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O marco temporal e a relação dos povos indígenas com a terra

A narrativa indígena é um dos núcleos que constitui a história da nação. É espantoso que, séculos depois do achamento, ainda exista luta por direitos

Tribo indígena dos Tatuyos da Amazônia (Leandro Fonseca/Exame)

Tribo indígena dos Tatuyos da Amazônia (Leandro Fonseca/Exame)

Publicado em 18 de junho de 2023 às 07h00.

Luiza Alvernaz e Felipe Veasey

A rica história do Brasil, que aprendemos nos livros didáticos desde a pré-escola, é multifacetada. É uma daquelas obras de arte, como as esculturas do francês Matthieu Robert-Ortis, que mudam completamente a depender do ângulo em que são analisadas. É, também, uma espinha de peixe, com suas diversas ramificações, costelas que sustentam uma estrutura maior. A história brasileira é, sem dúvidas, uma porção de coisas - e não somente por sua extensão temporal ou complexidade própria, mas pela diversidade de versões que a compõem. A narrativa indígena, desta forma, é apenas um dos mais variados núcleos (ou costelas) que constitui e dá sentido àquilo que chamamos de nação.

Apenas recentemente, no entanto, que a relevância da participação indígena na história brasileira foi reconhecida. Até poucas décadas atrás, os livros escolares de história resumiam o passado a partir de um ponto de vista estrangeiro. O achamento do país era referido como seu descobrimento, ignorando os nativos que o encontraram antes; o tratamento desumano concedido aos povos originários era justificado por uma necessidade de civilidade e princípios católicos; os massacres, estupros, invasões, explorações e muitos outros, apagados pela glória portuguesa de conquistar um território mais extenso que os espanhóis. Isso mudou, é fato: os materiais educativos, agora, buscam abordar uma visão mais inclusiva, expondo pontos de vista que não se restringem ao europeu e evidenciando as atrocidades cometidas pelos colonizadores.

Reconhecendo tal mudança na postura didática, é espantoso analisar que o grupo étnico em questão ainda tem seus direitos renegados ou questionados por autoridades brasileiras. Necessidades básicas, fundamentais a qualquer cidadão, tornam-se motivo de debate quando aplicadas aos povos indígenas, configurando uma incessante luta política cujo propósito é defender um povo que já foi muito assassinado e oprimido.

O marco temporal

Nas últimas semanas, a questão do marco temporal estampou as manchetes dos mais diversos jornais do país. Isso porque a Câmara dos Deputados aprovou, no dia 30 de maio, o polêmico Projeto de Lei que, no momento, tramita no Senado. A ação, que não é apoiada pelos indígenas, defende que esses teriam direitos apenas sobre as terras que já fossem ocupadas por eles no dia da promulgação da Constituição Federal de 1988, vigente até a atualidade.

Um plano como este, se posto em prática, entra em conflito direto com as demandas indígenas para viver de acordo com as suas respectivas culturas e costumes - ambos de raízes tão antigas que ocultá-los é equivalente a ignorar um importante constituinte da identidade dos nativos brasileiros.

Antes mesmo do desembarque português no território brasilense, os povos em questão já possuíam um grau elevado de maestria em vários campos práticos territoriais. Na agricultura, cultivavam alimentos como a mandioca, o guaraná e o milho, além de utilizar adubo para enriquecer a terra. No âmbito medicinal, utilizavam as plantas que os rodeavam como base para a elaboração de inúmeros medicamentos, entre eles diversos anestésicos, alguns dos quais ainda são estudados atualmente. Em relação à caça, atividade essencial para a sua sobrevivência, conheciam técnicas altamente eficazes para captura de animais, como a pesca por envenenamento. Somado a isso, usavam também recursos naturais para a manufatura de redes, cestos e peneiras, e dominavam a cerâmica para a fabricação de vasos e urnas funerárias.

Tais práticas, típicas do estilo de vida levado por estes povos, são, inclusive, defendidas pela própria Constituição de 1988, usada como justificativa para a implementação do marco temporal. O Artigo 231 prevê que "São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens", sendo “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar, e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições".

O marco temporal, assim, impossibilita a execução de atividades intrínsecas ao modo de vida nativo pois os priva de uma extensão territorial necessária para sua plena efetivação. Sem espaço, é impossível realizar a pesca, o artesanato e a colheita de alimentos, por exemplo. Além disso, afeta diretamente a relação destes com direitos arduamente adquiridos ao longo das décadas passadas. Ao desconsiderar toda a extensão povoada pelos indígenas nos últimos quase 35 anos, despreza-se também todos os seus espaços simbólicos conquistados, como a quebra de preconceitos ou o reconhecimento de sua importância em ocupar cargos públicos. O movimento indígena brasileiro que, sem dúvidas, cresceu exponencialmente com sua extensão às plataformas virtuais, vê-se diante de uma perda irreparavelmente danosa que representa muito mais do que uma região física delimitada, mas anos de história, luta e vitórias.

Somado a isso, ele se abstrai dos recentes conflitos territoriais que marcam o século XXI ao configurar uma migração forçada de diversos povos das áreas que originalmente ocupavam. A briga por regiões de solos férteis e abundância de recursos naturais (para serem explorados), demarcados por direito aos indígenas, não é nada recente - ela, na verdade, constitui o passado sangrento que marca a história do país. Desde 1500, com a chegada dos portugueses ao Brasil, os variados povos indígenas foram vítimas de diversas injustiças e centenas de crimes hediondos. Perderam cada vez mais espaço em um território que era, quase que inteiramente, seu. Foram colocados de escanteio sob a ganância portuguesa imperialista, que valorizava mais a quilometragem da área que exercia seu domínio, do que vidas humanas. Descaso este que prevalece de maneiras distintas, porém igualmente abusivas: perseguição a ativistas, invasão de áreas protegidas e poluição dos rios e florestas onde vivem, por exemplo.

Desta forma, inúmeras etnias, que tiveram de renunciar a seus territórios originais dado às disputas em questão, viviam, na data da promulgação da Constituição, em terras reduzidas que não correspondiam à extensão tradicional que deveriam ocupar. Ademais, comunidades que foram obrigadas a se deslocar nos últimos anos, ao serem coagidas a voltar aos seus antigos habitats, podem deparar com zonas completamente dizimadas pela exploração natural, que as impedem de viver de acordo com seus costumes.

Ainda que haja a exceção da regra instituída pelo marco temporal em caso comprovação da existência de conflitos possessórios até a promulgação da Constituição, a brevidade de tais confrontos, dada à impossibilidade dos povos indígenas de resistir à expulsão, torna a validação impossível. Além disso, é inviável atestar disputas passadas por meio de ações judiciais, uma vez que todo indivíduo indígena, antes da constituição, era impossibilitado de participar como parte legítima em casos judiciais.

Paralelamente, é negada também a imensa diversidade das 305 etnias indígenas que vivem no território nacional e que possuem modos de ocupação e vivência completamente diversos entre si. Algumas, como a Panará e Gavião Parkatejê, vivem em aldeias circulares e com várias casas. Outras, como os Yanomami e as Etnias do Rio Negro, vivem em malocas que reúnem várias famílias e constituem moradas comunitárias. Existem ainda grupos étnicos nômades, como os Awá-guajá, que não vivem em assentamentos fixos. Devido a esta diferença de costumes, a tentativa de classificar e analisar se uma terra estava ou não sendo ocupada por indígenas na data da promulgação da Constituição não pode ser realizada da mesma maneira para todas as comunidades, fator que é desconsiderado pelo marco temporal.

Segundo o jurista José Afonso da Silva, em seu livro Curso de Direito Constitucional Positivo, para realizar tal especificação, é preciso evitar definir “o que é habitação permanente, modo de utilização, atividade produtiva, ou qualquer das condições ou termos que as compõem, segundo a visão civilizada, a visão do modo de produção capitalista ou socialista, a visão do bem-estar do nosso gosto, mas segundo o modo de ser deles, da cultura deles [indígenas]” . Desta forma, a desconsideração do modo de vida nativo nas diretrizes do marco temporal se firma como insensata na medida em que desatende as vontades dos povos indígenas, principais afetados pelo projeto de lei, e agrupa tais povos numa mesma categoria, contrariando o reconhecimento da organização social indígena outorgada no artigo 231 da Constituição vigente.

Garantir não somente direitos a este povo, mas também respeitar o avanço de seus êxitos, é o ato mínimo de indenização a todo o sofrimento e crueldade vivenciados por eles. A fim de diminuir as desigualdades e injustiças que ainda permeiam na atualidade e impactam tanto a vida indígena brasileira, é fundamental buscar compreender as necessidades e experiências desta comunidade. O método promovido pelo marco temporal na demarcação de terras indígenas, portanto, além de incoerente, banaliza a violência sofrida pela comunidade indígena desde 1500. O Brasil, como nação altamente diversa e multicultural, precisa aprender a respeitar a totalidade de sua espinha de peixe, incluindo a importância de cada uma de suas costelas.

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