Mano Brown, fundador do Racionais MCs: “Nos movemos com utopias, 95% chapação e 5% razão.” (Mauricio Santana / Colaborador/Getty Images)
Rodrigo Caetano
Publicado em 1 de junho de 2022 às 11h12.
“O pessoal conhece do Racionais pra frente”, afirma Mano Brown. O papo era sobre a evolução do rap, estilo musical que surgiu de uma gíria, como explica Brown. “É difícil fazer rap. O Kondzilla é um gênio e não conseguiu”. Fundador do Racionais MCs, o maior grupo de rap brasileiro, Brown conversava com Semayat Oliveira, jornalista que o acompanha no podcast Mano a Mano, um dos maiores sucessos da plataforma Spotify. Ela, uma das criadoras do coletivo Nós, Mulheres da Periferia, trabalhava há mais de uma hora no roteiro do episódio. E concordou.
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Kondzilla, fundador do maior canal do YouTube brasileiro, é o convidado do próximo episódio de Mano a Mano, que vai ao ar nesta quinta-feira, 2. Ele ainda não havia chegado. Oliveira trouxe a informação de que Kond pensava em fazer rap antes de se enveredar pelo funk. Os Racionais eram sua maior influência. Levará algum tempo para mensurar o impacto que essas duas gerações de artistas negros de periferia causaram na sociedade e na cultura brasileiras. É tarefa para historiadores.
Além de artistas, Brown e Kondzilla são empresários bem-sucedidos, e nem sempre reconhecidos por suas habilidades nos negócios. Rotulados pelo mainstream como violentos e pornográficos, eles driblaram as barreiras de entrada impostas pela indústria da música com criatividade e forte senso de oportunidade.
Brown se tornou um case de sucesso em 1997, com a estratégia de venda do álbum Sobrevivendo no Inferno. Sem acesso às grandes distribuidoras, os Racionais apostaram num marketing de guerrilha e no corpo a corpo. Chegaram a 1 milhão de cópias vendidas em menos de 1 ano. Kond foi pioneiro no uso dos canais digitais e o primeiro a ter um vídeo com 100 milhões de visualizações no YouTube. Os sucessos comerciais não comoveram a elite econômica, que os acusou de “apologia ao crime”.
No caso dos Racionais, é mais fácil entender o motivo. As letras do grupo falam de uma época de extrema violência e falta de oportunidades nas periferias. Músicas como “O Homem na Estrada” e “Fim de Semana no Parque” descrevem os ciclos de violência vivenciados pelos moradores de favela nos anos 90, do ex-detento caçado por grupos de extermínio por um crime que não cometeu, ao menino que testemunha, pelas grades de um clube de elite, a brutalidade da desigualdade social – este menino era Brown.
É preciso muito racismo para entender esses versos como apologia ao crime. Por essência, Brown é um poeta urbano e o maior cronista da periferia. Ele tem uma capacidade única de síntese. Descreve como poucos os sentimentos e a realidade de quem está na base da pirâmide social.
Como em Capítulo 4, Versículo 3: “Se eu fosse aquele cara que se humilha no sinal, por menos de 1 real, minha chance era pouca / Mas, se eu fosse aquele moleque de touca, que engatilha e enfia o cano dentro da sua boca... De quebrada, sem roupa, você e sua mina / Um dois, nem me viu, já sumi na neblina.”
Ou Vida Loka, parte 2: “Firmeza, não é questão de luxo, não é questão de cor / É questão que fartura alegra o sofredor / Não é questão de preza, nego, a ideia é essa / Miséria traz tristeza e vice-versa / Inconscientemente vem na minha mente inteira / Na loja de tênis, o olhar do parceiro feliz / De poder comprar o azul, o vermelho / O balcão, o espelho, o estoque, a modelo / Não importa, dinheiro é puta e abre as portas / Dos castelos de areia que quiser / Preto e dinheiro são palavras rivais, é? / Então mostra pra esses cu como é que faz.”
As letras dos Racionais abordam uma realidade distinta dos funks de Kondzilla. Elas são focadas na luta diária da periferia contra um sistema que oprime. Porém, Vida Loka, de 2002, talvez a música de maior sucesso do grupo, já apresenta um cenário de poder de compra mais alto. O funk explode como fenômeno musical no final dos anos 2000, no auge da chamada ascensão da Classe C, quando o Brasil experimentava a inclusão de milhões de pessoas na economia. Não por acaso, as letras falam de ostentação.
Kond sabe acompanhar essas ondas. “A música é a arte que consegue comunicar mais rápido os novos momentos”, afirma o produtor. “No governo Lula, a favela foi fazer tudo que nunca fez. Na pandemia, o que fez sucesso foi o funk de superação”. Em 2009, ano em que Kond iniciou sua trajetória, o movimento musical celebrava um momento único de bonança para a favela, que, como diz Brown, “nunca teve algo feito para ela”. O racismo, no entanto, vê problema até na alegria, e Kondzilla foi acusado de incitar a violência ao promover um estilo de vida inacessível aos pobres – como se um preto de BMW fosse motivo para cair no crime, e não os séculos de escravidão e abandono.
Nesse ponto da conversa, os dois falavam sobre economia e modelos de negócios. Brown trouxe para a pauta a polêmica afirmação de Kond, “a favela venceu”. Sueli Carneiro, uma das mais influentes intelectuais do movimento negro, entrevistada no capítulo anterior de Mano a Mano, considerou a frase neoliberal. Brown apresentou outra frase, do rapper americano Snoop Dog, “há mais pessoas que lutam do que pessoas que vencem”. Seu ponto é: uma economia e uma sociedade saudáveis se constroem com vencedores e vencidos?
“Deus não escolhe um para deixar o outro no veneno”, disse o rapper, sintetizando em uma frase o que significa o capitalismo de stakeholder, movimento empresarial que defende uma mudança no propósito das companhias, da perseguição ao lucro para a geração de valor para toda a sociedade. O lado bom do liberalismo, diz ele, é que acende a faísca do empreendedorismo, o início de todo movimento. Dizer que a favela venceu, no entanto, é contraditório, pois ainda é difícil e há muita luta.
Para Kond, a frase foi uma resposta aos haters da indústria, que sempre fecharam as portas para suas ideias. Ele acredita que se “Sintonia”, série de ficção criada por ele e que está entre as 10 mais assistidas do Netflix, não fosse um sucesso, as oportunidades para artistas de periferia iriam regredir uma década. A barra da indústria para projetos que não venham do mainstream econômico é sempre mais alta, e dificilmente há uma segunda chance. É vencer, ou vencer.
Os mais de 65 milhões de inscritos no seu canal do YouTube, agora, permitem que ele dê as cartas. No momento, Kondzilla estuda o interesse do mercado financeiro pelo setor de entretenimento. As movimentações de grandes investidores oferecem oportunidades, e o empresário está atento. “Não sei até quando isso vai durar”, afirma. A conversa, então, descambou para a evolução do funk. O ritmo atual é uma mistura de James Brown, miami bass (um subgênero do hip hop), samba e, acredite, tarantela.
“Na época da novela Terra Nostra, os artistas de funk passaram a usar o ritmo da tarantela nas batidas. Muitos funks também foram criados a partir de melodias da Disney”, explica Kond. Esse toque melodioso do estilo musical, aliás, foi introduzido por DJ Perera, de São Paulo. A tarde que começou com uma aula de rap de Mano Brown, termina com uma aula de funk de Kondzilla. E teve ainda uma aula de economia dos dois. “A pirâmide está invertida, quem dá as tendências agora é a base”, define Kond. “A gente não entendia nada de empresas, éramos apenas sonhadores”, diz Brown. “Nos movemos com utopias, 95% chapação e 5% razão.”
Esse discurso é semelhante às teorias do historiador Rutger Bergman, autor dos livros “Utopia para Realistas” e “Humanidade – Uma História de Esperança”, livro do ano do jornal inglês The Guardian e bestseller do americano The New York Times. O holandês é considerado um dos jovens pensadores mais promissores da atualidade, rivalizando com o israelense Yuval Harari. Mano Brown e Kondzilla usam as teorias na prática, e estão vencendo.
O episódio de Mano a Mano com Kondzilla vai ao ar nesta quinta-feira, 2, exclusivamente no Spotfy. Para quem gosta de música e negócios, é imperdível.
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