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Inteligência artificial: revolução ou bolha? Depende de para onde você olha

A IA generativa vai revolucionar a forma como operamos e resolvemos problemas – mas o ritmo da disrupção depende mais de pessoas do que da própria tecnologia

Scott Galloway: "A promessa econômica da IA parece real. Óbvia, eu diria. E é por isso que uma bolha é inevitável" (Nurphoto/Getty Images)
Scott Galloway: "A promessa econômica da IA parece real. Óbvia, eu diria. E é por isso que uma bolha é inevitável" (Nurphoto/Getty Images)
Pedro Burgos

Pedro Burgos

Jornalista

Publicado em 30 de maio de 2024 às 15:23.

Última atualização em 30 de maio de 2024 às 15:26.

“Temos a tendência de superestimar o impacto de uma tecnologia no futuro próximo e subestimar no longo prazo.”

A frase do futurista americano Roy Amara resume bem o atual estado da discussão sobre inteligência artificial. Há gente literalmente vendendo a ideia de que se você não dominar a tecnologia hoje não terá chance de sobreviver no mercado em dois anos.

Há consultorias de IA cujo pitch pode ser resumido em quatro letras: FOMO. Recentemente, fiz um curso de IA "para líderes" que gastou 70% do tempo ensinando a usar ferramentas que serão (ou já foram) incorporadas a outras melhores, ou "técnicas de prompt" que ficam desatualizadas em poucos meses, à medida que os modelos ficam mais espertos em saber o que o usuário quer.

Os exemplos dos cursos são sempre parecidos. As respostas do ChatGPT a "Ajude-me a criar um plano de negócios" ou "Assuma o papel da persona X para eu testar um novo produto" são realmente impressionantes à primeira vista.

Mas, realisticamente, não são situações em que vamos nos encontrar muitas vezes na vida, e certamente não confiaremos no primeiro output da máquina. Basicamente porque o que fará essas sugestões da IA vingarem no mundo real são contextos complexos, experiência, inteligência emocional, resiliência, concorrência, entre tantas outras coisas que são mais difíceis de passar em uma videoaula.

Não estou dizendo que o problema de "ensinar IA" seja facilmente resolvido. Longe de mim. Também dou aula e palestras o tempo todo e sofro para elaborar algo que seja genuinamente transformador. Ensinar ferramentas pode ter sua utilidade pedagógica para explicar como a tecnologia opera, suas possibilidades e limitações.

Mas há um risco. Ao usar uma janela de chat que produz um post de Instagram melhor que seu analista junior., é claro que muito empresário pensa: "não vou precisar ter mais departamento de marketing". É essa percepção que faz uma empresa como a Jasper, que atua como um copiloto de AI para times de marketing, ser avaliada em mais de US$ 1 bilhão por investidores.

Não tenho dúvidas de que haverá mais eficiência na área de vendas. Mas pode ser uma visão um bocado míope também.

Em outubro de 2020, a Zoom passou a Exxon Mobil, gigante de petróleo, em valor de mercado. Naquela época, falávamos do "novo normal": todo mundo (da Faria Lima, ao menos) ia ficar trabalhando de casa, então a empresa que cuida do "lugar" de reuniões virtuais deveria valer mais do que a outra, que gerava combustível (velho, poluente) para geringonças que ninguém mais ia usar.

O pico do valor de mercado do Zoom se deu quando muitos dos meus amigos se mudaram "definitivamente" para Atibaia ou Ilhabela. Falava-se então da "Morte das cidades".

A pandemia de Covid foi um evento disruptivo raríssimo, claro, mas Roy Amara diria que ali em 2020 as pessoas superestimaram o impacto das tecnologias que permitem o teletrabalho no curto prazo.

Ao vermos escritórios cheios novamente em 2024 podemos achar, confortavelmente, que todo mundo estava errado naquela época. Que o tal ‘work from home’ era uma bolha.

O teletrabalho é uma tecnologia ordens de magnitude menos potente que a IA. A dinâmica da percepção sobre seu valor disruptivo, no entanto, é familiar.

Scott Galloway disse em sua última newsletter: "A promessa econômica da IA parece real. Óbvia, eu diria. E é por isso que uma bolha é inevitável." Ele explica a lógica:

“Bolhas surgem de maneiras inesperadas, por razões imprevisíveis. Grandes bolhas são inflacionadas de maneiras semelhantes. Uma inovação transformadora surge, dinheiro de investidores entra em massa, os valuations aumentam, especuladores adicionam combustível, a atmosfera aquece, a bolha cresce, financiamento barato acelera o crescimento, e a roda gira.”

Há nuance. Não é porque o valor de mercado da Nvidia seja pouco realista (como Damodaran, o papa do valuation, falou recentemente no Insper) que a demanda por placas gráficas que treinam modelos de IA não vá continuar crescendo.

Em outras palavras: os investidores estão certos em apostar que a tecnologia vai transformar mercados, que não haverá volta, mas estão possivelmente errados no ritmo de sua adoção, ou na escolha dos vencedores da corrida. Isso é natural, parte do processo especulativo.

O fato é que, graças à IA, vários aspectos da nossa vida serão muito diferentes em cinco ou dez anos. Voltando à analogia com o teletrabalho: escritórios estão cheios, mas é muito difícil atrair talento hoje em diversas áreas sem ter no pacote jornadas de trabalho flexíveis.

As pessoas  conseguem vislumbrar outros arranjos, lugares diferentes para morar e trabalhar. Times podem estar em múltiplas cidades ou países. Revoluções (em nível pessoal, ao menos) em como equilibramos trabalho e vida pessoal.

Como disse William Gibson há 25 anos: “O futuro já chegou — só não está uniformemente distribuído.”

Tenho certeza que IA — particularmente a generativa — é a inovação mais potencialmente disruptiva das últimas décadas. Está ali entre eletricidade e internet entre as tecnologias de base, que permitirão (já permitem) novas formas de interagirmos com as informações, as outras pessoas, o mundo.

Mas é bem possível que essa revolução se materialize um pouco mais lentamente que os mais entusiasmados pregam.

Já vimos esse filme antes. Temos 18 mil cobradores de ônibus em São Paulo, apesar de a tecnologia para substituí-los existir desde o século 19. Radiologistas poderiam estar rumando para a obsolescência devido a avanços em visão de computador há 10 anos, como previu Paul Krugman, mas a demanda só aumenta.

Ou seja: não basta olhar para a capacidade de uma máquina realizar a tarefa de um humano para prever qual profissão irá desparecer. ChatGPTs são muito potentes para pesquisar jurisprudência e escrever petições. Mas sabe outra coisa muito potente? A OAB, como grupo de pressão. Essa força pode diminuir ao longo do tempo, certamente, mas é mais forte do que os tecnoutópicos imaginam.

De novo: longo prazo, curto prazo. Desconfie de quem diz ter certeza sobre a velocidade da revolução, ou sobre o mix de impacto positivo/negativo. Mas ouça quem vislumbra as possibilidades.

Ou, como disse brilhantemente a economista Carolina da Costa em um painel que participei recentemente, perceba que os incentivos não estão perfeitamente alinhados.

Os incumbentes, que já dominam o mercado, tem razões para não correr para adotar práticas que podem mudar radicalmente a forma com que problemas dos seus setores são resolvidos. A inovação real virá potencialmente mais de novos entrantes, players menores, do que de gigantes estabelecidos, mesmo que com dinheiro de P&D virtualmente infinito.

São essas dinâmicas que tem mais a ver com incentivo ou pessoas (empolgadas ou temerosas demais) que vão ditar o ritmo da revolução.

Sim, revolução. Não estamos falando de uma tecnologia que vai aumentar em 20% a eficiência de um processo, ou permitir a diminuição de headcount em uma área X ou Y. Estou falando de formas efetivamente revolucionárias de resolver problemas.

Examinemos o setor de educação. A IA pode ser usada para ajudar a preparar planos de aula ou ajudar a elaborar e corrigir provas. É um uso interessante, de aumento de produtividade, que já é realidade em muitas escolas e universidades.

Mas podemos ir muito além, para finalmente mudar um sistema que é muito parecido há séculos, de professor falando para uma massa de alunos passivos (seja no Zoom ou na sala), dando provas iguais para alunos muito diferentes, em diferentes estágios de aprendizado.

Há milênios sabemos que esse não é o modelo ideal. Filipe II sabia disso quando chamou Aristóteles para ser o tutor de Alexandre em 343 a.c.. Ele sabia que educação um-pra-um, em conjunto com o método socrático, no ritmo do aluno, entrega melhores resultados.

Nós só usamos o modelo atual porque ele é o único que dá escala ao problema que estamos tentando resolver — o maior número de pessoas alfabetizadas e aptas a entrar no mercado no menor custo.

Com a IA, temos uma tecnologia para pensar em algo radicalmente diferente, como argumenta Sal Khan em seu brilhante livro Brave New Words: How AI Will Revolutionize Education (and Why That's a Good Thing) — leitura obrigatória pra quem é do setor. Aqui uma versão resumida do seu pitch:

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Khan teve acesso antecipado às tecnologias de IA. Meses antes de o mundo conhecer o ChatGPT, ele já construía protótipos de chatbots educacionais com o GPT-4 em parceria (secreta) com a OpenAI.

Ele imagina que no futuro próximo o ensino de redação pode ser bem diferente, com crianças co-criando histórias com a IA. Literatura pode ser explorada conversando com as obras. Variações dessa interação aparecem bastante em seu livro. Ele mostra como a conversa com simulações de figuras históricas pode trazer um novo entendimento não apenas do fato, mas contexto e motivações, para os alunos.

Ele mostra como é possível criar provas específicas e conteúdo customizado para alunos em dificuldade em algum tópico, resolvendo um dos grandes problemas do modelo de tamanho único atual. Parte dessas ideias já estão sendo testadas no app de Khan com IA, o Khanmigo, inclusive.

Kahn talvez seja um pouco otimista demais, mas seu instinto parece apontar na direção certa. E ele não está falando de o que pode acontecer se a tecnologia evoluir. Ele está falando com a tecnologia que temos hoje.

Como diz Ethan Mollick — autor de outro excelente livro sobre IA —, mesmo que a inovação neste campo estagnasse, se a bolha estourasse, e os investidores fugissem como no ano 2000, o que temos hoje já é o suficiente para reimaginar o nosso trabalho e a nossa vida.

Nossa função, de quem consegue vislumbrar esse futuro, é ter o correto equilíbrio de ambição e responsabilidade. De pesar o retorno para o investidor e para a sociedade. Sair na frente, mas não deixar partes importantes da população para trás.

Não vai ser tarefa fácil.

Para quem decide. Por quem decide.

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Pedro Burgos

Pedro Burgos

Jornalista

Pedro Burgos é jornalista e programador, e gerencia a área de Inteligência de Dados no Insper

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