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Saúde inclusiva: Evento em São Paulo reúne pesquisadores, médicos e a imprensa para discutir iniciativas em saúde (Divulgação/Divulgação)
Repórter de ESG
Publicado em 27 de julho de 2023 às 09h05.
Última atualização em 27 de julho de 2023 às 11h54.
Em Oiapoque, região transfronteiriça entre o Brasil e a Guiana Francesa, o médico Alceu Karipuna trabalha com ações de saúde, educação e valorização da cultura indígena. Nesta quarta-feira, 26, Alceu, que é Karipuna, povo indígena da região do Amapá, esteve em São Paulo, a 4 mil quilômetros de sua casa, para ministrar uma palestra em evento do Hospital Israelita Albert Einstein, um dos mais reconhecidos centros de medicina da América Latina.
“Eu entendo que o evento parte de uma instituição e de representações que, a meu ver, não estão diretamente ligadas a ações efetivas dentro de territórios indígenas”, disse Karipuna à EXAME. “Mas, entendo que minha participação permite abrir essas discussões, e, a partir disso, poder executar, trazer representantes de associações, comunidades e profissionais que trabalham realmente no nosso meio para que essas instituições possam pensar em iniciativas e projetos.”
Segundo dados do censo do IBGE, mais de 1,6 milhão de pessoas se declaram indígenas no Brasil. Essa população representa 305 etnias, que falam 270 idiomas diferentes, e está distribuída pelo território nacional. Essa é a dimensão das populações indígenas: diversas. Para Karipuna, essa diversificação influencia diretamente na forma com que as políticas públicas voltadas para saúde indígena devem ser aplicadas – considerando as especificidades de cada povo. O Dr. Karipuna trabalha na região de três terras indígenas demarcadas e homologadas: Uaçá, Galibi e Juminã.
No evento, promovido também pela revista Nature Medicine e a empresa farmacêutica Takeda, Karipuna explicou que os povos indígenas têm uma relação diferenciada com a noção de saúde. A visão indígena se difere do conceito propagado por populações não-indígenas, que se concentra na ideia que a saúde estaria relacionada à ausência da doença. “Já para as comunidades indígenas, a saúde vai muito além, se encaixando no conceito de ‘bem viver’, que engloba diversos fatores que significam, para aquela população, um estado de bem-estar”, diz. Saúde, para os povos originários, diz respeito à relação familiar, harmonia com o meio ambiente, diante de valores culturais.
O médico também aproveitou o momento para ressaltar a importância do sistema de saúde tradicional dos povos indígenas, que conta com figuras como parteiras, pajés e enfermeiros, por exemplo. Eles correspondem ao primeiro grupo de pessoas com quem um paciente indígena tem contato ao acessar a saúde nas aldeias brasileiras. “É muito importante que a gente dê o mesmo valor para esse sistema de saúde”, afirmou Karipuna.
Porém, Karipuna traz um contraponto: nem sempre esses cuidados locais são suficientes, diante de doenças e quadros mais graves, os povos indígenas precisam se dirigir às cidades. E é nesse momento que entra o acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS), que nos territórios indígenas é gerenciado pela Secretaria Executiva de Saúde Indígena (SESAI), vinculada ao Ministério da Saúde. “A SESAI é gerida regionalmente por 34 distritos sanitários especiais indígenas”, disse o doutor.
A falta de estruturação da rede é um dos grandes desafios vividos pelos povos indígenas no acesso à saúde de qualidade – e um dos pontos que mais gera disparidades entre pessoas indígenas e não-indígenas. “Pacientes indígenas têm dificuldade na marcação da consulta ou a consulta é desmarcada. Eu acho que são problemas de uma rede desestruturada. Seja com Secretaria Municipal, Estadual ou Federal, através da SESAI. Esse é um ponto fundamental: a importância da estruturação de uma rede para dar um fluxo adequado para o acesso desses pacientes”, disse Karipuna.
Para ele, as parcerias e a participação das lideranças locais são possíveis caminhos para o fortalecimento do cuidado com os povos indígenas. “A gente sabe que no governo anterior muitos dispositivos relacionados à saúde indígena, que consideravam a questão da participação social, foram extremamente silenciados. Agora, passamos por um novo período que tem que ser dado bastante importância para a agenda. Eu tenho batido nessa tecla da gente ouvir as regiões que estão envolvidas para saber quais são as necessidades diferentes, para que realmente se tenha um acesso mais adequado”, disse o médico.
Outro ponto que o médico traz para a discussão é a importância da valorização em pé de igualdade entre a medicina alopática e a medicina tradicional indígena ou de grupos vulneráveis. Karipuna ressalta a necessidade de inclusão de especialistas indígenas, como parteiras, em equipes médicas – o que não acontece em muitos locais porque ainda não há a legitimidade jurídica para a participação dessas figuras em equipes multidisciplinares. Possibilidade que vem sendo estudada pelo hospital da fronteira, de acordo com o médico.
Karipuna conta que, desde 2015, durante o último ano do curso de Medicina da Universidade Federal do Amapá (UNIFA), há um estágio no internato médico onde os alunos têm a possibilidade de vivenciar a realidade do atendimento de saúde em ambientes rurais e indígenas. Os alunos vão a comunidades tradicionais em ambientes rurais, como populações do campo, de pescadores extrativistas e regiões quilombolas. Em um segundo momento, as turmas são levadas para as terras indígenas. O projeto faz parte de uma discussão prática de antropologia e saúde, sobre o sistema de saúde oficial.
Além dos atendimentos promovidos pela universidade, há uma troca: os acadêmicos recebem uma vivência junto com os especialistas das comunidades, com diversas atividades. Há um mês, os alunos tiveram uma troca de experiências com uma parteira, que também é a cacica da comunidade indígena, sobre cuidados de saúde familiares, a forma com que os partos acontecem nas comunidades, a importância das plantas e da espiritualidade no processo de cuidado com a saúde. “Esse foi um dos dias mais proveitosos em que eles puderam conhecer o processo que os povos indígenas passam até chegar aos atendimentos nas cidades”, afirmou Karipuna.
Já no Instituto Akari, que começou por volta de abril de 2020, os participantes promovem atendimentos em saúde, odontologia e segurança alimentar de maneira voluntária. A iniciativa não-governamental teve importância no contexto da pandemia para ajudar nas aplicações das medidas governamentais. Nesse momento, o Instituto quer contribuir com a construção do ambulatório indígena na Universidade Federal do Amapá, demanda que surgiu da universidade e das lideranças indígenas.
Segundo o médico, o limite de atuação do setor privado é muito tênue, porque também há todo um contexto de interesses financeiros envolvidos. Mas, ele acredita que existe a possibilidade de instituições privadas atuarem a partir de uma leitura de responsabilidade social como parceiras – sem que a classe roube para si o protagonismo dos povos indígenas e de associações locais. “Outro ponto importante é não tirar o papel do governo, que lida com obrigações a serem cumpridas. Mas por que não podem agregar como parceiros? Por que essas ações não podem vir da iniciativa privada?”, disse Karipuna.
O médico conclui seu comentário trazendo a perspectiva dos povos indígenas: “Os povos passam por um período de muita disposição para novos projetos e novas parcerias. As comunidades indígenas estão de braços abertos para iniciativas que possam contribuir com uma melhoria daqueles locais, a partir de uma construção coletiva.”