Danielle Torres, sócia de Práticas Profissionais na KPMG no Brasil (Alex Silva/Reprodução)
Marina Filippe
Publicado em 29 de janeiro de 2022 às 08h00.
Última atualização em 31 de janeiro de 2022 às 10h03.
Com dezessete anos de carreira na consultoria KPMG, Danielle Torres pode crescer profissional e pessoalmente. Ela, que desde outubro ocupa o cargo de sócia de Práticas Profissionais na KPMG no Brasil, viu na empresa um cenário propício para desenvolver suas habilidades técnicas e também estar em um ambiente de trabalho que respeita cada indivíduo. “Nos meus 20 anos expressava uma feminilidade que me fazia ouvir frases como ‘você precisa ser homem’, na KPMG, porém, percebia um ambiente acolhedor, onde a pauta das mulheres já era debatida, assim como em 2007 já havia um sócio abertamente gay”, diz.
Assim, Danielle seguiu na empresa e, em 2015, passou a adquiri consciência de que é uma mulher trans, ou seja, que não se identifica com o gênero masculino socialmente atribuído a ela ao nascer (assim como o homem trans não se identifica com o gênero feminino atribuído no nascimento). “Sou trans desde que nasci, mas em 2016 fiz uma transição social de forma ampla”. A partir dali, a executiva teve suporte da companhia para utilizar o nome social, os pronomes no gênero feminino, e o que mais fosse necessário.
Ela, que é considerada a primeira executiva trans do Brasil, afirma que hoje o tema não é uma questão no seu dia a dia profissional. “Cheguei num estágio que a transição acabou, no sentido que ele não gira em torno de mim no trabalho. Eu vejo a questão de ser trans muito mais numa doação minha ao social. Não sou mais a executiva trans, eu sou uma sócia de práticas profissionais da KPMG”.
A concretização dessa sensação se deu também em uma experiencia de Danielle na unidade da KPMG em Nova Iorque, em 2019, onde em nenhum momento seu gênero foi abordado. Com isto, ela mesma resolveu comentar com alguns colegas, cinco meses após sua chegada, que estaria aberta para falar sobre a transgeneridade, mas ao invés de quaisquer dúvidas recebeu uma resposta acolhedora. “Me disseram apenas que eu era uma colega de trabalho muito querida. Em Nova Iorque a evolução da prática da diversidade acontece há muito tempo”.
No Brasil, desde 2004, se comemora em 29 de janeiro o Dia da Visibilidade Trans. A data, que teve origem a partir da primeira mobilização organizada por ativistas trans para reivindicar direitos, no Congresso Nacional, em Brasília, tem a intenção de dar luz à existência das pessoas trans e promover acesso e equidade. Antes disto, muitos movimentos sociais e passeatas foram realizados por aqui, assim como na cidade americana de Nova Iorque, que tem marcos importantes para a população LGBTI+ (sigla para lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, transgêneros, intersexuais e demais denominações de gênero).
Foi lá, em 28 de junho de 1969, que aconteceu a chamada Revolta de Stonewall (momento que deu origem ao Dia Mundial do Orgulho LGBTI+), quando uma batida policial no bar Stonewall Inn gerou uma série de confrontos entre os guardas e os frequentadores do local, na maioria LGBTI+, que após o incidente percorreram a cidade em passeatas e reivindicaram seus direitos por dias, sendo liderados por pessoas como Marsha P. Johnson e Sylvia Rivera, ambas mais tarde identificadas como pessoas trans, mas na época conhecidas como drag queens – ou seja, quem se caracteriza como alguém do gênero oposto, mas sem implicações na sua identidade sexual ou de gênero. Um famoso exemplo brasileiro de drag queen é a cantora Pabllo Vittar.
Apesar dos avanços nos Estados Unidos, isto não significa que tudo está resolvido por lá. Por outro lado, o Brasil impõe dificuldades ainda maiores à população trans de modo com que Danielle seja uma referência também pela baixa representatividade de trans em cargos de liderança nas empresas que aqui atuam. Neste cenário, estima-se que 90% da população de travestis e trans do Brasil se prostitui devido a dificuldade de inserção no mercado formal de trabalho, seja por preconceito ou por déficit na qualificação profissional causada pela exclusão social, familiar e escolar, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).
Isto, por sua vez, reflete na mortalidade de trans: em 2021 pelo menos 140 pessoas trans foram assassinadas no país. A maior parte das vítimas é jovem, negra, com idade entre 13 e 29 anos e expressa o gênero feminino, o que indica um atravessamento de gênero e raça, além de uma disparidade visto que o Brasil é considerado o país que mais mata essa população e também o que realizada a maior Parada LGBTI+ do mundo.
Empresas
O avanço, contudo, precisa do apoio privado, de modo que mais empresas apoiem as pessoas trans ao longo da vida -- a expectativa média é de apenas 35 anos. Pensando nisto, as companhias BASF, LinkedIn, Natura e Visa ofereceram mais de 54 atividades voltadas para a moda, com treinamentos, consultorias e mentorias, com o objetivo de educar financeiramente e preparar para o mercado de trabalho as mais de 30 mulheres travestis e transexuais que vivem no Centro de Acolhida Especial Casa Florescer, em São Paulo capital. Dentre as participantes, 76% concluíram o treinamento, segundo a ChatClass, edtech responsável pelo aplicativo que viabilizou a entrega do conteúdo de acordo com o tempo e individualidade de cada pessoa.
Já na companhia de energia elétrica EDP, onde 2% dos funcionários se declaram trans e refletem a demografia de pessoas trans no Brasil, se inicia no próximo dia 1 a primeira Escola de Eletricistas exclusivamente para pessoas trans. Ao todo, 115 pessoas se candidataram às 32 vagas oferecidas. Ao longo do curso, com duração de três meses, as participantes contarão com formação profissional completa, ministrada pelo SENAI, e possibilidade de contratação ao término da capacitação. Receberão também materiais didáticos, uniformes e Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), além de bolsa-auxílio e almoço no local.
Para conseguir superar o estágio embrionário de acolhimento e retenção das pessoas trans, as companhias têm começado a buscar especialistas para apoiá-las no processo. Com isto, nota-se também como quando as pessoas trans reconhecem suas oportunidades ao longo da vida e o utilizam para ampliar o acesso. Um exemplo é da especialista em diversidade e inclusão Gabriela Augusto. Formada em direito com bolsa pela PUC-São Paulo, foi na Universidade que ela passou por seu processo de transição. “Ali, ao procurar emprego, tive dificuldade de encontrar lideranças de grupos socialmente minorizados como trans e negras, o que me motivou a mudar a realidade”.
Assim, em 2017, ela começou a preparar e distribuir livretos sobre diversidade e inclusão no entorno do Campus e fundou a consultoria Transcendemos. Como resultado, Gabriela prosperou e se tornou uma referência: foi eleita Top Voice da rede social profissional LinkedIn, ganhou o prêmio de LGBTQ Leadership Award da consultoria McKinsey e foi reconhecida como a primeira brasileira trans na lista da Forbes Under 30.
Com o seu sucesso, a consultoria também avança com mais de 150 projetos entregues, além de 800 empresas contatadas nos últimos doze meses. “Percebo que o interesse das empresas aumentou na pandemia com o escancaramento de casos de violência e exclusão, mas ainda há muito no que amadurecer. As empresas nos procuram sem saber por onde começar, onde estão e para onde ir. É preciso estratégia e mensuração de resultados para que a inclusão seja efetiva”.
No mais recente programa apoiado pela Transcendemos, a empresa de telefonia Tim realiza o Transforma TIM, criado para gerar qualificação e inclusão de pessoas trans no mercado de trabalho. Na primeira edição, estão disponíveis vagas em lojas e no call center. O projeto conta ainda com a parceria da Ampli, edtech Kroton, que vai oferecer bolsas de 100% na graduação para as pessoas contratadas.
As inscrições podem ser feitas até 31 de janeiro pelo site transformatim.com.br. Para participar do processo seletivo, basta ter completado o Ensino Médio. As pessoas que não forem contratadas serão indicadas para oportunidades no parceiro comercial de televendas e também farão parte do banco de talentos LGBTI+ da TIM.
Há ainda quem entenda a necessidade de contratar para além da base. De olho na liderança com pessoas trans, a rede de varejo Casa&Video anuncia seu primeiro programa de trainee para as lojas. O programa terá duração de dois anos, com dez vagas no Rio de Janeiro, onde o trainee vai passar seis meses em cada posição de loja: operador, promotor de cartão, promotor conect e promotor omnichannel, para ao final se tornar um subgerente.
Os participantes receberão uma bolsa de graduação em gestão comercial, e é esperado que eles concluam o ensino superior ao encerramento do ciclo de dois anos do programa. Além disso, a empresa oferecerá auxílio farmácia para quem estiver realizando terapia hormonal e consultoria jurídica para a atualização das documentações dos participantes de acordo com as suas identidades de gênero.
Avanços e desafios
Apesar dos desafios, há avanços a ser comemorados. A TransEmpregos, criada em 2013, e hoje a organização com o maior banco de dados e currículos de profissionais trans fechou 2021 com 1.434 empresas parceiras, o triplo do patamar de 2020. Foram também 4.204 oportunidades postadas, uma variação de +296%, e 797 pessoas empregadas, uma alta de 11%. Entre o perfil dos contratados, 39,4% possuem ensino médio, e 27,5% possuem ensino superior, por exemplo. Nos currículos, raça e escolaridade também foram levantados.
“Há uma consciência maior nas empresas de que há muitas benesses na ampliação da diversidade, incluindo resultados financeiros, melhoria no clima organizacional e mais. Mas, ainda não existe uma empresa incrivelmente pronta para receber funcionários trans. É um trabalho que estamos desenvolvendo e é preciso uma velocidade astronômica de mudança”, diz Maitê Schneider, cofundadora da plataforma de recrutamento TransEmpregos.
O fato de não existir empresa pronta pode repelir bons profissionais trans do quadro de funcionários, independente de quão qualificados eles sejam. Foi o que aconteceu com Noah Scheffel, que em 2010 tinha um cargo de liderança em consultoria para tecnologia e sempre priorizava times diversos, percebendo na prática maior inovação quando, segundo ele, comparado aos outros times.
“Depois de 2015 comecei a ser mais ativistas, fazendo parte de ONGs LGBTI+ e também enquanto pessoa não-branca, foi nesse processo que resolvi me identificar socialmente como homem trans. Estava, em 2018, há quase dez anos na empresa, num cargo confortável e achei que seria tranquilo, me preocupando mais com a reação da filha, que gestei, sou mãe e na época estava com quatro anos”.
Diferentemente do esperado, a filha de Noah compreendeu muito bem que a mãe se identifica como homem -- mais tarde Noah se tornou pai de outra criança -- enquanto que no ambiente de trabalho as pessoas não o respeitaram. “Não utilizavam meus pronomes e cheguei ao ponto de passar o dia sem beber água para não ter de ir ao banheiro”, diz. A exclusão levou Noah a depressão e a ter pensamentos suicidas, culminando em uma internação psiquiátrica.
“Quando cai em consciência me prometi que iria fazer algo para mudar a realidade das pessoas trans que não estavam numa posição de acesso”. Assim nasceu, em 2019, a EducaTransforma. O primeiro projeto estava desenhado para capacitar oito pessoas de forma gratuita durante um ano, mas com a pandemia o formato presencial ficou de lado e em dois dias 1.500 pessoas se inscreveram para um programa remoto de 30 vagas.
“Ali percebi que era preciso também atuar com as organizações em workshops e verificação de ambiente inclusivo, olhando para o uso de nome social, sistemas que garante o pronome correto no plano de saúde e mais”. Deste modo, a EducaTransforma terminou 2021 com mais de 400 pessoas formadas nas trilhas, e uma taxa de empregabilidade de 86%. “Em dois anos saímos de 8 para 405 pessoas, que são capacitadas, contratadas e têm um acompanhamento de até seis meses na companhia para garantir o senso de pertencimento e a inclusão de fato”, afirma.
Para Noah, as companhias que passam por esse processo de inclusão percebem benefícios como retenção de 92%. “As pessoas trans são, em geral, gratas quando estão empregadas em ambientes de trabalho preparados para recebê-las, isto é um ativo enorme para todos os envolvidos. Toda a sociedade ganha com a inclusão de pessoas trans em programas de capacitação e vagas no corporativo”, diz.