oferta mais centrada em um cliente em constante transformação, o banco precisa apertar o passo em direção à digitalização.
Nesse sentido, o paralelo com a trajetória do Itaú nos últimos anos é inevitável. O banco dos Setúbal e dos Moreira Salles tem mais penetração na alta renda, um segmento mais resiliente a crises e menos sujeito à competição com os neobanks (pelo menos até o momento).
Mas o que garantiu que o Itaú conseguisse manter sua trajetória de crescimento e rentabilidade mesmo num cenário de competição acirrada foi uma mudança silenciosa na forma como o banco opera.
Uma carta aos cotistas escrita pela Aster Capital – gestora paulista que tem Nubank e Itaú entre suas principais posições – destrinchou o processo.
A transformação digital do Itaú começou silenciosa, em 2017, ainda sob o comando de Cândido Bracher, que colocou o cliente no centro da estratégia, implementado a metodologia de NPS (net promoter score) em todas as áreas do banco e incluindo esse indicador na avaliação que define a remuneração dos executivos. Ao mesmo tempo, teve início uma conscientização sobre os conceitos de cultura e metodologia ágil.
A transformação em cima desses alicerces, contudo, veio na gestão de Milton Maluhy, que assumiu em 2021. Além da troca no comando, o conselho de administração muda e traz como membro independente César Gon, CEO e fundador da CI&T, especialista em auxiliar grandes empresas no processo de transformação digital.
Não à toa, hoje o Bradesco é o maior cliente dentro da carteira da CI&T. Outro paralelo: Maluhy reduziu níveis hierárquicos, mudou os membros do comitê executivo e reduziu o número de cargos, aumentando de duzentos para quatrocentos o número possível de pessoas para o programa de sócios, numa iniciativa para conter a evasão de talento que estavam migrando para empresas de tecnologia, atraídas por seus programas de stock options.
Ainda de acordo com a Aster, uma nova frase na cultura organizacional implantada pelo CEO foi pivotal para o novo momento: “Nós não sabemos de tudo”. “Essa frase resume a essência das sinergias dos três aspectos da transformação digital: a constante e incansável vontade de buscar a melhoria de um produto ou serviço por meio de iterações centralizadas no cliente, combinada com um ambiente que proteja os participantes da empresa de punições pelo erro e com autonomia para tomada de decisões com accountability”, diz a gestora.
É uma trajetória que denota a importância da “cultura empresarial” – esse termo usado tantas vezes de maneira vazia, mas onde reside a capacidade de um incumbente de se adaptar às mudanças tectônicas da indústria. Na gestão de Cândido Bracher, a alusão à palavra “cultura” apareceu apenas duas vezes nas 16 teleconferências sobre resultados. Na gestão Maluhy, em 11 calls foram 54 alusões a ela.
Comendo poeira
Os indicadores dos concorrentes neste ano deixam claro a diferença de resultado das estratégias. Enquanto o lucro do Bradesco caiu 38% entre 2021 e 2023, o do Itaú subiu na mesma proporção. O índice de eficiência, que mede o quanto da receita é consumida pelos custos, saiu de 44% para 39% no Itaú. No Bradesco, aumentou de 46% para 48%.
O retorno sobre patrimônio, uma das principais métricas de rentabilidade, também dá a medida: no Bradesco, ele foi de 10% em 2023, abaixo do custo de equity, estimado entre 14% e 15% -- o que indica que o banco está destruindo valor. É um índice muito abaixo da média do banco, que foi de 18% nos últimos 20 anos, de acordo com o Goldman. A previsão de Noronha é que o ROE só volte a superar os custos em 2026. No Itaú, o ROE é de 22%.
Mais que isso, o Itaú se tornou o único incumbente a manter a chamada taxa de ‘principalidade’, que indica que ele segue o banco de preferência mesmo para os clientes que têm conta aberta em outras instituições, segundo pesquisa proprietária da Aster.
O Bradesco está seguindo agora a cartilha do Itaú. “A escolha do Noronha foi uma decisão muito acertada. Ele trabalhou muito com a área de cartões, que tem muita interface com os clientes e tem muito essa cabeça de satisfação, cliente na frente e produto”, afirma um investidor. “Mas mudar o curso de um transatlântico nunca é simples.”
A grande questão é que a ficha pode ter caído tarde demais. Realista, Noronha indicou que a transformação não deve render frutos de largada. Em 2024, as provisões ainda alta e as despesas com a contratação de 3 mil funcionários de tecnologia para o banco devem trazer custos extraordinários e pesar sobre o retorno.
O plano é, em cinco anos, trazer seu market share, hoje em 14%, para 19%. O banco sinalizou que quer manter sua força no segmento de PMEs, aproveitando sua penetração no Brasil profundo, e melhorando sua metodologia de análise de crédito para diminuir os calotes que o machucaram no último ciclo de crédito.
A proposta para fechar o capital da Cielo vai nesse sentido. A ideia é fazer ofertas mais casadas de adquirência junto com crédito, alavancando seu relacionamento e conhecimento dos clientes. De novo, uma estratégia que chega com 12 anos de atraso. O Itaú fechou o capital da Rede em 2012 – e no ano passado, ultrapassou a Cielo na liderança do mercado.
Os desafios de execução na transformação são inúmeros. O banco negocia a menos de 1 vez seu valor patrimonial, o que indica que os acionistas ainda veem potencial de destruição de valor, a despeito da queda brutal das ações.
“O banco mostrou muitas boas intenções, mas acreditamos que o mercado vai esperar para ver os resultados aparecerem no balanço do banco antes de tomarem alguma ação”, resumiu o UBS em relatório.
A ver como o banco vai emergir do terremoto na Cidade de Deus.
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Natalia Viri
Editora do EXAME INJornalista com mais de 15 anos de experiência na cobertura de negócios e finanças. Passou pelas redações de Valor, Veja e Brazil Journal e foi cofundadora do Reset, um portal dedicado a ESG e à nova economia.
Karina Souza
Repórter Exame INFormada pela Universidade Anhembi Morumbi e pós-graduada pela Saint Paul, é repórter do Exame IN desde abril de 2022 e está na Exame desde 2020. Antes disso, passou por grandes agências de comunicação.