Ryan Gosling e Tom Rothman, presidente da Sony Pictures: defesa das salas de cinema (Alberto E. Rodriguez/Getty Images)
Rafael Kato
Publicado em 3 de abril de 2017 às 12h11.
Última atualização em 3 de abril de 2017 às 14h18.
Reportagem publicada originalmente em EXAME Hoje, app disponível na App Store e no Google Play. Para ler reportagens antecipadamente, assine EXAME Hoje.
LAS VEGAS — “Netflix, my ass!”. O brado, proferido pelo presidente da Sony Pictures Entertainment Motion Pictures, o braço de cinema da Sony, Tom Rothman, veio logo no evento de abertura. A platéia do Colosseum de Las Vegas — 5,000 executivos de distribuição e exibição, donos e presidentes de cadeias de cinema — urrou em uníssono. Estava aberta a sétima edição da CinemaCon, o maior evento de exibição cinematográfica dos Estados Unidos — e seu tema informal, obsessivamente discutido nos bastidores e nos veículos especializados durante as semanas anteriores, acabara de ser expresso do modo mais eloquente possível: qual o futuro do negócio da exibição cinematográfica na era do streaming?
A batalha entre o cinema-fora-de-casa versus o cinema-em-casa não é nova. Na década de 1950 o inimigo era a televisão– como competir com entretenimento sendo servido na casa das pessoas, sem custo? (A resposta: grandes filmes épicos; a criação de divisões voltadas para produção de TV e, mais adiante, a aquisição de todas as grandes redes de TV pelos grandes estúdios). Nas décadas de 70 e 80, o fantasma aterrador era o home entertainment – video cassete, dvds, blu ray, TV a cabo/satélite. (A resposta: grandes filme de ação, com cenas espetaculars e barulhentas; a criação de departamentos exclusivos de home entertainment, com produtos específicos para o segmento; e a aquisição/criação de canais de TV paga.)
Por que seria diferente com a internet, a expansão da banda larga e as plataformas de streaming? Através de seus investimentos na TV por assinatura muitos estúdios já fincaram suas bandeiras no admirável mundo novo do streaming, com versões online de seus canais. O ritual anual da CinemaCon sublinha o outro lado da questão: todas essas manobras dos grandes estúdios foram muito boas… para os estúdios; uma vez por ano, contudo, é preciso queimar incenso no altar dos donos de cinemas, nem que seja para apaziguar uma ira que já dura meio século.
A CinemaCon é a encarnação recente da ShoWest, evento da Associação Nacional de Donos de Cinemas que serviu de templo sacrificial durante décadas, sempre em Las Vegas. A convenção mudou de nome (assumidamente inspirada pela ComicCon) e local – do complexo MGM para o Caesar’s Palace, com o imenso Colosseum em anexo – mas os rituais durante seus cinco dias de duração são os mesmos.
Na área de exibição, fornecedores de produtos e serviços para cinemas mostram suas últimas novidades – este ano a tendência são os assentos interativos e a incorporação de realidade virtual para proporcionar uma “experiência imersiva” na sala de cinema (um fornecedor oferece poltronas que balançam, tremem e jogam água e fumaça nos espectadores).
No teatro, um por um, os grandes estúdios apresentam seus novos lançamentos, com clipes, trailers, a presença muito bem comportada de suas maiores estrelas e discursos entusiasmados de seus altos executivos, todos afirmando que tiveram o melhor e mais lucrativo ano de suas vidas, que cinema (entendido como cinema visto no cinema) é e sempre será a maior diversão e que os donos de salas de exibição são essenciais, seus grandes amigos, seus maiores aliados.
“Mas ninguém fala do elefante na sala, que é a Netflix e seus similares”, diz um analista veterano de muitas convenções. De fato – enquanto os presidentes batem no peito no palco do Colosseum, os corredores do Caesar’s Palace são ocupados com discussões sobre “windowing” – literalmente, “janelando”, ou seja, determinando se e quando se deve oferecer um filme para exibição doméstica via streaming. “Porque é inevitável”, diz o mesmo analista, continuando seu raciocínio. “Não se trata de oferecer ou não títulos. Trata-se de quando e por quanto, só isso.” Ele pausa. “Esta indústria sobreviveu porque soube se adaptar. Por que seria diferente agora?”
Dias antes da abertura da CinemaCon 2017, os veículos especializados anunciaram que vários estúdios estavam seriamente considerando a hipótese de lançamentos quase simultâneos de seus maiores filmes através de plataformas online, por “ingressos virtuais” da ordem de 30 dólares. Ano passado a CinemaCon viu a estreia do Screening Room, startup de Sean Parker —fundador do serviço de músicas Napster — que tem exatamente esse modelo de negócios. Houve urros, ranger de dentes e ameaças de boicote por parte dos donos de cinema; mas cá está o Screening Room de novo na CinemaCon, e os grandes estúdios estão, todos, conversando com Sean Parker, testando preços — 30 dólares? 40 dólares? 50 dólares? — e janelas aceitáveis para os donos de cinema. Não ao mesmo tempo mas então quando? Duas semanas depois? Um mês depois? 45 dias depois?
A Warner, segundo maior market share mundial em 2016, com uma renda bruta de 4,9 bilhões de dólares em ingressos vendidos, não precisa nem pensar em plataformas adicionais. Se sua aquisição pela AT&T for homologada, o estúdio já terá uma vasta rede de opções para streaming on demand, entre o ATT U-Verse e a DirecTV e sua plataforma DirecTVNow.
Não por acaso que o discurso de sua executiva Sue Kroll, presidente de marketing de distribuição, foi o mais vago na abordagem da plataforma ideal para os títulos do estúdio, e o mais enfático quanto à necessidade de “evoluir e explorar novas opções.” O diretor Christopher Nolan, da franquia Batman, devoto do cinema tradicional, fã do 35 mm e responsável por muitos dos bilhões nos cofres da Warner ao longo dos anos, subiu ao palco logo depois de Kroll para apresentar seu novo filme, o drama de Guerra Dunkirk, e abriu os trabalhos sem meias palavras: “O único modo de ver meus filmes é no cinema. Porque eu os faço para serem vistos no cinema.”
A Netflix não está na CinemaCon. Seu modelo de negócios, muitos observadores com quem conversei afirmam, é mais semelhante ao das redes de TV paga, e ela deveria ser considerada uma ameaça maior a elas que aos donos de cinema. Entretanto, com 93,8 milhões de assinantes mundialmente e o cacife para bancar a produção dos filmes que o estúdios não mais se interessam em fazer (as apresentações deste ano, como no passado recente, se dividiram basicamente entre franquias, reboots, super-heróis e terror/scifi), a Netflix pairou sobre os corredores do Caesar’s Palace como uma espécie de assombração.
Amazon, plataforma online menos assustadora para donos de cinema, compareceu à CinemaCon trazendo vários ramos de oliveira e pombas brancas, por assim dizer. Ao contrário de sua maior rival (Netflix), a Amazon dá ampla folga à janela de exibição em cinema, o que a faz uma presença constante em festivais de elite (Cannes ama a Amazon) e no Oscar (com os premiados Manchester a Beira Mar e O Apartamento). “Ano passado fizemos uma promessa a nossos fornecedores e nos mantivemos fiéis a ela”, disse o vice-presidente de cinema da Amazon Jason Ropell em sua apresentação no Colosseum. “Acreditamos num lançamento completo em cinemas. Nossos assinantes gostam de bons filmes, e preferem vê-los no cinema.” Foi aplaudido de pé.