ESPECIAL: Nove anos após o desastre de Mariana, um acordo tão perto (e tão longe)
Reassentamentos finalmente começam a ser entregues e repactuação de Samarco, Vale e BHP com os governos parece mais próxima – mas a batalha jurídica envolvendo um dos maiores acidentes ambientais do país ainda está longe do fim
Publicado em 11 de junho de 2024 às 07:00.
Última atualização em 13 de junho de 2024 às 15:28.
MARIANA, MG* (Atualizada às 16h37 de 12 de junho) – Uma miríade de casas coloridas com os mais diferentes tipos de telhados se alinha no horizonte a escolas e unidades de saúde bem equipadas no novo distrito de Paracatu, no entorno de Mariana (MG).
Equipes de obras andam para lá e para cá e ainda são a maior parte do movimento.
A sensação é de uma cidade cenográfica. Tal qual Sucupira, de “O Bem Amado”, o cemitério não tem um morto para enterrar.
Quem morre ainda é sepultado no antigo cemitério do povoado que existia antes do rompimento da barragem da Samarco, joint-venture da Vale e BHP Billiton, em novembro de 2015, quando 40 milhões de metros cúbicos de lama arrastaram consigo vilarejos, deixando consigo 19 mortos e mudando a cara do Rio Doce, que corta Minas Gerais, para desaguar no mar do Espírito Santo.
As igrejas também estão abertas, mas ainda não receberam autorização da arquidiocese para funcionar.
Nove anos depois, as últimas chaves das casas dos moradores de Paracatu e Novo Bento serão entregues até o fim deste ano – encerrando uma das etapas mais emblemáticas do longo e conturbado trabalho de reparação das regiões atingidas pelo maior desastre ambiental do país.
A entrega das casas, no entanto, está longe de significar uma conclusão do processo para a Samarco, e suas duas sócias, ambas entre as maiores mineradoras do mundo.
Até hoje, elas já desembolsaram R$ 37 bilhões entre indenizações aos atingidos e obras de reparação ambiental e reconstrução. Tudo feito por meio da Fundação Renova, criada em 2016, com o mandato de coordenar as ações para remediar o assombroso estrago feito pela lama.
Mas ainda há diversos processos em andamento – dentro e fora do país – que ainda não permitem saber o valor final da conta e nem o escopo de responsabilidades que a Samarco precisará assumir.
O principal e mais relevante deles é a chamada “repactuação”, um acordo final com governos estaduais e federal e já previsto no Termo de Ajustamento de Conduta (TTAC) firmado com o Ministério Público em 2016 e reformado em 2018.
Na época, em meio ao caos gerado pelo desastre, a ideia é que houvesse ações de reparação imediatas aos atingidos, mas já com o entendimento de que seriam necessários estudos mais aprofundados para entender o tamanho e o escopo das repercussões ambientais e materiais.
Nove anos e mais de R$ 1 bilhão gastos em inúmeros laudos técnicos (não raro divergentes) depois, finalmente as empresas e as instâncias competentes parecem começar a entrar numa rota de entendimento.
A previsão inicial era de que uma repactuação acontecesse em 2020, mas com a pandemia e a dança das cadeiras do governo federal e estaduais de Minas Gerais e Espírito Santo, o processo ainda está na mesa, mediado pelo Tribunal Regional Federal da 6ª Região (TRF-6), de Minas Gerais.
Ao longo do ano passado, o governo chegou a fazer propostas que incluíam R$ 200 bilhões, dos quais R$ 126 bilhões em dinheiro novo – valor que foi rechaçado pelas empresas.
A última oferta de Samarco, Vale e BHP, feita em maio, foi de R$ 72 bilhões em dinheiro novo a ser pago aos governos.
Um dos principais pontos da repactuação é reduzir o papel da Fundação Renova. O entendimento de ambas as partes é que, passada a emergência na atuação, não faz sentido ter uma fundação a cargo das atividades de forma indefinida e que os governos e órgãos competentes regionais poderão usar o dinheiro diretamente.
Ao todo, a proposta das empresas é de R$ 127 bilhões, incluindo aí os R$ 37 bilhões já desembolsados e mais R$ 18 bilhões nas chamadas “obrigações a fazer” – atividades que seguirão a cargo das delas, como reflorestamento, retirada de resíduos e monitoramento do Rio Doce.
De bate pronto, a proposta, que foi vazada na imprensa, provocou um não virulento do governo federal e do governo do Espírito Santo, sinalizando ânimos ainda acirrados. O governo mineiro também negou, mas por meio de uma comunicação pública mais suave.
Um aceno importante veio na última quinta-feira, quando União e Estados fizeram uma contraproposta, reduzindo o valor de dinheiro novo de R$ 126 bilhões para R$ 109 bilhões – a serem pagos ao longo de 12 anos e não mais seis, como proposto inicialmente.
A redução do valor inicial foi vista por investidores e quem participa dos bastidores da discussão como uma sinalização de que os governos estão dispostos a encontrar as empresas “no meio do caminho”, num dos maiores avanços em anos em todo o processo.
Em entrevista no último dia 22, ao jornal O Globo, o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, sinalizou que um consenso deve acontecer em breve. “É um acordo extremamente complexo, mas eu tenho plena convicção de que ele é possível, e mais do que isso, necessário.”
Na BHP, o entendimento também é de que as discussões estão avançando. “Nossa agenda prioritária no Brasil é Samarco e reparação. Nossa equipe está 100% dedicada a isso acontecer e funcionar”, diz Emir Calluf Filho, VP jurídico da companhia para as Américas. “Estamos confiantes num acordo ainda neste ano.”
Cabe no balanço?
A repactuação deve encerrar também um outro processo que causou grande alvoroço em janeiro deste ano, quando um juiz de plantão determinou que a Samarco e suas sócias pagassem R$ 47 bilhões em danos morais, ainda a serem ajustados por taxas de juros e inflação desde 2015.
Com um processo repleto de erros na avaliação das rés, ambas recorreram e estão confiantes no ganho de causa. Ainda assim, no caso da anglo-australiana, as provisões no balanço para perdas foram elevadas, chegando a US$ 6,5 bilhões.
A brasileira anunciou atualização para US$ 4,2 bilhões em provisões, contra US$ 3 bilhões anteriores.
A incerteza sobre o valor das indenizações é um dos fatores que pesam sobre a Vale, num momento em que a mineradora enfrenta um grande escrutínio dos investidores, com a indefinição sobre o novo CEO, que substituirá Eduardo Bartolomeo.
Para gestores ouvidos pelo INSIGHT, um acordo em torno de R$ 130 bilhões poderia até dar espaço para reversão dessa provisão de Vale – considerando nessa equação os preços atuais do minério de ferro, em torno de US$ 120 por tonelada e mesmo o aumento de capacidade da Samarco, que chegou a 34%, recentemente.
A equipe de analistas do BTG Pactual (do mesmo grupo de controle da EXAME) calcula que um aumento entre US$ 2 bilhões e US$ 3 bilhões já está precificado na cotação da ação, hoje negociada a 4 vezes o Ebitda previsto para 2024.
Além disso, como o horizonte de desembolsos vai até 2038, a Samarco, que hoje opera a 34% de sua capacidade, pode ganhar representatividade maior no pagamento do acordo, conforme recupera sua produção, pondera o banco.
O caso PG
Em paralelo à discussão com os governos, uma outra frente de litigância multibilionária se soma à lista de possíveis passivos no caso. O estrago provocado pela lama em Mariana chegou a tribunais da Inglaterra e da Holanda, num processo pioneiro – e controverso – que está testando as fronteiras do direito internacional.
Enquanto a Fundação Renova e as empresas alegam que tudo que foi acordado pelo TTAC está sendo cumprido, ainda há vários pontos de divergências entre quem deveria ser indenizado e o que foi entregue pela Samarco suas sócias.
Neste vácuo, em 2018, o escritório Pogust Goodhead (PG) pediu abertura de um processo em Londres, onde fica a sede da BHP, pedindo indenização a princípio de 200 mil vítimas.
Com uma busca ativa de clientes por meio de carros de som e campanhas nas regiões atingidas – algo proibido pela OAB no Brasil, como fazem questão de frisar as rés –, já são mais de 720 mil vítimas requerentes.
Isso, nas contas do próprio escritório, totaliza um pedido de indenização que pode chegar a 36 bilhões de libras (ou cerca de R$ 237 bilhões pela cotação atual), o que a posiciona como uma das maiores ações civis públicas da História.
Depois de várias idas e vindas, a corte de Londres aceitou a abertura do processo e no ano passado acatou o pedido de BHP para que a Vale também se tornasse ré no caso.
O processo tem diversas peculiaridades, que o tornam de especial interesse para a comunidade jurídica global e outras empresas brasileiras envolvidas em desastres ambientais: é a primeira vez que uma corte internacional vai julgar uma causa usando a aplicação da lei brasileira.
Seria a instauração de uma espécie de quarta instância – uma possibilidade que traz calafrios para os empresários brasileiros, que já enfrentam diversas camadas de litigância.
Em outubro, começam as audiências sobre o caso e as responsabilidades das rés – para só então ser discutido se as indenizações requeridas procedem, uma a uma.
Há uma preocupação de que não haja indenizações em duplicação, o que gera uma grande celeuma sobre quais os pedidos poderão ser acatados na Justiça britânica. Primeiro, é preciso provar os danos sofridos pelos 720 mil interessados. Segundo, garantir que eles não tenham sido pagos pela mesma coisa no Brasil.
Dos R$ 37 bilhões gastos até hoje pela Renova, R$ 17 bilhões foram pagos a cerca de 430 mil pessoas, desde os moradores atingidos pela lama até profissionais autônomos que alegam ter tido suas atividades interrompidas pelo desastre, como pescadores do Rio Doce.
“É uma duplicação de esforços. O âmbito correto para se decidir isso é o Brasil”, argumenta o VP jurídico da BHP.
Criado em 2018 por Harris Pogust e Thomas Goodhead, o PG se tornou especializado em tragédias ambientais. De 27 processos de seu portfólio de atuação, seis deles são no Brasil, fazendo com que 300 advogados de sua banca sejam brasileiros.
Com despesas elevadas, o escritório buscou formas de se financiar via litigation funding. Até fevereiro havia levantado 750 milhões de libras com gestoras como Jive, SPS Vinci e Prisma.
O escritório exige das vítimas contratação de um serviço que cobra honorários da ordem de 30% de qualquer valor que a vítima receber (seja por acordo ou condenação).
Recentemente, o PG dobrou a aposta e está patrocinou a criação da Fundação Ações do Rio Doce, para abrir outro processo pelo rompimento da barragem da Samarco, desta vez tendo como ré principal a Vale, na Holanda.
As vítimas são 77 mil pessoas físicas, 1 mil empresas, 20 instituições religiosas e sete municípios. O argumento é de que são pessoas que ficaram de fora da ação inglesa.
O PG se posicionou por meio de nota: “As discussões da repactuação têm uma sobreposição mínima com a ação inglesa, cujo julgamento de responsabilidade está marcado para começar em outubro deste ano. O processo movido na Inglaterra por cerca de 700 mil pessoas - entre quilombolas e povos indígenas - atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão busca reparação por danos morais e materiais. Já os recursos da repactuação são em grande parte direcionados à União Federal e aos estados de MG e ES", afirma o CEO Thomas Goodhead.
"Na verdade, a ação inglesa é o único fórum em que as pessoas afetadas são ouvidas e devidamente consideradas individualmente em suas perdas."
E adiciona: "O Pogust Goodhead apoia uma resolução abrangente para o desastre de Mariana, a fim de buscar uma reparação plena e justa por todos os danos. Embora as instituições judiciais brasileiras estejam tomando medidas para responsabilizar as mineradoras, isso é apenas parte da solução."
O desafio da reconstrução
De volta à Mariana, tudo novo – incluindo o saneamento dos dois povoados, que não existia antes do desastre. Ainda assim, a sensação dos moradores ainda é de estranhamento, sublinhando o imenso desafio de tentar reconstruir algo do zero e retomar a vida como ela era dez anos atrás.
“Para quem estava acostumado a viver na roça, isso aqui é um condomínio”, afirma uma das moradoras de Novo Bento.
Três distritos de Mariana foram diretamente atingidos pela lama em 2015: Gesteira, Paracatu e Bento Rodrigues. Em Gesteira, sem um consenso para o reassentamento, foi feito um acordo de pagamento em dinheiro para que os moradores pudessem se instalar em outro lugar.
Já para Paracatu de Baixo e Bento Rodrigues novos assentamentos foram construídos, a 3 quilômetros e a 9 quilômetros, respectivamente, dos antigos povoados.
Quem perdeu casa, pôde optar por reassentamento na vila reconstruída, casa em outro lugar ou ressarcimento em dinheiro. Até o começo de maio, Novo Bento tinha 91 famílias reassentadas e Paracatu, 43. Antes do rompimento, Bento Rodrigues tinha 180 famílias (pouco mais de 700 pessoas) e Paracatu, 67 famílias (264 pessoas).
Nos dois casos, as casas atingidas pela lama foram reassentadas, buscando replicar a configuração da vila anterior: se a casa era ao lado da igreja, na nova configuração também fica ao lado da igreja nova. Os vizinhos seguem os mesmos.
Os imóveis foram reconstruídos respeitando os tamanhos originais, mas também as exigências de estilo dos moradores, numa tentativa de dar a eles protagonismo de como gostariam de que fosse a nova moradia.
Isso resultou na mais variada paleta de cores e tipos de acabamento – em uma das casas, cada um dos cômodos tem um tipo de revestimento. Há ainda uma grande quantidade de retrabalho: há aqueles que ainda não receberam suas chaves por não aprovarem o projeto de arquitetura, que em alguns casos já chegou à versão 38.
Uma viagem pelo Google Maps dá diferença da vida antes de depois o desastre.
Ainda é possível acessar as imagens de 2012 da pacata Bento Rodrigues, com casas simples e térreas. O vilarejo ficava em um terreno bem mais plano do que o atual. Ele foi um escolhido pela Renova, com participação de entidades municipais e comunidades, mas a topografia irregular dificulta o cultivo de pequenas hortas e criação de animais, que eram comuns na Bento antiga.
À frente da Associação dos Hortifrutigranjeiros de Bento Rodrigues (Ahobero), Keila Vardeli Fialho dos Santos recebeu sua casa em agosto, logo após completar 40 anos, mas só agora a Ahobero está saindo das cozinhas temporárias alugadas em Mariana desde o rompimento para a produção do principal produto da associação: a geleia de pimenta biquinho.
A associação recebeu recentemente seu imóvel com cozinha industrial e uma área para o plantio e coleta da pimenta, principal matéria-prima.
“Desde o rompimento tivemos que comprar os ingredientes, o que aumenta nosso custo de produção e pressiona as margens, tirando competitividade para vendermos para mais lugares além dos restaurantes, bares e comércios de Mariana e entorno”, diz a presidente da associação.
A associação tinha 12 colaboradores fixos. Hoje, tal qual a redução do tamanho dos distritos, a associação tem 7 pessoas fixas.
“Foi um processo pensado desde o começo em conjunto. Infelizmente, não dá para voltar as coisas como eram antes, nós reconhecemos isso desde o instante um. Mas a prioridade foram as indenizações e fazer reconstrução junto com a comunidade”, diz Fernanda Lavarello, diretora de assuntos corporativos da BHP no Brasil.
Procurada, a Vale não quis se pronunciar e reafirmou por nota “seu compromisso com as ações de reparação e compensação relacionadas ao rompimento”.
Hoje, faz 3141 dias que a barragem de Fundão rompeu.
*A repórter Raquel Brandão viajou a convite da BHP. A matéria foi atualizada para incluir o posicionamento do escritório de advocacia Poogust Goodhead.
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Raquel Brandão
Repórter Exame INJornalista há mais de uma década, foi do Estadão, passando pela coluna do comentarista Celso Ming. Também foi repórter de empresas e bens de consumo no Valor Econômico. Na Exame desde 2022, cobre companhias abertas e bastidores do mercado
Natalia Viri
Editora do EXAME INJornalista com mais de 15 anos de experiência na cobertura de negócios e finanças. Passou pelas redações de Valor, Veja e Brazil Journal e foi cofundadora do Reset, um portal dedicado a ESG e à nova economia.