Torcida: , as dificuldades de conversão nesses dados em resultados econômicos desafiam a indústria do futebol (Alexandre Schneider/Getty Images)
Redação Exame
Publicado em 10 de abril de 2023 às 20h04.
Última atualização em 18 de abril de 2023 às 09h41.
Entender as diferenças entre torcedores apaixonados e fãs, e o quanto os dois podem fazer parte do dia-a-dia dos clubes, mas de um jeito diferente, parece ser ainda o grande enigma vivido pelo mercado para entender o papel de quem torce fervorosamente e principalmente de quem consome.
Nesta segunda-feira, 10, mais uma pesquisa (da CNN Esportes, Rádio Itatiaia e o instituto Quaest) entre as maiores torcidas do país foi divulgada apontando aquilo que já acontece há alguns anos, com os principais clubes entre os primeiros.
Apesar dos números vistosos e do quanto eles representam em milhões espalhados pelo país, as dificuldades de conversão nesses dados em resultados econômicos desafiam a indústria do futebol e geram uma sensação de superioridade numérica que não reflete a realidade.
"Muitas vezes os clubes absorvem esses números para fazer cálculos absolutos de torcidas, e desconsideram que nem todo mundo gosta de futebol ou não consome. Uma criança de 2 anos de idade conta entre a população do país, mas dificilmente movimenta dinheiro. Pode ser filho de um pai apaixonado que faça o papel de transferir dinheiro em nome dela para o clube. Mas provavelmente não é o caso da maioria das crianças no Brasil. Ou seja, essa parcela não pode ser contabilizada como alguém que vai gerar negócios e recursos", explica Bruno Maia, especialista em inovação e novas tecnologias do esporte e CEO da Feel The Math.
O executivo deixa claro que as pesquisas de torcidas devem ser sempre ser levadas a sério e servir como base de cálculo para muitas análises que são feitas internamente nas mais diferentes entidades e agremiações. No entanto, é necessário sinalizar que esses números não são suficientes para se desenhar estratégias de negócios, pois eles não refletem o potencial consumidor.
"As pesquisas são importantíssimas, mas neste caso devem ser analisadas como uma informação complementar. O problema está na maneira como as pessoas leem esse dado. É possível usar essas proporções, mas o maior erro é calcular o mercado consumidor e gerador de receitas jogando esse número sobre o total da população brasileira. É excelente que existam pesquisas quantitativas. Nos meus negócios relacionados a esportes, esses números passam em algum momento pelas referências, mas não as encerram, nem definem potencial de um projeto", exemplifica Maia.
'Ache seu um milhão de fãs' é, inclusive, o título do capítulo que abre o livro escrito pelo executivo, 'Inovação é o Novo Marketing', lançado em meados de 2020, durante a pandemia. Ele tenta trazer alguns pontos de que a visão de muitos profissionais e investidores do esporte no Brasil confunde os percentuais de torcedores da população como um indicativo de potencial de geração de receita ou de algum tipo de valor de mercado.
"Quando se faz projeções a partir deste número que é divulgado, sem descontar as características que compõem esse grupo social, corremos o risco de aumentar estimativas de receitas e elevar as frustrações lá na frente", acrescenta.
Guillem Graell, que foi diretor de licenciamento e marcas do Barcelona até o ano passado, contou em trecho do livro que, antes da pandemia, em 2019, apenas três dos vinte clubes da primeira divisão no Brasil tiveram taxa de ocupação média de seus estádios acima de 50%, e o que isso ocasiona de forma prática no modelo de geração de receitas entre uma instituição e seu público.
"Quando um destes times chegar a ter 1 milhão de pessoas dentro do seu banco de dados de fãs, com política de atualização de dados recorrentes, todos eles ativados em uma esteira regular de produtos, serviços e descontos, o mercado brasileiro começará a ter outro tamanho. Times ditos “médios”, ou os mais regionais, que façam esse trabalho primeiro serão maiores que os considerados grandes que ainda estiverem passando seus dias a gargarejar a tal grandeza baseada em pesquisas de audiência", disse.
A informação do relatório tem o mérito de apresentar uma média histórica do século que é mais útil do que uma fotografia do momento, sujeita a maior margem de erro. Além disso, Bruno observa outro ponto importante: "A pesquisa, como um todo, é excelente e traz várias outras informações que precisam ser lidas junto com esses rankings. Ela indica, por exemplo, 12% de não torcedores. Isso já é um elemento que precisa ser considerado por quem for interpretar os dados em busca de estratégias, pois ele altera os percentuais totais".
Outro elemento destacado pelo executivo e que a pesquisa ainda não se debruçou é o número de pessoas que consumiram digitalmente os produtos e ações deste clube nos últimos anos. “Independente de eu gostar ou não disso, é fato que o futebol está virando um negócio sustentado por bem menos gente e com um tíquete médio mais alto do que no século passado. Isso tem a ver com a digitalização do mundo. O potencial de consumo e geração do retorno dos clubes deveria dar um peso muito maior, por exemplo, a esse dado e que ainda é pouco documentado”.
Em determinado trecho do livro, o executivo chega a dizer: "Ter 1 milhão de fãs também vai muito além do que se possa conseguir com um bom programa de sócio torcedor. Ele, por sinal, é importantíssimo e deve ser a base de um programa de dados. Porém é apenas o nível básico de relacionamento do fã. Será necessário criar outras formas de geração e integração de dados, em um sistema convergente e com pessoas especializadas para planejar e potencializar estas informações. Esta é uma corrida em que o futebol brasileiro parte atrasado”.
De acordo com Bruno Maia, o mercado caminha em direção ao modelo de “fan centricity”, no qual o dinheiro se move quanto mais você conhece um a um dos seus fãs-consumidores. "Provavelmente nenhum clube no Brasil, por maior que seja, consiga afirmar ter mais de 500 mil consumidores recorrentes gerando as receitas que apresentam anualmente. E não vale contar aqui os seguidores em redes sociais, por exemplo. Tem que olhar para o próprio banco de dados e estar sendo convincente na comunicação com eles para que estejam comprando recorrentemente seus produtos", acrescenta.
Por fim, segundo ele, é necessário deixar de lado o pensamento antiquado ainda predominante dentro da indústria de seguir simplesmente a lógica. "Se somos 210 milhões de brasileiros. Se o clube “X” tem 10% de torcedores. Logo, seriam 21 milhões de pessoas que pra atingir e gerar dinheiro. Não é verdade. Por isso eu digo que isso ainda é herança do modelo antigo do relacionamento do futebol com seus investidores, baseado em comunicação de massa, exploração de mídia em camisa, placas e afins, numa época em que as torcidas eram tratadas como uma massa desforme, sem cara, nome ou CPF. Se era grande, ótimo. A TV dava conta de alcançar, levar a marca e influenciar no consumo, afinal não existiam outros pontos de contato na vida daquele torcedor".